quarta-feira, 28 de julho de 2010

[we're off to see the wizard] the wonderful wizard of moz




Estive aqui a pensar... e resolvi lançar-vos um desafio: virem comigo... Sim, estou a fazer-vos um convite a sério! Asseguro-vos de que não é difícil. Difícil, difícil mesmo em qualquer expedição a Moçambique é chegar à Portela (bem, e ultrapassar a parte do aeroporto de Mavalane também não é fácil, mas isso são outros quinhentos e também já vos contei), a partir daí, já com licenças sem vencimento para interromper o trabalho por cá, já com vistos, carimbos no passaporte, autorizações para trabalhar no país, autorizações para conduzir, autorizações para circular, Moçambique conjura-se para que tudo nos corra bem. As pessoas são naturalmente quentes e afáveis e nunca vi país mais bonito e fotogénico. Tudo transpira largueza, com cheiro a espaço aberto e vistas desafogadas. As músicas são alegres e ritmadas, os batuques acompanham o pulsar do coração das gentes, não há música que se cante a menos de três vozes e a harmonia é facílima de apanhar. E as danças... bem, lamento mas essas não vo-las posso ensinar... Por cem anos que viva não tenho a menor hipótese de as aprender, mas são de encher a alma de quem as vê!


Vá, animem-se, fechem os olhos e deixem-se vir cá ter... Não se preocupem que ninguém vos vê, mas tenham cuidado que agora vamos entrar na savana e os espíritos e os animais podem pressentir a vossa presença... A partir de agora as regras são diferentes. Os macuas têm um provérbio que nos ensina que "quando se chega ao oceano, as leis do rio deixam de servir" e esta é uma lição de vida deliciosamente verdadeira.

A partir de agora pisem só onde eu pisar, não se afastem do caminho. Não há minas anti-pessoais, garanto-vos, o país tem uma sólida paz de vários anos e está todo desminado, mas podemos encontrar cobras e não quero que vos aconteça nada. Não passem por baixo dos cajueiros, sobretudo se não ouvirem passarinhos cantar. Se passarmos perto de um embondeiro procurem um monte de farinha e se lá estiver algum, por favor, não o pisem porque foi oferecido aos antepassados numa cerimónia muito intensa e difícil. É preciso ter muito respeito pelos pedidos de protecção e saúde que ali foram feitos. E nós só estamos aqui porque os antepassados no-lo permitiram. Ah, não sorriam. Não acreditam? Pois digo-vos que não se consegue trabalhar aqui se não respeitarmos e conhecermos as crenças das pessoas com quem vamos conviver. De outro modo não vimos cá fazer nada, só nos vamos deprimir porque nesse caso falar com as pessoas será como falar com uma parede.

Mais adiante vamos passar por um curso de água. Temos de o atravessar com muito cuidado pelas pedras que estão à sombra porque os crocodilos são animais de sangue frio (poiquilotérmicos, eu sei, deixem-se lá de mariquices que já não temos muito tempo) e preferem o calor, mas mesmo assim todo o cuidado é pouco. E nem pensem em entrar na água. Nem molhar os pés sequer. Aqui a schistosomíase abunda e depois não tenho como vos tratar a todos. E insisto, a não ser que oiçam os passarinhos cantar não passem por baixo dos cajueiros porque lá em cima estão de certeza várias cobras. Mas as precauções são simples se as mecanizarmos desde o primeiro dia. O prazer de andar pelo mato supera tudo isto, podem ter a certeza.

Mas venham comigo, não deixem de vir... Não é tudo fácil, vocês sabem. Só há rede de telemóvel de vez em quando, a internet anda incrivelmente instável em todo o país desde que danificaram os cabos submarinos de fibra óptica ao largo de Gaza e a electricidade depende quase toda da barragem de Cahora Bassa, o que quer dizer que tem oscilações que ameaçam diariamente pegar fogo a qualquer aparelho incauto que esteja ligado à corrente. Ah, e podemos passar dias inteiros sem electricidade, portanto temos de ter gerador próprio na mesma, porque se não corremos o risco de ficar sem luz no bloco operatório ou estragar todo o stock do banco de sangue, que tanto nos custou a angariar (não se esqueçam de que estamos num país onde todos se alimentam mal e a anemia é a regra geral, portanto dar sangue é um esforço quase sobre-humano e temos de ter muita estima por aquele ouro vermelho que todos os dias salva vidas). E obviamente não estão à espera de ter água canalizada todos os dias, pois não? Mas lá em casa temos um bom filtro, portanto a água é perfeitamente potável. E tomar banho com um balde e um copo é simples, não se façam de esquisitos! Muita sorte temos nós por não termos de ir ao rio tomar banho.

Vá, venham comigo! O país está à nossa espera, as pessoas precisam da nossa ajuda e há tanto que fazer…

segunda-feira, 26 de julho de 2010

[estado em que se encontra este blog] volto já


Bem, vou andando... Beijinhos a todos que por aqui passaram.

[not in their backyard!] os fumos da mozal

aqui vos falei, a rebentar de indignação, sobre o crime ambiental e sanitário que permanece impune às portas de Maputo... e continuo perplexa com o escândalo que é o governo ter aceite, sem qualquer pudor, a decisão assassina dos dirigentes da Mozal (fundição de alumínio) de libertar directamente para a atmosfera os fumos resultantes do processo de fundição durante meses, período em que vão proceder à substituição dos filtros.

Em qualquer país da Europa isto nunca seria permitido e, mesmo que acontecesse sem autorização do governo, quando o assunto viesse a público as acções da empresa cairiam automaticamente na Bolsa, haveria, no mínimo, manifestações das populações circunvizinhas transmitidas em horário nobre e uma campanha da sociedade civil para o boicote ao consumo dos produtos dessa fábrica. Mas por lá, pelos fracos ecos que me chegam, nem sei sequer se a população faz ideia do que está a acontecer mesmo no seu quintal... Felizmente o Professor é um homem atento e tem denunciado a situação, com muito mais alcance e propriedade, mas será que vai ser suficiente?

domingo, 25 de julho de 2010

[nocturno africano] que as fotos nunca poderão captar


À noite, em Iapala, há qualquer coisa de fantástico e de arrebatador na atmosfera da varanda, debaixo de um céu benzido pelo Cruzeiro do Sul. Ouvem-se os sons da noite da estação seca, as folhas dos coqueiros parodiando a chuva, as corridas dos cães nas suas horas de liberdade, que as Irmãs tinham, por graça, ensinado a compreender ordens em Macua: mukilate! e sentavam-se, prazenteiros. Ouve-se o som dos batuques até de madrugada, o ritmo das danças, as vozes inesperadamente melodiosas dos cânticos, entrecortados pelo alarido das mulheres.


Ao longe adivinha-se a silhueta do monte Iapala, um colosso em ogiva que encobre uma parte do firmamento e que se ilumina aqui e ali, em labaredas que parecem ter vida própria, queimadas que se vão extinguindo por si, sem que ninguém as apague, apenas para se reacenderem noutro local na noite seguinte, e fogueiras com famílias inteiras reunidas em seu redor.

[momentos nicola] or should i say arcadian moments?

Um dia subo à torre mais alta de uma igreja de Oxford para declamar da varanda The Waste Land de T.S. Eliot. Com um megafone.

(Ah, também já aconteceu? Bem, mas se calhar tinha piada repetir... Et in arcadia ego.)

sábado, 24 de julho de 2010

[dias claros] a força do teu olhar a direito


Gilé, Zambézia (Moçambique)

[inspiração para um bem-haja] a propósito de falsas loiras



Fascínio tenho eu por falsas loiras (ai a negra lingerie)
As sardas, sobrancelha feita a lápis e perfume da Coty
Na boca dois pivôs tão graciosos entre jóias naturais
Os olhos dois minúsculos aquários de peixinhos tropicais
Eu conheço uma assim
Uma dessas mulheres que um homem não esquece
Ex-atriz de TV, hoje é escriturária do INPS
E que dias atrás, venceu lá um concurso de Miss Suéter
Na noite da vitória, emocionada, entre lágrimas falou:
"Nem sempre a minha vida foi tão bela mas o que passou, passou
Dedico este título à mamãe que tantos sacrifícios fez
Pra que eu chegasse aqui ao apogeu com o auxílio de vocês"
Guardarei para sempre seu retrato de Miss com ceptro e coroa
Com a dedicatória que ela em letra miúda insistiu em fazer
"Pra que os olhos relembrem quando o teu coração infiel esquecer.
Um beijo, Margot"

João Bosco

[sabes que és demasiado loira] quando...

