sábado, 19 de novembro de 2016

[oh happy day!] então, beijo-de-mulata, não falas do casamento?

É verdade, meus queridos amigos... casei-me com Mr. Shaka no dia 12 de novembro. Ganhei toda uma nova credibilidade, um anel de noivado, uma aliança de casada, dois apelidos novos (agora chamo-me Senhora Dona beijo-de-mulata-de-Shaka-Zulu, valha-me Deus, beijo-de-mulata Maria, onde é que tu estavas com a cabeça?), uma despedida de solteira de sonho e um dia de princesa! E quinze dias (just say it!, quinze!) de licença!

Eu nunca tinha sonhado com esse dia. A minha felicidade não passava por aí... É verdade, meus amigos, garanto-vos. Mas enfim, os milagres acontecem na minha vida e tenho de os aceitar... O dia foi simplesmente perfeito para mim... foi quase mágico entrar mais uma vez na Basílica da Estrela, onde ia à missa em criança e ouvir o órgão histórico que acompanhava as missas da minha infância. E onde Mr. Shaka foi organista durante anos. E recordar que foi ali que eu e Mr. Shaka nos reconhecemos, vários anos depois de nos termos visto apenas uma vez... Ouvir a música de entrada, que era a pièce de resistance do concerto em que nos conhecemos (traduzida e adaptada por mim, claro, porque eu não queria que se falasse nos moinhos satânicos de Inglaterra no casamento, valha-me Nossa Senhora da Língua Portuguesa), cantada pelo melhor coro feminino que alguma vez poderíamos ter. E foi uma quase-surpresa ouvir as músicas que Mr. Shaka escreveu e orquestrou para a missa do casamento (não tenho autorização para as divulgar, que são apenas para consumo doméstico, um quase-segredo de família, diz ele).

Também o meu amigo João Andrade Nunes, para mim o melhor compositor da atualidade, não me desiludiu. Como aliás, nunca desilude em nada do que faz ou escreve. Já tinha escrito a ação de graças para o batismo do meu sobrinho, Baby M., com a letra da canção de embalar que eu ouvia cantar às mamãs macuas no hospital em Moçambique. Lembram-se?

Quero agradecer-te por teres nascido
Dorme, meu amor, fica tranquilo
Porque enquanto estiveres a dormir
eu fico aqui a repetir o teu nome
E Deus vela por todos nós...

Desta vez escreveu-nos uma ação de graças de ir às lágrimas. Podem ouvi-la aqui, desde que a ouçam até ao fim...



E perguntam vocês, e o baby-de-mulata, como se portou? Ah, esse foi um querido! Quer-se dizer... foi um querido depois de passado o choque inicial, semanas antes. O drama e o horror aconteceram quando descobriu que o tal de vestido de noiva com cauda, de que tanto se falava, tinha uma cauda sim, mas não como os dragões ou os dinossauros. Era de renda, acredite-se! E ele que estava tão entusiasmado... Como era possível? Traição! De renda, mãe? E... branco?! Ai valesse-lhe São Jorge...

Mas como eu dizia, passado o choque inicial, ainda demorou a aceitar que não podia ir vestido de dragãozinho, a fazer pendant com sua mãe. Mas, por fim, depois de várias negociações (e de alguns subornos, confesso, que nestes casos não há que olhar a meios), lá aceitou ir à baixa experimentar um fato a condizer com o papá. Mas sempre a ameaçar que só entrava na igreja se fosse ao meu colo. Menino das alianças é que ele não queria ser. Ainda por cima para me dar de mão beijada ao pai... Como se sabe, Freud pode ter dito muitos disparates, mas nisto não falhou!

