segunda-feira, 15 de agosto de 2016

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata

Nestes dias, talvez porque o baby tem estado em casa dos avós há um dia e meio e as saudades me apertam o peito, tenho-me lembrado dos dias em que o ia visitar, ainda antes de saber se o poderia levar para casa, ainda antes de me terem declarado apta para ser mãe dele, durante o processo de "escrutínio" que demora seis meses, em que somos entrevistados, submetidos a testes e provas e temos de provar quem somos e o que realmente queremos.

Tinha conhecido o baby no meu hospital um mês antes e, antes desse mesmo dia terminar, decidira que não o iria deixar ficar sem mãe. Se não aparecesse uma família para ele, eu própria iria lutar para que fosse meu filho para sempre. Nem quinze dias depois o baby teve alta do hospital e eu mal tinha tido tempo de o conhecer bem e de brincar com ele. Foi para um CAT (Centro de Acolhimento Temporário) a mais de uma centena de quilómetros de Lisboa, que se tornou o meu local de peregrinação nos meses seguintes. Não assisti à saída dele. As enfermeira depois relataram-me que tinham ficado inconsoláveis de o terem entregue depois de mais de um ano a cuidar dele, tão ligadas que estavam. Que só esperavam que fosse adotado depressa para ir finalmente para uma família...

No primeiro dia de visita o coração pulava-me, as borboletas na barriga saltavam: será que ele me vai reconhecer? Será que vai aceitar vir para os meus braços? Como será que as senhoras da instituição me vão tratar? Será que aceitam a visita de uma desconhecida que quer adotar o menino mas que ainda não tem autorização legal para tal? Será que me vão dar condições para vir visitar novamente amanhã? Ou vão impedir que crie laços com o menino se não têm a certeza de que vou ser mãe dele, já que depois vai ser ainda mais difícil para ele adaptar-se a outra família... E eu? Será que vou conseguir no meio disto tudo sobreviver se no fim não me entregarem o menino? E se não me declararem apta para adotar? Será boa ideia passar por isto sem ao menos me proteger um pouco?

Foi então que toquei à porta e a auxiliar da instituição me abriu a porta com o baby ao colo... O coração gelou-se-me... O baby não me sorriu, não deu qualquer sinal de me reconhecer, nem sequer olhou para mim. Antes da alta do hospital ele sorria para quem quer que fosse, como qualquer criança que não tem uma vinculação com ninguém em especial. Pensei que me estava a estranhar. Afinal de contas já não me via há um bom par de dias. Mas não, também não olhava para a auxiliar... Perguntei-lhe o que achava sobre isso. Respondeu-me que ele evitava o contacto ocular. Que no primeiro dia depois de ter chegado do hospital tinha dormido o dia todo, não lhe tinham conseguido quase dar de comer, tinha-se recusado a levantar-se da cama. Mas nos dias seguintes, com alguma insistência lá se tinha adaptado à rotina da casa. Já lhe conseguiam dar de comer. Desde há alguns dias também já lhe conseguiam pegar ao colo. Mas era um uma fita das antigas para mudar a fralda e dar banho... Estavam preocupadas e desconcertadas. Perplexas. Não sabiam o que se estava a passar. Ninguém lhes tinha dito que o menino tivesse assim tantos problemas de desenvolvimento... "Problemas de desenvolvimento" (!), foi o termo que a auxiliar usou, certamente já verbalizado pela psicóloga da instituição...

Uma fúria surda encheu-me o coração. Eu sabia que tinham ido buscar o meu menino ao hospital assim sem mais nem menos. Sem uma única hora de transição. "Viemos busca-lo, deem-no cá!" E foram-se embora com ele para o CAT. Eu sei que são instituições públicas, que não havia mães no processo, que as duas instituições distavam mais de cem quilómetros uma da outra. Que os recursos humanos são escassos e que um hospital e um centro de acolhimento têm dificuldade em dispensar dois elementos durante vários dias para fazer uma transição. Mas isto não se faz a um bebé! O meu menino, já de si tão frágil, abandonado à nascença, sem vínculo com ninguém em especial, que já tinha passado por oito cirurgias e mil tratamentos dolorosos, tinha perdido de um dia para o outro todas as referências e estava num sofrimento atroz!