... olhas pelo retrovisor do carro, este devolve a tua própria imagem e pensas: "Ai, canário, que estou despenteada." e só um minuto depois percebes que algo mais está mal para além do teu cabelo...

[inspiração para uma despedida] wilde thoughts

We are in the gutter... and most of us are short-sighted!
Variações de Oscar Wilde in Lady Windermere's Fan

sexta-feira, 23 de julho de 2010

[welcome to mozambique] instantes


Fim de tarde em Murrupula, Nampula (Moçambique).

(Fotografia do meu amigo R. Leonardo, também ele apaixonado pelos penteados africanos e pela imagem enternecedora das mães a pentear as filhas à porta de casa ao fim do dia...)

[as flores da mulher leprosa] esperança em vermelho e preto

quinta-feira, 22 de julho de 2010

[as melhores do serviço de urgência] a minha vida dava um filme cigano

Serviço de Urgência, mãe com bebé ranhosíssimo, a transbordar de secreções arejadas por todos os orifícios respiratórios. E uma pediatra condoída com o resfolegar aflito, quase equídeo, de uma criança tão pequena.

- Bem, então vai dar-lhe uma colher de café deste xarope, duas vezes por dia nos próximos cinco dias.
- Ah... uma colher de café?
- Sim, duas vezes por dia. Mas não lhe pode dar mais do que cinco dias...
- Não mais do que cinco dias, está bem.
- Vai tudo escrito na receita. Alguém sabe ler bem lá em casa?
- O meu marido sabe. Obrigada.

A senhora faz menção de voltar costas, mas de repente, com um ar de quem se lembra de qualquer coisa, volta para trás:

- Doutora, disse uma colher de café...
- Exactamente, uma colher pequenina.
- Pode ser Nescafé?

[et in iapala ego] um mato de histórias


(Continuando este mato de histórias...)

À uma da tarde, quando já o sono começava a levantar, a Irmã Lurdes veio arrancar-me da secretária para ir almoçar, sem admitir réplicas ou alegações de trabalho por fazer. Que fosse rápido que tínhamos visitas para o almoço: três padres que seguiam caminho de Lichinga para o litoral. Passavam pela missão porque tinham dado boleia a uma criança doente e respectiva família, recolhidas à beira da estrada a cerca de 40 km da missão e vinham deixá-las no hospital. Obviamente os padres tinham sido convidados para o almoço. Lá segui também para a mesa depois de me certificar de que a criança não tinha nada de urgente, para não fazer má figura entre os visitantes: um padre moçambicano, um mexicano e um brasileiro simpatiquíssimo que ficou sentado a meu lado na mesa do almoço e que ironicamente me pediu um anti-histamínico porque há já três dias que não conseguia dormir, acometido como estava de uma "cólera nasal", como ele dizia, de tal forma intensa que já começava a temer desidratar pelo nariz (sic)! De bom grado lhe ofereci o que restava do culpado pela minha manhã sonolenta.

A conversa do almoço correu célere sobre a refeição deliciosa preparada pelo cozinheiro, que para cozinhar com coco fresco tinha subido ao coqueiro vizinho do meu quarto (o mesmo que interpretava para mim todas as manhãs os sons da chuva). Falaram-nos também sobre as suas preocupações com as eleições já próximas e os confrontos ocorridos recentemente em Inhaminga entre militantes da Renamo e da Frelimo. Felizmente ao que sabiam sem grandes consequências, embora neste país seja muito difícil obter informações fidedignas, não distorcidas pela máquina de propaganda do governo, de forma que a informação passa muitas vezes de boca em boca, também ela provavelmente muito alterada... Aliás estes governantes também fazem parte da minha lista e, se me perdoam os instintos assassinos, tenho a certeza de que serão os primeiros a ir pela janela quando vier a revolução!

Há tanta coisa neste país que me encanta e tanta coisa que me horroriza, tanta coisa para mudar e tanta perigosamente ameaçada...

O cozinheiro entra no fim do almoço e explica que tentou fazer café com o café de Iapala, mas “desconseguiu de pilar o café a tempo", por isso terá de fazer Nescafé®. Está bem, não há problema, respondemos.

(Desconseguiu... lindo!... É mais um neologismo bem à africana. Isto de falar Português é difícil e a responsabilidade de falar uma língua conservadora, com palavras altivas e centenárias, é entregue a um povo quase todo ele analfabeto. "O povo que se desenrasque!", dizem os governantes. E o povo desenrasca-se, ou vai-se desenrascando... À boa maneira moçambicana, com neologismos deliciosos em catadupa que, pé ante pé, já vão conquistando lugar nas novas edições dos dicionários... E poderia abrir agora um longo parêntesis sobre a língua e a cultura macuas e desafiar o leitor a reflectir sobre que sentido tem a língua portuguesa ser a língua oficial e obrigatória em todas as circunstâncias, desde os curricula escolares até às consultas em centros de saúde rurais, de forma que, por exemplo, quando entram para a escola, as crianças têm de aprender a ler e a escrever numa língua que para elas é estrangeira… mas enfim, isto é apenas um blog. E um blog com modestas pretensões...)

Os padres riram a bandeiras despregadas das últimas histórias da missão e, bem dispostos, despediram-se pouco depois, agradecendo o almoço, pois a tarde já ia adiantada e ainda tinham muita estrada em mau estado pela frente.

Quanto a mim, estou feliz porque consegui sobreviver a esta manhã: ao anti-histamínico, à ausência de mefloquina, à falta de energia, à água fria, a não ter telemóvel, nem rede, nem os doentes nas respectivas camas, à Amélia, meu inseticida natural, à fila interminável no serviço de urgência, ao choque de ainda existir lepra nesta terra, à burka, ao horror da SIDA e de outras doenças que não tenho maneira de tratar, à notícia dos confrontos armados e a tudo o mais. Mas sei que não vou resistir por muito mais tempo a este sono, que pouco a pouco transformou as minhas pálpebras mal dormidas em dois menires. Felizmente chegou a hora da sesta e, aqui na Missão de Iapala, a sesta é felizmente uma Instituição. Não tão assumida, escrita, descrita e programada como a Siesta de nuestros hermanos, mas religiosamente cumprida com jurisprudência, como a Constituição Britânica. E não serei eu a traidora da pátria, violando os seus bons e saudáveis costumes. Até porque todos sabemos o que é que acontece aos traidores da pátria, como o Miguel de Vasconcelos. E para quem não sabe quem foi Miguel de Vasconcelos eu explico: foi um traidor da pátria em tempos idos, quando Portugal estava anexado a nuestros hermanos e que ficou conhecido por ter sido o primeiro a ir pela janela quando veio a revolução! E lá regresso ao meu quarto, abençoando a minha cama coberta de capulanas verdes. Duas horinhas bem dormidas e fico fina para regressar ao serviço de urgência...

quarta-feira, 21 de julho de 2010

[i once had a son in africa] i'm going back to where i've been happy




Foi em Maio que escrevi este post:

Estou prestes a explodir... Não sei se aguento muito mais as saudades do país onde os embondeiros nascem com as raízes para cima, cumprindo um castigo milenar de Muluku - o deus dos antepassados - onde o sol rompe de manhã vindo das águas mornas do Índico e se põe ao fim da tarde sobre a savana... a terra onde posso chorar mais perto do céu a perda do meu filho adoptivo. É que eu quando choro, choro sempre com o corpo todo e quando tomo uma decisão vou junta com ela. Se um dia destes me for embora já sabem para onde fui...
Agora, dois meses depois, posso anunciar que vou mesmo, em breve, matar saudades desse país que não é o meu, mas que quero à viva força que não cresça sem mim! Se alguém alguma vez pensar que se pode viver em Moçambique uma experiência do tipo Seen it, done it, got the t-shirt, desengane-se. Não se volta ileso.

Eu sei que nunca vos contei a história desta paixão, mas a verdade é que duvido que consiga... Para isso acho mesmo que era preciso fazer como o G. García Marquez: vivir para contarla. E não foi para contar histórias que um dia decidi que afinal, por enquanto, não iria ter com o meu menino. Ele tinha os pais verdadeiros para cuidarem dele no céu. Por isso o que vou fazer para Moçambique é trabalhar num hospital no meio do mato e cuidar das crianças que me aparecerem. Mas se me forem sobrando histórias no meio disto tudo, prometo que as partilharei com quem as quiser ouvir...

[inspiração para um bem-haja] under my skin

terça-feira, 20 de julho de 2010

[estado em que se encontra este blog] gelo e elevação do membro


Em todo o caso, tenho uma coisa a declarar: as escadas são erros arquitectónicos! E não acender a luz é um direito que assiste a todo o cidadão com consciência ecológica. Tenho dito.