Passou-me de tudo pela cabeça, que fugisse da basílica, que se me atirasse para o colo, que se borrifasse para as alianças e fosse jogar à bola para o adro da igreja. Tudo menos a forma irrepreensível como se portou! No momento certo olhou para mim e para o avô, que me dava o braço, e lá foi à minha frente, no compasso certo, ao lado dos primos, Mr. B. e Baby M., com a salva de prata na mão, direitinho até ao altar. Só vacilou no consentimento, quando eu e Mr. Shaka trocámos as alianças. Vi bem na cara dele que ficou triste quando percebeu que a mãe só se casou com o pai. Mas bastou sairmos do nosso lugar, mesmo a meio da missa, para lhe irmos dar um abraço e o baby lá se animou outra vez.

Não me apetecia despegar dali no fim, ao ouvir mais um cântico de Mr. Shaka, o cântico de vida nova... Mas lá fora aguardavam-me aqueles que amo incondicionalmente. Não estavam todos, é certo, porque não é possível nunca que venham todos os que queremos, por variadíssimas razões. Mas todos os que estavam eram muito, muito especiais. E isso basta.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

[vozes brancas*] um campo de batalha

Na semana passada, quando cheguei a casa da minha mãe, tinha o meu pintainho doente, jacente na cama da vovó com um ar miserável, a dormir com uma cara de quem está desesperado de dor e febre. Deitei-me ao lado dele de mansinho e tentei perceber se tinha dificuldade em respirar ou algum outro sinal de gravidade.

- Mãe...
- Estás acordado, filho?
- Sim, só tenho os olhos fechados porque me dói a cabeça.

A mãe que habita em mim é histérica, já sabemos. Dor de cabeça e febre?, ai valesse-me Nossa Senhora da Pia Mater! A pesquisa de sinais meníngeos (vulgo, encostar o queixo ao peito) deixou-o profundamente triste comigo: "Dói muito, mãe, não me mexas a cabeça!" A pediatra descansou, mas a mãe histérica quase ficou com o coração em sangue (pobre pintainho, uma boa mãe nunca faria isto a um filho). [E podia abrir aqui um longo parêntesis sobre esta vozinha interior de quem sou vítima de bullying diariamente, que me assola a alma e me diz que uma-boa-mãe-nunca-faria-as-coisas-que-eu-faço ao meu baby lindo, para vos perguntar se também vocês, mães que me leem, têm essa voz dentro do peito, mas eu hoje vim aqui para contar uma história, não vim para ter essa conversa nem para apresentar queixas de assédio moral, portanto, adiante...] Enfim, lá fiz das tripas coração, mandei calar a voz do grilo do Pinóquio e continuei a marcha diagnóstica. O baby-de-mulata, apesar do desconforto, compreendeu que era preciso abrir os olhos e a boca.

As amígdalas inchadas, a pele do peito vermelha e áspera e a língua em framboesa não deixavam lugar a dúvidas quanto ao diagnóstico**, o que acabou por me confortar. Era só preciso fazer o papel de mãe, que o antibiótico faria o resto. Mas o baby estava de facto em pânico, preocupadíssimo com o que se passava com ele.

- Mãe, podes dar-me colo?
[Mau, ele, sempre tão cioso do seu espaço na cama, a pedir colo? Está mesmo aflito!] - Anda cá, meu amor...
- Mãe, porque é que a garganta me dói?
- Porque tens lá um micróbio.
[O olhar subitamente horrorizado de quem, de repente, tem um filme de terror a passar-lhe diante dos olhos, com todas aquelas imagens horrendas de micróbios dos anúncios de detergentes e sabonetes, aqueles, estão a ver, meus amigos?, os que têm monstros a representar bactérias patogénicas?] - Um micróbio, mãe? Um monstro? O que é que ele me está a fazer à garganta?
- Não te preocupes, a garganta dói porque os glóbulos [já tivemos muitas vezes a conversa dos glóbulos a propósito das inúmeras coisas que ele não gosta de fazer, incluindo lavar as mãos e comer fruta] estão a combater os micróbios e por isso a garganta fica muito inchada porque eles estão para lá em lutas valentes.
- Mas porque é que a garganta fica inchada?
- Porque eles estão a lutar com muita força.
- Ah, com uma espada, mãe? Ou como uma tourada?
- Hum... com uma espécie de espada.
- E depois o que fazem quando os micróbios morrerem?
- Depois comem-nos.
[Um olhar aliviado e feliz] - Ah, boa! Para eles é bom, até podem fazer um petisco! Vão ficar muito contentes, então!