Entregou-me o menino e fomos os dois para a sala de visitas. Era julho. Ou junho, aliás. Recordo-me do calor que se fazia sentir, que me sufocava, do olhar do baby que se me esquivava, dos seus movimento do tronco inclinando-se para a janela. Sem comunicar de forma nenhum. E, ao meu colo mas de costas para mim, abria e fechava a janela sem parar, alheado de tudo. Sem olhar para mim, sem olhar para o que se passava na rua. Apenas concentrado no movimento da janela a abrir e fechar. Eu tinha levado livros, brinquedos. Tentei diversas vezes chamar-lhe a atenção para o que trazia, mas em vão. De cada vez que lhe tentava captar a atenção, desencadeava uma birra descomunal. Se lhe mostrava um livro, levava com uma rosnadela. Uma hora e meia de visita passou-se deixando-me exausta, triste e frustrada. E ao baby também. Quando o entreguei, sem que lhe tivesse conseguido captar o olhar ou provocar um sorriso, estava destroçada e só pensava: "Será que vou aguentar voltar aqui? Será que aguento mais um dia disto? O que será que se está a passar?"

Fiquei arrasada. Não consegui contar a ninguém o que se tinha passado nem o que tinha sentido. Não consegui dizer o que se passava com o meu baby. Eu própria não compreendia muito bem. E tinha receio que alguém dissesse o que eu efetivamente vim a ouvir, ipsis verbis, semanas depois (que o menino tinha tido "uma regressão autística") e que me tentasse demover do meu projeto meio louco.

Agora sei, mas na altura não sabia: o meu menino tinha uma depressão da primeira infância! Uma depressão tão grave que se confundiu com autismo. Pela primeira vez vacilei. Mas não podia desistir. Com o diagnóstico de autismo então é que não apareceriam candidados a adoção e o menino ficaria sem família. E era este o menino que eu sempre imaginara que me cairia nos braços: um menino que mais ninguém quisesse. A única certeza que eu tinha é que era este o menino. Mas já não sabia se seria capaz de cuidar dele...

(talvez continue...)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

[vozes brancas*] voar mais alto do que a vista imagina...

Há poucos dias, antes da sesta, a minha mãe contava pela enésima vez ao baby-de-mulata a história do David e Golias (a quem o baby teima em chamar Gorilas), quando aquela alminha resolveu puxar mais um assunto difícil...

- Avó, o Rei David já morreu?
- Já, meu querido, o Rei David já morreu há muitos, muitos anos, que esta história aconteceu ainda antes de o Jesus ter nascido...
- Ah... pois, avó... Eu sabia, foi há mesmo muitos anos. [Ainda não era aqui que ele queria chegar, certamente.] Mas ele morreu porquê?
- Porque era muito velhinho, querido. [A resposta chapa-cinco lá de casa, não há cá mais explicação nenhuma antes dos sete ou oito anos, altura em que entrará a nuance chapa-sete à baila, das doenças e dos acidentes, muito mais ansiogénica e que por enquanto, felizmente, ainda não apareceu.]
- Ah. Pois, avó, era velhinho... E para onde é que ele foi?
- Foi para o céu.
- E quando eu morrer também vou para o céu? [Ah, era aqui que ele queria chegar!]
- Sim, querido, quando morrermos vamos todos para o céu.
- Tu também vais? [E aqui também...]
- Sim, filho, eu também.
- Ah, então já sei! Posso ir ao teu colo?
- Claro que sim, querido! [A minha mãe, já com a voz embargada... Como se explica o que nem nós próprios compreendemos? Como aplacar a angústia do desconhecido de uma criança?]
- Pronto, então está decidido, quando morrer vou para o céu ao colo da vovó! E depois, avó?... Voltamos cá para baixo?

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.