Ah, só uma coisa mais: Ooouch!

(Um doce a quem adivinhar qual das três da imagem sou eu...)

[vozes brancas* #21] e gostos educados

Na urgência de há duas semanas vi um menino que não teria mais de dois anos e meio e que não se queria deixar auscultar...

(E poderia abrir aqui um longo parêntesis sobre como é exasperante estar preocupada com uma criança e precisar de ouvir bem a auscultação e ela não parar de chorar. Daí que todos os Pediatras tenham a sua técnica para as tentar calar e, claro, a que resulta melhor é sempre a de cantar canções infantis. O problema é que a música que, na minha experiência, tem maior probabilidade de fazer calar uma criança é precisamente a música que eu há anos que já não posso ouvir, embora, num Serviço de Urgência de afluência média, em 24 horas geralmente a tenha de cantar umas cinco ou seis vezes, depois de  me render ao facto de que não as consigo calar com mais nenhuma...)

Ora esse menino não foi excepção. Mal me aproximei começou a chorar e lá comecei o meu périplo de canções infantis, numa gradação crescente, da menos irritante para a mais irritante... Mas, quando estava a meio caminho da fase em que costumo pensar: "Lá terá de ser, pronto, para grandes males, grandes remédios...", ele fez um olhar de súplica para a mãe e disse:

- Mãe, os Quinini...
- O que é que ele lhe pediu?, perguntei à mãe.
- Ah, Doutora, é que as músicas preferidas dele são as dos Queen. Até é o DVD que ele mais gosta de ver e que está sempre a pedir!

(Ah, ditosa pátria que tais filhos tens! E ainda dizem que os gostos das crianças não se educam... vai longe este menino que não se calou com o Ruca, mas que se calou e sorriu com o It's a Hard Life!)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

[vozes brancas* #20] e raciocínios irrepreensíveis

O filho de uma amiga minha, agora com dois anos e meio, ontem à noite, jantava hamburger de frango com milho, quando o pai se lembrou de lhe explicar a verdade dos factos sobre os pequenos galináceos:
- Sabes que o frango também gosta muito de comer milho.

Nisto, o menino faz um ar desconfiado, olha para o hamburger, olha para o pai, olha novamente para o hamburger e pergunta ao pai, em tom de desafio:
- E onde está a boca?

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[amar as palavras] de peito aberto

A vantagem de um estranho é que lhe confiamos essa mentira de termos uma só alma.

Mia Couto in O Último Voo do Flamingo

[iapala by night] as flores da mulher leprosa

[a mulher leprosa] tirar a burka ao fim da noite



Nessa noite pedi à Irmã Lurdes para me levar a visitar a mulher leprosa... Não me saía da cabeça a forma como se cobria com aquela burka, como se a vida tivesse terminado e não houvesse lugar para si no mundo... Depois de jantar pegámos na lanterna e fomos até casa dela, num dos bairros em torno da missão. A Irmã Lurdes levava-lhe uma manta, porque as noites tinham arrefecido e duas barras de sabão - autênticas preciosidades na savana, que a iriam deixar certamente muito feliz. Eu, num rasgo de intuição, tinha resolvido oferecer-lhe os meus brincos e levar-lhe um espelho, para ver se um presente e um pouco de vaidade feminina lhe poderiam consertar a auto-estima dilacerada pela doença...

No bairro, as vizinhas que ainda estavam na rua a conversar à porta de casa, alumiadas por uma fogueira que servira para cozinhar a ceia viram-nos passar e riram maldosamente de inveja, comentando em voz alta em Macua qualquer coisa que percebi ser a respeito de mucunhas* a visitar justamente a casa da leprosa.

Batemos à porta da palhota, mas ninguém respondeu. Já estaria a dormir? Entrámos e apenas vimos duas crianças a dormir**, deitadas sobre uma esteira meio desfeita, num compartimento único e desolado, em que o conteúdo se resumia a uma peneira, um cesto com roupa, duas panelas de barro e uma pequena lamparina. Demos a volta à casa para procurar a nossa doente e foi então que nos deparámos com uma imagem enternecedora: à pálida luz da lua, a senhora retirara o pano com que ocultava o rosto e, escondida de tudo e de todos, olhava a própria face reflectida num pedaço de espelho e enfeitava-se com flores... Suspirei de alívio. Havia esperança para ela!
* brancas
** uma delas é actualmente minha afilhada à distância. Chama-se Fresquinha, não acham o nome delicioso?

domingo, 18 de julho de 2010

[mala de viagem] ideias brilhantes

Estive aqui a magicar com os meus botões (expressão meramente coloquial, que a minha camisa de noite não tem botões... e sim, eu sei, já passa das duas da tarde, mas só acordei há bocadinho... ah, que bem que se está na cama!). Estava a tentar pensar num modo de me chamarem do hospital durante a noite quando estiver na Zambézia porque lá geralmente não há rede para nos poderem chamar pelo telemóvel e soltamos os cães durante a noite para ninguém poder entrar no recinto da casa...

Mas acho que já encontrei uma solução eficaz e genuinamente africana: estou seriamente a pensar em levar uma vuvuzela! Por acaso alguém tem uma que me possa dar? Daquelas que façam mesmo uma barulheira infernal capaz de me acordar de um sono profundo com vontade de ir ao hospital esganar quem está a fazer aquele barulho e, de caminho, salvar uma vida? E fica desde já a promessa de que, possivelmente pela primeira vez desde o início do mundial, uma vuvuzela made in china será utilizada para fins humanitários...

[et in iapala ego] o dia vai avançando



(Continuando o dia na Urgência em Iapala. É melhor pôr o link, não é? Daqui a nada já ninguém se entende neste mato de histórias entrecortadas...)

– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!

(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor...)

– Qual é o medicamento que lhe está a fazer reacção?
– Rifampicina.

Felizmente é um medicamento que conheço bem e pude responder à questão... Mas uma angústia estranha permanece... Não que seja vergonha não conhecer uma doença que é rara no meu país, mas era como se tivesse acabado de vislumbrar um mundo diferente... Lepra?! Qualquer coisa de irracional pulsa dentro de mim e me grita, contra a minha vontade, que algo de muito grave se passa em meu redor... Mas por que será que tenho esta impressão?, pergunto-me... Por que é que, por exemplo, o meu primeiro caso de malária não me fez sentir assim? Será possível que esteja, depois de não sei quantos anos a estudar Medicina, a cair num preconceito veiculado pelo Antigo Testamento? E logo eu, que até achava que tinha uma mente aberta?

Mas, lepra?! Ainda não estou em mim... Esta senhora tinha uma úlcera num pé, mas estava em fase adiantada de cicatrização. Não tinha deformidades visíveis, não tinha amputações de dedos, em suma, não tinha nada que saltasse à vista de um leigo (e como eu sou leiga...) que tinha lepra. Mas não se entrosava com as outras pessoas. Veio só e regressou só. Cobria a cabeça com um véu, não com a graça e vivacidade das mulheres Macuas, mas como uma autêntica burka... Terá sido excluída da sociedade, ou terá sido ela, com a consciência da doença, que se auto-excluiu? Mas se a Lepra tem cura (e ela sabe que a Lepra tem cura, senão não se estaria a tratar e a sujeitar-se às reacções adversas dos medicamentos) por que será que se comporta desta forma? De onde lhe virá a consciência da doença...? De onde virá o estigma, o peso que a faz vergar os olhos? Mas talvez até perceba o que se passa. Talvez tenha reconhecido no olhar desta doente a opressão que via há bastantes anos atrás aos doente com SIDA, antes de os anti-retrovirais terem revolucionado (e, em parte, desdramatizado) a epidemia na Europa... Não se entende... Uma doença tão simples... Muito mais mortífera é a Malária – o Levítico que o diga – e não faz este abalo na vida social! Mas... Lepra? Será possível? E mesmo por baixo do meu nariz!

(Uma menina à minha frente capta a minha atenção... Sim, logo à noite hei-de estudar a doença, agora há que trabalhar...)