E pronto, só vim aqui demonstrar por A mais B que o grilo do Pinóquio pode achar que não mereço o filho que tenho, mas eu tenho o melhor filho do mundo!

* Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
** Escarlatina, para os que não estão habituados a doenças pediátricas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

[vozes brancas*] reforço positivo

Há dias, numa consulta de desenvolvimento, os pais de um menino com autismo manifestavam a sua perplexidade com o programa de treino intensivo [cujo nome obviamente não posso mencionar] em que tinham inscrito o filho:

- Sabe, doutora, eles fazem sempre o reforço positivo com comida. Mas em todas as sessões observam que ele responde muito melhor às palmas e aos elogios do que à comida.
- A na sessão seguinte?
- Como são sempre terapeutas diferentes, acabam por fazer o mesmo. Mas depois vêm dizer-nos que ele é muito sociável e que responde melhor aos elogios e palmas do que à comida, que ele tem muito boas características pessoais.
- Ah... e o que é que acham disso?
- Achamos que se calhar vamos procurar outro programa, o que acha, doutora?
- Claro! Onde é que já se viu um programa em que o terapeuta é sempre diferente e se vê que o menino responde melhor de uma maneira e não se ajusta nada ao menino na sessão seguinte? Ele quer ligar-se ao terapeuta e vai evoluir muito melhor de outro modo!

(E depois lembrei-me de uma cena familiar em casa dos meus pais: Há quase um ano, tinha o baby-de-mulata quatro anos e pouco. Depois de Mr. B, o meu sobrinho de sete anos, ter anunciado que queria ser engenheiro civil como o pai, o baby-de-mulata anunciou ao mundo em geral, e ao primo e a mim em especial que o estávamos a ouvir, que quando crescesse haveria de ser treinador de golfinhos. Já eu me perguntava quando tinha sido a última vez que tínhamos ido ao jardim zoológico ver golfinhos e nem me lembrava, e ele continuava:

- Sabes, é que eu já sei treinar golfinhos.
- Já sabes? - pergunta Mr. B, olhando para mim incrédulo.
- Sim, é muito fácil, queres que te ensine?
Fiz o mesmo olhar de espanto: - Sim, então como é que se treina um golfinho, filho?
- É canja! Quando ele faz bem, dás peixe!

E Mr. B, filho e neto de psicólogos, responde à letra ao que ele está a dizer:
- Tu não me digas que a tua mãe te dá chocolates quando tu fazes alguma coisa bem!

Ao que, muito ofendido, o baby-de-mulata responde:
- Claro que não, a minha mãe bate palmas e diz que está muito contente. Mas os golfinhos não percebem o que nós dizemos, por isso tens de dar peixe!

Pronto, era só um desabafo...)

* Voz branca - timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata

Nestes dias, talvez porque o baby tem estado em casa dos avós há um dia e meio e as saudades me apertam o peito, tenho-me lembrado dos dias em que o ia visitar, ainda antes de saber se o poderia levar para casa, ainda antes de me terem declarado apta para ser mãe dele, durante o processo de "escrutínio" que demora seis meses, em que somos entrevistados, submetidos a testes e provas e temos de provar quem somos e o que realmente queremos.

Tinha conhecido o baby no meu hospital um mês antes e, antes desse mesmo dia terminar, decidira que não o iria deixar ficar sem mãe. Se não aparecesse uma família para ele, eu própria iria lutar para que fosse meu filho para sempre. Nem quinze dias depois o baby teve alta do hospital e eu mal tinha tido tempo de o conhecer bem e de brincar com ele. Foi para um CAT (Centro de Acolhimento Temporário) a mais de uma centena de quilómetros de Lisboa, que se tornou o meu local de peregrinação nos meses seguintes. Não assisti à saída dele. As enfermeira depois relataram-me que tinham ficado inconsoláveis de o terem entregue depois de mais de um ano a cuidar dele, tão ligadas que estavam. Que só esperavam que fosse adotado depressa para ir finalmente para uma família...