Fico rendida a estas crianças quando alguma me sorri. É tão raro não terem medo de mim... Que pensarão elas desta mucunha, como eles aqui chamam aos brancos? Uma mulher sem cor de pessoa que lhes avança a mão para a face e lhes descobre as pálpebras, num gesto mais ou menos aflito consoante a palidez que ostentam. "Nsina nawo mwana?", pergunto. (Como se chama a criança?) E nestes dias já vi desfilar diante de mim, pintadas de preto e em ponto pequeno quase todas as personagens do Antigo Testamento, Ananias, Malaquias, Levítico, Judite, Ozias... Outras têm nomes próprios como Trinta, Malária, Quietinha, Castelo, Apressado, Médico, Fresquinha, que me fazem sorrir. Há certos nomes que nos entreabrem intimidades distantes e nos permitem, deliciosamente, penetrar em qualquer coisa de interdito nas fantasias e sonhos alheios... Vai avançando o cortejo pelo pátio a passo de caracol. É difícil trabalhar com este sono espesso.

sábado, 17 de julho de 2010

[mas está tudo doido?!] licenciar a poluição a céu aberto

O Ministério para a Coordenação da Acção Ambiental de Moçambique confirmou esta semana ter autorizado a empresa de fundição de alumínio, Mozal, localizada nos arredores de Maputo, a operar com emissão directa de gases tóxicos produzidos nas suas actividades durante os próximos seis meses, período previsto para a conclusão do processo de substituição dos filtros das emissões de gases. Fê-lo ignorando todos os alertas dos ambientalistas e da comunidade internacional para o perigo deste tipo de operações. Depois de cerca de um mês de suspense, o governo cedeu às pretensões da Mozal, alegando ter recebido estudos conclusivos que afirmam que não haveria danos para o ambiente, uma vez que os níveis de poluição seriam mínimos (!).

Durante os próximos seis meses, as comunidades circunvizinhas da fábrica, até um raio de 40 km, segundo os ambientalistas, estarão expostos a diversos tipos de poluentes, desde fluoretos até dióxido de enxofre e dióxido de azoto, que podem provocar doenças respiratórias agudas e crónicas, irritação da visão e até doenças neoplásicas (cancro). Fontes de algumas comunidades residentes próximo à Mozal, afirmam que a empresa prometeu, durante uma acção de consulta popular, disponibilizar meios para o transporte de possíveis afectados que necessitassem de tratamento hospitalar, auxiliar na sinalização rodoviária nos momentos em que a visibilidade ficasse prejudicada e irrigar as plantas de cultivo caso ficassem "empoeiradas"!

Isto é absolutamente inacreditável! Fiquei doente quando li esta notícia em vários jornais, incluindo o Savana e pior ainda quando percebi que, entre os afectadas pelos efeitos directos da poluição estarão certamente os meus meninos da Casa do Gaiato de Maputo, os grandes responsáveis pela minha paixão por Moçambique, que vivem a poucos quilómetros desta fábrica.

[lonely planet] guia dos hospitais portugueses

No recinto do Centro Hospitalar de ******* existe um parque de estacionamento gratuito onde funcionários, utentes e visitantes podem estacionar as suas viaturas. O problema é que, neste parque de estacionamento gratuito, é proibido estacionar durante mais de "algum tempo" (geralmente "algum tempo" corresponde a uma ou duas horas mas, como não existe qualquer temporizador no parque, a unidade de tempo utilizada pelos polícias que patrulham a zona do hospital é mais ou menos o tempo de uma ronda policial - um carro que permaneça parado entre duas voltas da ronda é multado sem apelo nem agravo).

Ora, ontem, uma amiga minha que estava de urgência 24 horas foi ao carro buscar qualquer coisa e reparou que, apesar do cartão de funcionário e da clássica nota a indicar que se encontrava de serviço no hospital, tinha uma multa no pára-brisas. Ficou tão fula que a foi mostar à directora clínica e, qual não foi o seu espanto que, quando regressou ao carro, já tinha uma segunda multa de estacionamento passada com o zelo do mesmo agente!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

[et in iapala ego] na urgência


(E o dia continua...)

Na sala de urgência dizem-me que a técnica de Saúde Materno-Infantil foi passar o fim-de-semana a Nampula e "desconseguiu de chegar a tempo". Vou ter de ser eu a fazer a consulta de urgência da Pediatria, mas o edifício onde funciona o atendimento às crianças é tão escuro que peço para me transferirem a secretária para o pátio interior do hospital. Que falta que nos faz a energia...

Começa a chegar a procissão do paludismo... cada mulher carregando devotamente o seu andor anémico e febril enfaixado contra o corpo com capulanas coloridas. Vêm bichar quinino e cloroquina, como bichavam milho nos tempos da guerra... E ainda para mais, a palavra Macua para "medicamento" ou "comprimido" é, salvo melhor transcrição, kininu, delicioso equívoco que me custou meses a desvendar.
Mas, para meu desespero, esta manhã, em vez da mefloquina para profilaxia da malária, tomei por engano o anti-histamínico que tinha destinado para me adormecer e embalar na viagem de regresso e me fazer esquecer as saudades deste povo fantástico. Malditas embalagens que me tornam tudo igual na miopia das madrugadas! E o pior de tudo é que só dei por isso a meio da manhã quando comecei a perceber que não podia culpar o café de Iapala pelo sono que sentia. Mais aromático que qualquer Arábica, curto, conciso, contundente, contava com ele para me sacudir a modorra da manhã, mas... tarde demais, não tinha ido a tempo.

E o cortejo das febres, interminável, estende-se já até ao fundo do pátio sem parar de crescer. Malária, malária, malária, anemia, desnutrição, queimaduras, pneumonias, pielonefrites, bilharziose – endémica na província – uma suspeita de doença celíaca, epilepsia e, claro, a SIDA de que suspeito constantemente, embora não possa fazer testes confirmatórios nem tenha anti-retrovirais. É o que mais me dói não poder tratar nestas crianças. E pensar que, pelo menos nelas, a doença se poderia prevenir de modo tão simples... Mas não posso pensar nisso. Tenho de tratar só o que vejo e o melhor que souber. A cólera, felizmente, não anda por estas paragens nesta altura do ano e o sarampo é já praticamente desconhecido graças aos empenho das Irmãs nas campanhas de vacinação. Valha-nos isso, que com este grau desnutrição o sarampo teria 50% de mortalidade...

De súbito, o Director do Centro de Saúde vem pedir-me conselho sobre como gerir uma reacção adversa que uma doente está a ter a um medicamento. Vem acompanhado de uma senhora de olhos tristes.

– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!

(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor... Lepra, valha-me Deus?)

[scrambled eggs] e os compromissos

(Ultimamente andamos pródigos em interlúdios e interrupções de emissão.)

Recentemente vivi uma história do tipo John Lennon/ Paul McCartney com um amigo para quem volta e meia escrevo letras de canções. E desta vez tive um vislumbre da razão pela qual os letristas e os compositores se zangam tão frequentemente...

É que, por vezes, quando se escreve algo que nos diz muito, as palavras tornam-se os nossos meninos, deixamos de querer abdicar de uma sílaba que seja. Mas o meu Cole Porter tem uma sensibilidade tão grande para estas manias de quem escreve que, mesmo sem lhe pedir, sempre levou as palavras ao pé da letra, passe o pleonasmo. Só que fazer isto não é fácil. Tem de haver um compromisso e um empenho muito fortes para tentar captar a musicalidade das palavras alheias e criar música com elas. É por isso que lhe estou agradecida. Mesmo que desta vez não me tenha envolvido tanto com as palavras e nada disto fosse necessário...

Mas isto vinha a propósito de um comentário do senhor do Sem Compromisso sobre ovos escalfados, tema que acidentalmente se tornou recorrente neste blog sem que eu tenha tido participação directa no assunto. (E, meus amigos, todos são testemunhas de que também nunca tentei atirar as culpas para cima dos pobres ovos, que nunca souberam de onde veio tanta água ferver nesta história toda, está aqui o Blogger que não me deixa mentir!) O comentário falava do Yesterday dos Beatles:
Paul McCartney sonhou com uma música e no dia seguinte de manhã correu ao piano antes que a esquecesse. Chamou ao que escreveu, e que viria a ser "Yesterday", "Scrambled Eggs"! (...)
A versão inicial era Scrambled eggs/ Oh my baby how I love your legs... Daí até à versão final podemos imaginar a batalha campal que deve ter havido com John Lennon e os compromissos que ambos tiveram de fazer para por fim escreverem:


Yesterday
All my troubles seemed so far away,
Now it looks as though they're here to stay,
Oh, I believe in yesterday
Why she had to go, etc...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

[estado em que se encontra este blog] nas nuvens







... e a sonhar com a paisagem abaixo - Nampula, que te quiero, Nampula!

[nomes que dizem tudo #12] ao quadrado, para não deixar dúvidas!


El Macho ao quadrado

[may the force be with you]


Aproveitamos este pequeno interlúdio musical para desejar aos primos João e Joana muito boa sorte para os exames. E ao António boas melhoras e também boa sorte para amanhã.