No primeiro dia de visita o coração pulava-me, as borboletas na barriga saltavam: será que ele me vai reconhecer? Será que vai aceitar vir para os meus braços? Como será que as senhoras da instituição me vão tratar? Será que aceitam a visita de uma desconhecida que quer adotar o menino mas que ainda não tem autorização legal para tal? Será que me vão dar condições para vir visitar novamente amanhã? Ou vão impedir que crie laços com o menino se não têm a certeza de que vou ser mãe dele, já que depois vai ser ainda mais difícil para ele adaptar-se a outra família... E eu? Será que vou conseguir no meio disto tudo sobreviver se no fim não me entregarem o menino? E se não me declararem apta para adotar? Será boa ideia passar por isto sem ao menos me proteger um pouco?

Foi então que toquei à porta e a auxiliar da instituição me abriu a porta com o baby ao colo... O coração gelou-se-me... O baby não me sorriu, não deu qualquer sinal de me reconhecer, nem sequer olhou para mim. Antes da alta do hospital ele sorria para quem quer que fosse, como qualquer criança que não tem uma vinculação com ninguém em especial. Pensei que me estava a estranhar. Afinal de contas já não me via há um bom par de dias. Mas não, também não olhava para a auxiliar... Perguntei-lhe o que achava sobre isso. Respondeu-me que ele evitava o contacto ocular. Que no primeiro dia depois de ter chegado do hospital tinha dormido o dia todo, não lhe tinham conseguido quase dar de comer, tinha-se recusado a levantar-se da cama. Mas nos dias seguintes, com alguma insistência lá se tinha adaptado à rotina da casa. Já lhe conseguiam dar de comer. Desde há alguns dias também já lhe conseguiam pegar ao colo. Mas era um uma fita das antigas para mudar a fralda e dar banho... Estavam preocupadas e desconcertadas. Perplexas. Não sabiam o que se estava a passar. Ninguém lhes tinha dito que o menino tivesse assim tantos problemas de desenvolvimento... "Problemas de desenvolvimento" (!), foi o termo que a auxiliar usou, certamente já verbalizado pela psicóloga da instituição...

Uma fúria surda encheu-me o coração. Eu sabia que tinham ido buscar o meu menino ao hospital assim sem mais nem menos. Sem uma única hora de transição. "Viemos busca-lo, deem-no cá!" E foram-se embora com ele para o CAT. Eu sei que são instituições públicas, que não havia mães no processo, que as duas instituições distavam mais de cem quilómetros uma da outra. Que os recursos humanos são escassos e que um hospital e um centro de acolhimento têm dificuldade em dispensar dois elementos durante vários dias para fazer uma transição. Mas isto não se faz a um bebé! O meu menino, já de si tão frágil, abandonado à nascença, sem vínculo com ninguém em especial, que já tinha passado por oito cirurgias e mil tratamentos dolorosos, tinha perdido de um dia para o outro todas as referências e estava num sofrimento atroz!

Entregou-me o menino e fomos os dois para a sala de visitas. Era julho. Ou junho, aliás. Recordo-me do calor que se fazia sentir, que me sufocava, do olhar do baby que se me esquivava, dos seus movimento do tronco inclinando-se para a janela. Sem comunicar de forma nenhum. E, ao meu colo mas de costas para mim, abria e fechava a janela sem parar, alheado de tudo. Sem olhar para mim, sem olhar para o que se passava na rua. Apenas concentrado no movimento da janela a abrir e fechar. Eu tinha levado livros, brinquedos. Tentei diversas vezes chamar-lhe a atenção para o que trazia, mas em vão. De cada vez que lhe tentava captar a atenção, desencadeava uma birra descomunal. Se lhe mostrava um livro, levava com uma rosnadela. Uma hora e meia de visita passou-se deixando-me exausta, triste e frustrada. E ao baby também. Quando o entreguei, sem que lhe tivesse conseguido captar o olhar ou provocar um sorriso, estava destroçada e só pensava: "Será que vou aguentar voltar aqui? Será que aguento mais um dia disto? O que será que se está a passar?"