Não esquecer: From the ashes of disaster grow the roses of success!

[instantes] estrela-do-mar

[banda sonora para uma discussão] traduzida para estrangeiro para não escandalizar ninguém



Por falar em maus fígados...

[et in arcadia ego] a força de existir

Nós não temos verdades absolutas. Temos momentos.
Lépido, antes do segundo triunvirato.

[vozes brancas* #19] e sonhos difíceis

Tenho um menino na minha consulta que conheço desde que me veio lá parar por uma asma de calibre 38, daquelas sempre prontas a disparar ao mínimo vírus. No pacote trazia incluída uma mãe absolutamente amorosa, se bem que, como todas as mães de meninos com asmas graves (que nunca sabem de onde é que elas vêm e com que força vão bater), fosse bastante ansiosa. Ora, num destes dias, a mãe ligou-me, já desesperada porque o menino, agora com cinco anos, andava com pesadelos todas as noites desde há dois meses e já não sabia o que lhe havia de fazer.

Ele ora dizia que tinha uma velha pendurada numa ovelha de peluche, ora dizia que havia um duende que lhe estava a tirar dentes, ora dizia que tinha um tubarão no tubo das canetas... Digamos que os sonhos denotavam uma imaginação fértil... ou então uma sensibilidade literária apurada para as aliterações... Excluídos factores desencadeantes destes pesadelos recorrentes sempre diferentes, só me restava falar com ele para quebrar aquele ciclo de pesadelos sucessivos. E, como nestas coisas dos sonhos temos sempre de lhes falar à emoção e estabelecer uma ligação de confiança, antes de ir para a consulta passei por uma loja de chineses decidida a comprar qualquer coisa que pudesse servir de objecto contra-fóbico. E, um  pouco divertida de mim para mim, decidi que para combater pesadelos, o objecto tinha de começar por P.

Acabei por comprar uma pedra preta e na consulta procurei convencê-lo de que aquela é que era "a pedra preta mágica dos pesadelos" e repeti a frase muitas vezes como uma lengalenga. Porque, nestas idades, todas as frases com ritmo ou com rima podem fazer sentido se as dissermos com convicção... E não é que resultou? Uma semana depois a mãe ligou-me agradecida porque o menino agora levava sempre "a pedra preta mágica dos pesadelos" para a cama e já tinha noites tranquilas... Às vezes a vida é tão simples...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 13 de julho de 2010

[et in iapala ego] a visita da manhã

(E agora que já rompeu a madrugada...)

Deixo-me ficar na cama mais uns minutos depois do alarme do telemóvel tocar (tarefa ingrata para um telemóvel, servir apenas de despertador – e o pobrezinho ainda é dos únicos aparelhos electrónicos que funcionam na Missão, depois de termos ficado sem energia... só enquanto a bateria durar...). Recordo-me desta noite... ainda nem acredito que recebi um recém-nascido à luz das velas, como nas mais antigas histórias que ouvia contar! Escrevi uma mensagem ao meu mentor espiritual: “Estou completamente em euforia! Deixa-me mandar-te beijinhos, abraços, festas de Carnaval, pássaros do paraíso, ramos de petúnias, vidros da Marinha Grande. Azuis. Azuis porque é rapaz, ainda não tem nome mas há-de ter, pesa 2.900 g e teve choro imediato num espanto desmedido, o primeiro bebé que nasceu pela minha mão!” Mas o telemóvel, em vez de enviar a mensagem para o éter, na esperança de uma nesguinha de rede, avisou-me que a guardaria na memória, mesmo a tempo de dar um último suspiro antes de expirar de vez por falta de bateria.

Arrepio-me de pensar em levantar-me para ir tomar duche. Se há coisa a que seria improvável habituar-me é ao duche de água fria pela manhã. Um importante aspecto em que a minha inculturação falharia sem apelo nem agravo... As Irmãs sempre solícitas: "Pode pedir ao cozinheiro que lhe aqueça água para o banho." Mas nem pensar em indulgenciar nessas mordomias quando a lenha é tão difícil de arranjar... Normalmente alterno entre duas modalidades de entrar no chuveiro, a marcha lenta e o sprint, consoante a inspiração do momento, mas hoje, dado o adiantado da hora, vou mesmo ter de vencer os três metros barreiras femininos se quiser estar pronta a tempo e não me fazer esperar. Avanço para a minha casa de banho privativa (luxo único!), apenas para descobrir que novamente não há água corrente. Mas nestes dias já aprendi a tomar um banho completo apenas com um balde de água e um jarro. (Outra coisa que também já aprendi é que há quem consiga tomar com menos! Aliás, tenho uma amiga que nasceu em Angola e recorda muitas vezes o tempo em que uma garrafa de litro e meio de água do Luso dava direito a um banho completo com champô e amaciador! Será que alguma vez chegarei a esta perfeição?)

Saio do banho mais desperta e revigorada (afinal todas as manhãs descubro que tomar banho de água fria até pode ser um exercício muito útil). Cumprimento a Amélia, a minha discreta companheira de quarto, uma osga simpática e madrugadora, que a esta hora já se encontra colada aos vidros da janela ao sol (desconfio que terá passado ali a noite...), com as patinhas cheias de dedos esticadas numa enorme preguiça, à espera do pequeno-almoço esvoaçante. Instalou-se no meu quarto há três dias, trazida pelo cozinheiro ante o meu olhar de ponto de interrogação (eu tinha-lhe pedido insecticida pois não tinha rede mosquiteira no quarto, ao que ele respondera:

– Não sei o que é "set'cida", Doutóra...
– Remédio para os mosquitos – reformulei.
– Ah, não tem problema!
E horas depois regressou com a Amélia...). A verdade é que esta minha inquilina é uma exímia caçadora de mosquitas, mosquitos e moscas e ainda não precisei de usar insecticida. Já vestida, apresso-me para a sala de jantar para tomar o pequeno-almoço de pão com doce de manga, banana-macaco e café natural, deliciosamente perfumado, criado, torrado e moído na própria Missão.

Chego ao hospital já passa das 07:00 e esperam-me para iniciar a visita. O Rufino, o menino de nove anos que chegou durante a noite, miraculosamente, ainda sem ter feito sequer a segunda dose de quinino, já acordou, levantou-se para ir à latrina e toma agora o mata-bicho com o ar vagamente desorientado de quem não conhece o sítio onde está nem faz ideia da forma como lá foi parar...

(Ditosa pátria que tais filhos tens! Assim vale a pena trabalhar, se ficam bem logo à primeira dose!)

À excepção deste susto, no internamento foi uma noite calma, sem intercorrências e há poucas novidades dos doentes internados. Como são poucos os que permanecem nas suas camas após o acordar (só mesmo os que não se conseguem pôr de pé é que ficam na cama), para os observar temos de os ir procurar ao pátio. Sempre o mesmo alvoroço hilariante todas as manhãs. Nunca me tinha passado pela cabeça uma situação destas: ir para o hospital trabalhar e ter de ir à procura dos doentes para os observar... E nunca estão todos no pátio! Uns foram ao rio lavar a roupa ou tomar banho, outros foram ao mercado, outros foram a casa se moravam perto, outros foram à missa das 07:00, enfim... estão presentes à hora da medicação e depois fazem uma vida o mais normal possível, porque não têm quem lhes dê banho, lave a roupa, providencie lençóis lavados ou cozinhe para eles. Mas em Moçambique não sejas romano e eu cá vou trabalhando com as condições que tenho... Mas estão quase todos a melhorar, portanto depois da visita deixo o trabalho nas mãos dos enfermeiros e vou para a Pediatria. Não resisto a passar pela maternidade primeiro para visitar o recém-nascido e a mãe. Estão ambos bem. A mãe, então, está radiante com o seu menino tão esperado.

(São 8 horas de manhã, caramba, não perguntem se continua, que obviamente não vou já descansar!)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

[aviso: ignore este aviso]

Interrompemos a emissão para emitir o seguinte comunicado:

Em virtude de uma inopinada elevação dos níveis de colesterol LDL, este blog está interditado de ingerir ovos escalfados até ao final da semana, pelo que a revolução, até novas indicações, fica desconvocada. Mais, caso a situação se mantenha, planeamos iniciar uma greve de fome, que este blog é um blog pragmático e para grandes males, grandes remédios. E para os que reclamam que estes avisos não fazem sentido, eu reivindico que a semântica já foi desclassificada há muito tempo neste blog. Resta-nos o ritmo e a sintaxe. Até ver.

Pronto. Era só isto. A emissão seguirá dentro de momentos.

[welcome to mozambique] alojamento

«A convite do recepcionista lá fomos pelo obscuro corredor. O homem ia explicando as insuficiências com o mesmo entusiasmo que outro hoteleiro, em qualquer lugar do mundo, anunciaria os luxos e confortos do seu hotel. E o italiano parecia se arrepender de alguma vez ter querido saber: só havia eletricidade uma hora por dia.

- Merda, será que trouxe pilhas suficientes? - se interrogou.
Afinal, eu estava dispensado de traduzir. Massimo sabia-se explicar e, pior ainda, entendia o que lhe diziam. O outro prosseguia com as condições:

- Também não há água nas torneiras.
- Não há água?
- Não se preocupa, meu caro senhor: manhã cedo, havemos de trazer uma lata de água.
- E vem de onde, essa água?
- A água não vem de nenhum lugar: é um miúdo que traz.

Chegamos ao quarto destinado ao estrangeiro. Eu ficaria mesmo ao lado. Ajudei o italiano a se instalar. O quarto tresandava. O hoteleiro, seguindo à frente, dissertava sobre a variedade de fauna coabitando o mesmo espaço: baratas, aranhas, ratos. No chão havia uma caixa. O homem debruçou-se sobre ela e foi tirando objetos diversos:

- Esta revista é para matar as moscas. Esta sola velha é para as baratas. Esta bengala...
- Deixe estar, eu resolvo.

O recepcionista abriu as cortinas e uma nuvem de poeira se espalhou pelo aposento. Passado um pouco tudo se tornou mais visível, mas o italiano parecia preferir o escuro. Um líquido espesso escorria pelas paredes.

- É água, isso?
- Era bom, mas conforme já mencionei, nós aqui não temos água.

O recepcionista já se retirava quando se recordou de uma recomendação. Desta vez, se dirigia a mim como se procurasse cumplicidade.

- Às vezes, aparecem nos quartos uns insetos desses, sabe, que chamamos louva-a-deus.
- Sei o que são.
- Se aparecer um desses não lhe mate - disse, dirigindo-se agora ao italiano. - Nunca faça isso.
- E porquê?
- Nós aqui não matamos esses bichos. São nossas razões. Esse aí lhe explicará depois.»
Mia Couto in O Último Voo do Flamingo

(É que é sem tirar nem pôr...)

[momentos nicola]

Um dia dou-te um beijo em directo.

(Ah, já foi o dia? Oh, não vi, vais ter de repetir.)

[depois da despedida] inspiração para uma desesperança

- Catherine Earnshaw, may you not rest as long as I am living. You said I killed you - haunt me then. The murdered do haunt their murderers, I believe - I know that ghosts have wandered the earth. Be with me always - take any form - drive me mad. Only do not leave me in this abyss, where I cannot find you! Oh, God! It is unutterable! I cannot live without my life! I cannot live without my soul!
Emily Brontë in Wuthering Heights

[vozes brancas* #18] caracóis

As histórias das crianças são intemporais... Certa vez uma amiga minha foi ao mercado com a mãe (teria ela três ou quatro anos), viu caracóis expostos para venda dentro de um saco e ficou intrigada:
- Mãe, os caracóis comem-se?!
- Sim, querida. Eu, pessoalmente, não gosto, mas há muitas pessoas que gostam de comer caracóis e dizem que são muito bons agora no Verão.

No dia seguinte, quando a mãe a foi buscar à escola, a minha amiga informou-a:
- Mãe, eu também não gosto de caracóis!
- Mas como é que sabe, se nunca provou?
- Provei sim! Há bocadinho... - respondeu a minha amiga, ainda a cuspir pequenos pedaços da casca do caracol que colhera de uma árvore do pátio.

(Em certas idades, a silly season pode vir em qualquer altura e por vezes pode durar o ano inteiro...)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

domingo, 11 de julho de 2010

[welcome to mozambique] corrupção a céu aberto...mas se os outros têm os olhos fechados...

"Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso de poder. Mas Jonas ria-se: ele não abusava. Os outros é que não detinham poderes nenhuns... E repetia: cabrito come onde está amarrado."
Mia Couto in O Último Voo do Flamingo

[madrugada em iapala] nascer na missão


(Continuação de ontem...)

– Parabéns, mamã! É um rapaz lindo! Como é que se vai chamar?
 – Não! Há-de chamar...
– Como?
– Pois, Doutora – repreende-me a D. Catarina – os bebés não podem ter nome antes de nascer. Até podem morrer! Só depois de nascer se pode fazer o enxoval e dar nome, antes não.

(Estou sempre a pôr o pé na poça, credo... Mas mais uma vez faz sentido o que já me tinha explicado a Irmã Lurdes: na cultura macua o conceito de futuro é tabu. O futuro é propriedade dos antepassados e fazer planos pode ser uma intrusão num terreno interdito, um terreno que não pertence às pessoas e a falta pode ser gravemente punida...)

Bem, já que não percebo a cultura, tenho de me preocupar com as coisas que sei fazer. Inspecciono a placenta, que veio intacta, o útero também está bem contraído, graças à oxitocina e à ONG alemã – e não há sinais de hemorragia grave.

Mas agora tenho de me ir deitar urgentemente, antes que me demova de vez a perspectiva de voltar a atravessar o caminho para casa, escrutinando o terreno com a lanterna. Antes que o momento de magia que acabei de viver me invada totalmente e me faça fazer qualquer coisa completamente louca, como ficar a dormir aqui mesmo, ao relento nesta noite fantástica, no chão da varanda do hospital juntamente com os familiares dos doentes, invadida pelo cheiro intenso da savana e adormecer a olhar a paisagem das estrelas e das montanhas a arder aqui e ali.

Quando chego à casa da Missão cruzo-me com as Irmãs que já se levantaram para rezar as Laudes na capela.
– Era rapaz não era? – perguntam.
– Sim, nasceu um rapaz agora mesmo, como é que sabem?
– Pelo alarido que até aqui se ouviu... só podia mesmo ser o nascimento de um rapaz!

(E ainda o dia acabou de romper...)

sábado, 10 de julho de 2010

[e a noite continua] em iapala



(Continuação da história de ontem...)

Do outro lado do hospital ouvem-se gemidos de mulher e alguém que me chama pelo nome, mas não os consigo localizar, virão da maternidade? Atravesso o pátio tentando não acordar os familiares dos doentes internados, que dormem no chão do alpendre. Os gemidos vêm, de facto da sala de partos. Oiço a voz da parteira incitando mansamente a parturiente a fazer força.

– Está tudo bem, D. Catarina?
– Entre, Doutora.

A sala de partos, alumiada por uma única vela, está cheia de penumbra e sombras enormes nas paredes, mas consigo distinguir claramente a face da jovem grávida que trouxemos de Murralelo, que afinal era uma das professoras da escola da aldeia. Já estava ao corrente de que todos os seus partos anteriores tinham sido em casa mas, apesar de ser ainda jovem, este seria o décimo filho e como no ano passado tinha tido um nado morto após um trabalho de parto particularmente complicado, decidira-se a vir dar à luz este “menino de ouro” no hospital da Missão, deixando os outros filhos durante uns dias ao cuidado das tias e dos irmãos mais velhos.

Deitada, completamente despida sobre a marquesa surpreende-me o seu corpo completamente tatuado do peito para baixo, até aos joelhos, com padrões em relevo bem delineados e quase perfeitamente simétricos, que só podem ter sido realizados com incisões cutâneas profundas de forma a fazer este tipo de cicatriz. Tento não fazer uma expressão que denuncie o meu sentimento de horror por aquele corpo martirizado. Beleza, a quanto obrigas... Ao seu lado, a D. Catarina tem a mão sempre pousada sobre o ventre da jovem mãe, num quadro que faz evocar a maternidade de outros tempos.

A parteira é uma mulher robusta, com uma personalidade forte e determinada, viúva e também mãe de dez filhos, infelizmente nem todos vivos. Tem sobretudo uma intuição fortíssima, em que já confio quase cegamente. Na maternidade, onde raramente estou porque tenho imenso trabalho noutros serviços, sem o apoio de um aparelho para registar a frequência cardíaca do feto e as contracções uterinas fico completamente cega, sem qualquer referência para me orientar e os meus parcos conhecimentos de Obstetrícia servem-me para muito pouco... Ela, pelo contrário, não arreda pé da sala de partos, dure o trabalho de parto quanto tempo durar. E um parto com a D. Catarina é um momento singular de íntima serenidade, que quase nos faz jurar que afinal é impossível haver gritos e choros e descontrolos...