Fiquei arrasada. Não consegui contar a ninguém o que se tinha passado nem o que tinha sentido. Não consegui dizer o que se passava com o meu baby. Eu própria não compreendia muito bem. E tinha receio que alguém dissesse o que eu efetivamente vim a ouvir, ipsis verbis, semanas depois (que o menino tinha tido "uma regressão autística") e que me tentasse demover do meu projeto meio louco.

Agora sei, mas na altura não sabia: o meu menino tinha uma depressão da primeira infância! Uma depressão tão grave que se confundiu com autismo. Pela primeira vez vacilei. Mas não podia desistir. Com o diagnóstico de autismo então é que não apareceriam candidados a adoção e o menino ficaria sem família. E era este o menino que eu sempre imaginara que me cairia nos braços: um menino que mais ninguém quisesse. A única certeza que eu tinha é que era este o menino. Mas já não sabia se seria capaz de cuidar dele...

(talvez continue...)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

[vozes brancas*] voar mais alto do que a vista imagina...

Há poucos dias, antes da sesta, a minha mãe contava pela enésima vez ao baby-de-mulata a história do David e Golias (a quem o baby teima em chamar Gorilas), quando aquela alminha resolveu puxar mais um assunto difícil...

- Avó, o Rei David já morreu?
- Já, meu querido, o Rei David já morreu há muitos, muitos anos, que esta história aconteceu ainda antes de o Jesus ter nascido...
- Ah... pois, avó... Eu sabia, foi há mesmo muitos anos. [Ainda não era aqui que ele queria chegar, certamente.] Mas ele morreu porquê?
- Porque era muito velhinho, querido. [A resposta chapa-cinco lá de casa, não há cá mais explicação nenhuma antes dos sete ou oito anos, altura em que entrará a nuance chapa-sete à baila, das doenças e dos acidentes, muito mais ansiogénica e que por enquanto, felizmente, ainda não apareceu.]
- Ah. Pois, avó, era velhinho... E para onde é que ele foi?
- Foi para o céu.
- E quando eu morrer também vou para o céu? [Ah, era aqui que ele queria chegar!]
- Sim, querido, quando morrermos vamos todos para o céu.
- Tu também vais? [E aqui também...]
- Sim, filho, eu também.
- Ah, então já sei! Posso ir ao teu colo?
- Claro que sim, querido! [A minha mãe, já com a voz embargada... Como se explica o que nem nós próprios compreendemos? Como aplacar a angústia do desconhecido de uma criança?]
- Pronto, então está decidido, quando morrer vou para o céu ao colo da vovó! E depois, avó?... Voltamos cá para baixo?

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 26 de julho de 2016

[vozes brancas*] planos para o futuro

Na consulta de desenvolvimento, hoje, estava a ver um menino com uma perturbação de identidade de género, com um conflito latente enorme com o pai, que fica literalmente doente quando vê o menino a dançar ballet. Tem um ataque de nervos, sobe-lhe a tensão, sente-se desfalecer, fica com dores no peito, falta de ar, tem de ir para o hospital, que lhe dá um fanico, dois chiliques e três achaques. Haveria certamente quem dissesse que esta reação também é um pouco exagerada, mas enfim, cada um reage como pode (e aqui para nós, é assim que a gente percebe que o-menino-tem-a-quem-sair,-mas-enfim,-eu-não-disse-nada).