Quando o parto decorre normalmente, ela conversa com as mamãs, canta canções às mais novas, faz-lhes massagens de relaxamento no intervalo de cada contracção, mas quando se apercebe de que alguma coisa está a correr mal, transfigura-se completamente... E já várias vezes antes me chamou, preocupada, a dizer que há um feto em sofrimento que tem de ser transferido para o Hospital Distrital de Ribáué, onde há um bloco operatório. Nem sequer consigo imaginar como é que ela, sem auscultar o feto, percebe o que se passa, mas quando me pede para chamar a Irmã Lurdes para transportar a mamã, quase invariavelmente tem razão.

Mas vamos à vida, que já estamos novamente a divagar sem fazer nada, que aflição!, e a pobre parturiente a aqui a gemer, com a dilatação quase completa... O que lhe vale é que tem tido sempre as mãos experientes da D. Catarina a massajá-la para a ajudar a relaxar. Este parto também não está a correr bem. As contracções estão muito espaçadas e a D. Catarina está preocupada. A bolsa das águas já rompeu há muitas horas e a senhora está a ficar com febre. E o pior de tudo é que o útero se está a contrair pouco e a senhora corre o risco de ter uma grande hemorragia no pós-parto... Ausculto os batimentos cardíacos do feto, que estão anormalmente acelerados... Sei o que isso quer dizer: Infecção!

– Não podemos colocar um antibiótico à senhora?
– Sim, Doutora, mas tem de prescrever.
– Claro, prescrevo já. E não têm nada para aumentar as contracções?
– Talvez haja oxitocina no armazém... Se a Doutora tiver a chave.
– Tenho, vou ver se encontro alguma coisa que nos sirva...

Havia, felizmente, duas ou três ampolas com um rótulo em alemão, certamente doadas por alguma ONG que coopera com as Irmãs. Em pouco tempo as contracções tornaram-se mais próximas e prolongadas.

– Já está quase, faça força outra vez. Quer fazer o parto, Doutora?
– Não, nem pensar! Nunca fiz nenhum...
– Não acredito, Doutora está a mentir!
– Não, é verdade. Ou melhor, fiz um, mas com muita ajuda...
– Eu ajudo também. Doutora vai fazer o parto.

Não havia como argumentar, a D. Catarina tinha decidido que quem faria o parto seria eu. Arregacei as mangas e calcei as luvas mesmo a tempo de receber o bebé. Foi muito fácil este parto, realmente, foi quase só amparar o períneo e impedir que o bebé caísse estatelado no chão... Graças a Deus! A natureza providenciou tudo o resto. E à pálida luz da vela houve um momento incrível de expectativa e silêncio absoluto, em que entreguei o menino à D. Catarina, que o esperava mansamente ao meu lado, com uma capulana nas mãos. O bebé teve choro imediato, num grito que encheu a noite e os gemidos e receios da mãe transformaram-se em riso e agradecimento.

– Nasceu! Nasceu e é macho! Papá, nasceu e é macho!

O grito de júbilo da D. Catarina enquanto eu cortava o cordão umbilical e o alarido das familiares da parturiente que se seguiu só pode ter acordado o hospital inteiro! Também eu estou quase de lágrima a assomar ao cantinho do olho... Ainda nem acredito que, sem contar com nada disto, acabei de receber um bebé pelas minhas próprias mãos...

(Continua, mais uma vez...)

[antes da silly season] o concerto mais hilariante de todos os tempos

sexta-feira, 9 de julho de 2010

[pensando bem] se calhar vou hibernar mais cedo

Provas de que a silly season este ano terá chegado ainda em Julho:
  1. O Cristiano Ronaldo teve um filho de mãe incógnita;
  2. Um polvo, alegadamente chamado Paulo, deu a vitória à Espanha no Mundial;
  3. Um periquito em Singapura, chamado Oliuliu segundo o meu oráculo (que obviamente nunca acertou no Euromilhões e portanto também nunca teria acertado no nome do periquito) e chamado Mani segundo os jornais da Internet, deu a vitória à Holanda na final;
  4. Metade dos portugueses terá feito pelo menos um trocadilho com polvo à lagareiro nos últimos dias.

[iapala de madrugada] mais um dia

 



É manhã novamente. Arrefeceu muito durante a noite e, na cama morna, minutos antes da hora de levantar, o já meu conhecido linguajar pluvial dos coqueiros recria uma ilusão outonal, calma e reconfortante, de chuva branda num sábado de manhã. Recompensa justa por uma noite sobressaltada. Uma chamada urgente do hospital a meio da noite por causa de um menino que chegou febril e em crise convulsiva prolongada, trazido pela família já em desespero.

Apesar de o hospital ser mesmo em frente à casa das Irmãs, o medo que os africanos têm dos cães que guardam a Missão, que presumo motivado pela raiva que por aqui abunda, teria decididamente impedido que me fossem chamar durante a noite. Mas a Irmã Lurdes, Superiora da Missão, criou um sistema simplesmente hilariante para contornar o pânico que os africanos têm dos cães sem pôr em causa a nossa segurança: dois apitos de árbitro de futebol, adquiridos em Portugal no Estádio do Benfica pendiam no Hospital pregados à parede, um na Maternidade e outro na Urgência Geral, prontos para qualquer eventualidade. E esta noite tinha sido acordada pelo silvo impaciente do Glorioso* expulsando-me da cama com cartão vermelho. Vesti-me rapidamente, um pouco às apalpadelas e saí para a rua de lanterna em punho, que apesar do luar é preciso ver bem onde se pisa, não fosse aparecer alguma cobra perdida no jardim...

(Aqui de nada serve a valentia dos que dizem não ter medo de animais rastejantes: ingenuidade! Não temos soro antiveneno no hospital - não existe em toda a província - e nem quero imaginar como é que faria a mim própria o desbridamento de uma ferida sem qualquer anestesia. Mesmo durante o dia é preciso ter muito cuidado, ver sempre onde se põe os pés e, no meio do capim, pisar só onde o da frente pisa. E só passar por debaixo de um cajueiro se se ouvir claramente o chilrear dos passarinhos: de outro modo há cobras nos ramos pela certa! Mas vamos à história, que deixámos o menino a convulsivar à porta do hospital, com a família a dizer, como habitualmente, que o menino estava possuído pelos antepassados. O que vale é que enquanto divagava sobre as cobras lhe administrei um diazepam e a convulsão lá cedeu...)

Em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo para perder à espera de análises laboratoriais. Nem o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora... Só então arranjámos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e tivemos de o acomodar no corredor... Na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no pwarrow, um abrigo amplo, com telhado mas sem paredes, situado fora do edifício principal do hospital. Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente. Mas devemos ter ido a tempo. A acreditar no que a família me diz, a doença começou esta noite. E até estou surpreendida por me terem trazido o menino ainda nas primeiras horas de doença, já que normalmente a família procura antes de mais um curandeiro. Mas depois percebi que só vieram primeiro ao hospital porque não encontrariam um curandeiro durante a noite. E só depois de uma discussão acesa sobre se esperariam ou não pela manhã... Mas o que interessa é que felizmente se tinham decidido a vir.

Demorei-me um pouco a escrever no processo e só quando saí do gabinete me apercebi de que um homem ainda jovem chorava baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino, que dormia sob o efeito da terapêutica.

– O senhor é o pai?
– Não, sou tio.
(Não há maneira de interiorizar esta cultura, caramba! Isto é uma sociedade matrilinear. Quem tem o poder paternal é o tio materno. Vê se aprendes!)

Talvez compreenda Português, pensei:
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que eu lhe dei para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver, porque todas as pessoas que tinha visto com malária cerebral tinham sucumbido. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino resistisse. Parou de chorar.

– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o sobrinho...

(Continua, como não podia deixar de ser.)

* Também tu, Iapala?

[eu tive gémeos] e sobrevivemos todos


A mãe do Miguel e do Micael em Nampula, à espera da consulta dos seus meninos, para quem as Irmãs promovem o apadrinhamento à distância.

Dedicado à minha querida amiga C., que está à espera de duas princesas.

[alhos e blogalhos] da áuga benta

Sinceramente! Não se vos pode dar a mão, que querem logo amarinhar por aqui acima para arrancar também o pé (com perdão para os mais sensíveis para as questões gravíticas, que eu também sei que obviamente não se amarinha por ninguém acima para se lhe arrancar o pé, sobretudo se se partir da mão, a não ser que eu estivesse a fazer o pino e isso é coisa que já não faço desde o liceu)... O potencial do google para o disparate é infinito!

Então vai uma pessoa falar sobre baptismos de emergência nas Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais (está bem que sobre uma situação absolutamente descabida e caricata, mas ainda assim...) e nem duas horas depois já tinham vindo aqui parar cinco ou seis navegadores do google à procura dos poderes da água benta para fazer feitiços! Um deles até escreveu áuga benta. De certeza que só para me exasperar, que eu bem sei... Meus amigos, eu não merecia isto!

Por outro lado, já deve ser isto a que chamam a silly season... Será?

quinta-feira, 8 de julho de 2010

[improbabilidades] água benta

Há uma coisa que ando aqui para vos contar há algum tempo. Simplesmente achei que talvez não fosse muito apropriado (e não, não é nenhuma história galdéria, do tipo What happens in Vegas...). Mas é sempre assim, consigo resistir a tudo menos à tentação.

Dizem os entendidos que os recém-nascidos não são pecadores (por mais que façam chichi para cima das pediatras quando elas estão amorosamente a ver se está tudo no sítio, por mais que façam cocó na água do banho, por mais que berrem com cólicas pela noite fora e façam questão de mamar de duas em duas horas sem pausa nocturna). Dizem também os entendidos que portanto, quando estão em risco de vida, não é necessário administrar-lhes a Santa Unção e que para esse efeito basta o baptismo. E que, numa emergência, qualquer pessoa que já tenha sido baptizada pode baptizar.

Ora, na Unidade de Cuidados Intensivos a Recém-Nascidos de um grande hospital da nossa praça, a água benta foi proibida pela Comissão de Controlo de Infecção Hospitalar. Porque lá-lá-lá e béu-béu-béu, que não se podia armazenar líquidos não estéreis. Ou melhor, poder, poder até podia, mas que no caso particular da água benta era melhor não... E, pronto, a bem dizer, também não é necessário utilizar água benta num baptismo de emergência, basta um pouco de água limpa. Mas a equipa de enfermagem do referido hospital é que não se ficou com aquela, que água benta é que era, que água benta é que tinha de ser. E pronto, a bem dizer, os bebés também nunca tomam banho em água destilada esterilizada... E estava aberta a discussão.

E então, perguntam os meus amigos, como foi que terminou a história? Então, a história terminou da forma mais improvável: com um protocolo rigoroso, elaborado numa reunião conjunta das equipas médica e de enfermagem*, em que a água benta seria preparada pelo padre em condições de assepsia e guardada no armário dos estupefacientes - que era o último sítio onde a Comissão de Controlo de Infecção Hospitalar se lembraria de ir procurar!

* Reunião essa que teve a seguinte ordem de trabalhos: 1. Procedimentos para a ventilação não-invasiva; 2. Baptismos de emergência.

[welcome to mozambique] instantes


Um transeunte inesperado numa rua de Nampula. Certamente um primo do Nico (Abanico? Andrenico? Besnico? Joanico? Paulinico?)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

[welcome to mozambique] ordem e trabalho


Ora atentem, estimados leitores, no improvável plano de limpeza afixado na parede do Centro de Saúde de Iapala.
Limpar teias de aranha às segundas, quartas e sextas. Limpar a camas e a mesinhas de cabeceira à quarta e ao sábado... Limpeza geral de 15 em 15 dias! E muito ordeiramente termina com um limpinho Decisão tomada, decisão cumprida...
E não pensem que o Centro de Saúde, lá por ter casas de banho, tinha água. A casa de banho (só havia uma) era exclusivamente utilizadas pelos funcionários mais graduados e utilizando baldes de água como autoclismo. Os doentes, obviamente, utilizavam as latrinas do pátio, ou iam ao mato... E tomavam banho e lavavam a roupa no rio que passava a uns trezentos metros do Centro de Saúde.

[aviso: ignore este aviso]

Estou definitivamente a pecisar de hibernar... E não adianta reclamarem mais que hibernar é coisa para se fazer no Inverno e que para se dormir um Verão inteiro a palavra certa não é esta, que eu não sou nenhuma purista da linguagem (eu sou exigente com as sílabas métricas mas isso é apenas uma questão de ritmo). Dizem os especialistas que a silly season decorre entre Agosto e Setembro e acho que é mesmo este período que me convém. Até lá vou-me mantendo por aqui, nas intermitências do sono.

[inspiração para uma despedida] memórias

Ontem tive uma experiência de homeopatia à custa desta melancolia que tenho por não te ver. Entrei no carro e percebi que as moléculas do ar guardavam, diluída, a memória da tua presença. E não haveria homeopata nenhum que conseguisse recriar, de forma mais perfeita, a tua memória. No ar do meu carro respirava-se uma gota de bruma das três da madrugada, uma curta caminhada, dois sorrisos e uma conversa de reencontro ligeiramente triste... E agora só me resta acreditar que o ar do meu carro me pode me pode curar da tua ausência.

* Não é preciso dizer que este post também é para ser servido com uma dose generosa de ovos escalfados, pois não? É que qualquer dia ainda me apelidam de esquizotípica e ainda a revolução vai no adro....

segunda-feira, 5 de julho de 2010

[welcome to mozambique] imagens e sorrisos do norte



Interrompemos os planos de hibernação na silly season para vos mostrar imagens lindíssimas da Ilha de Moçambique (Nampula) e de uma viagem de chapa - já aqui vos contei mais ou menos como é uma viagem de chapa, mas em vídeo tem outro impacto - captadas pelos olhos de um amigo a quem admiro muito.

[aviso: ignore este aviso] a silly season

Avisam-se os estimados leitores que vamos hibernar na silly season. Já demos início ao processo de engorda para podermos passar o Verão a dormir, processo esse que passa por comer ovos escalfados aos pares, para agradar a este senhor (ver comentário num dos posts aí para baixo) e também para completar um ciclo de private jokes que começaram com um marcador de livros no Hospital do Rego num Dezembro que já lá vai. Algures pelo meio apareceu um ovo escalfado, cujo contexto ninguém percebeu (inclusivamente o próprio ovo, que não foi tido nem achado), mas que desde então se tornou no símbolo de uma revolução silenciosa... (Estamos a conseguir passar a mensagem? Humm... Se calhar não...)

Bem, o que queríamos mesmo dizer é que nos estamos a preparar para hibernar na silly season e que neste momento só estamos à espera de um sinal (uma notícia bombástica num jornal, um acontecimento descabido, um casamento improvável) para percebermos quando é que a silly season começa verdadeiramente. Até lá estamos a planear ingerir ovos escalfados como se não houvesse amanhã. Nos nossos planos incluem-se também, com distintos graus de prioridade, champanhe com morangos, pataniscas com arroz de feijão e diversos pratos de cozinha de fusão cujo nome desconhecemos. Até lá we'll keep in touch.

Pronto. Era só isto. Quer dizer... não, não era só isto que eu tinha para vos dizer. Mas por enquanto não posso adiantar mais nada. E também ainda não é desta que começo a contar-vos a história do Lépido.

domingo, 4 de julho de 2010

[alhos e blogalhos] nossa senhora do google, rogai por nós

Ao senhor investigador - ou senhora, não faço a menor ideia, os IP não vêm com género, mas imaginei um homem, não sei porquê - que veio aqui ao mato, ou ao meu cantinho, como habitualmente se diz na blogosfera, à boleia do google para aprender a falar com sotaque cigano, posso sugerir* três formas honestas e igualmente eficazes:

a) Pode ir trabalhar para o meu hospital: um dia naquele Serviço de Urgência e até fica a saber como é possível um bebé chorar num choro gritado com sotaque (verdade, verdadinha!). Três dias depois já consegue certamente gemer um lamento cigano (em dó menor, eles gemem sempre em dó menor...). E se lá ficar noites suficientes a vaguear pelas enfermarias, como bónus ainda pode ter a sorte de aprender as canções de embalar mais bonitas que existem, que são as que as mães ciganas cantam para os filhos. Eu própria às vezes, quando sou chamada a uma enfermaria durante a noite, me demoro um bocadinho a ouvi-las...;

b) Pode ir fazer trabalho de voluntariado para a Cova da Moura ou outro bairro afim;

c) Pode tentar seduzir uma cigana e fugir com ela dois dias depois para escapar à ira da família. No fim casa-se com ela em segredo (eu disse que era uma forma honesta e portanto, se é para ser honesto, é para casar, ok?).

Boa sorte!
* Na qualidade de expert no assunto.

[banda sonora para uma despedida]*


(Até podia ser a banda sonora para um reencontro, mas se calhar parece mal...)


* Este é um post que pode ser servido com ovos escalfados, para quem for apreciador desta iguaria. Há um outro que também pode ser servido com o mesmo acompanhamento, mas não se pode abrir o jogo todo, era o que faltava!