- O que é que queres ser quando fores crescido?
- Quero ser bailarino! - responde com um brilho nos olhos, de quem a mera palavra "bailarino" enche a alma.
- Que bonito, e o que gostarias de ser se não fosses bailarino?
- Acho que tinha também jeito para ser médico.
- Ah, acho que sim, que terias muito jeito! Sabes falar muito bem com as pessoas. E olha, aquele teu amigo, o David, aquele que gosta de dançar Hip-hop e pratica capoeira. O que é que ele quer ser quando for crescido?
- Ele quer ser Presidente da República... Ou então condutor do metro.

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sábado, 16 de julho de 2016

[vozes brancas*] baby-de-mulata

Ouvido da cozinha:
- Filhote, anda aqui ajudar o pai - chamava Mr. Shaka da sala.
- Não posso, pai, estou aqui a treinar este gorila para o combate com o leão!

E tenho a dizer que assisti ao combate horas depois e quem ganhou foi o gorila! Temos Fernando Santos!

(Depois da vitória de Portugal parece que todos acreditamos mais um bocadinho...).


*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[vozes brancas*] e vidas pequeninas...

Até há pouco mais de duas semanas eu tinha mais um menino do que tenho hoje na minha consulta. Desde há pouco mais de duas semanas que não o tenho... Mas é precisamente desde há duas semanas que tenho uma história aqui atravessada nos dedos para vos contar.

Eu sei que não é o timing, deixem-me flagelar-me... Nunca é, também... Portugal foi campeão do Europeu e, mal um gajo teve tempo de inchar de ser Português e já temos de ser franceses outra vez e vamos lá ver se não temos de ser turcos já amanha. Os acontecimentos sucedem-se a uma escala que não é a da minha consulta, porque lá as vidas são pequeninas. Pequenas demais para se verem do alto do facebook. Mas se só vivermos à escala mundial acontece-nos como a uma amiga minha, que há uns tempos se queixava de que a indecisão entre o aquecimento global e a vinda de uma nova era glacial estava a deixar o seu sistema imunitário louco. Confesso que admiro profundamente quem consegue perspetivar à escala planetária aquilo que acontece na sua mucosa nasal (e o que escorre dela). Mas eu continuo a ser loira. Loira com dois neurónios, um dos quais viúvo. Por isso só me ocorreria que a minha amiga teria uma rinite. Mas isso tem a modesta vantagem de, em vez de aconselhar o Protocolo de Quioto, quase impossível de cumprir e que, na melhor das hipóteses, só poderá reverter as alterações climáticas dentro de várias décadas, prescrever antes um anti-histamínico e, em calhando, no dia seguinte a minha amiga estaria boa! Ou pelo menos melhor. O que se perderia em superioridade moral ganhar-se-ia em simplicidade e qualidade de vida. Mas enfim, longe de mim ditar tendências.

Mas vá, tudo isto para dizer que tenho a história de uma vida pequenina para vos contar: encham-se lá de paciência, meus amigos... Ninguém vos obriga a vir aqui, que isto já não é o mato divertido de uma loira anónima mas, já que cá estão, não se vão embora sem tomar uma pinga de chá. O meu menino não era o Cristiano Ronaldo, mas era um bom menino. E tem uma história que merece ser contada. É rápida, de qualquer forma. E conta-se em três penadas:

Tenho um menino na minha consulta que viveu numa instituição praticamente desde o dia em que nasceu, abandonado pela mãe na maternidade. Prematuro de 28 semanas porque a sua progenitora consumia cocaína e, num pico de tensão enquanto snifava mais uma dose, teve um descolamento de placenta. Extremo baixo peso ao nascer. Tinha menos de um quilo quando nasceu, esteve ventilado mais de um mês, teve várias septicémias. Na primeira ecografia cerebral percebeu-se que o descolamento de placenta e a cocaína tinham tido consequências ainda mais graves do que a própria prematuridade: o menino tinha tido um AVC que lhe destruíra uma parte importante do cérebro. Para cúmulo, meses depois confirmou-se mais um presente envenenado: infeção vertical por VIH.

Foi este menino que me chegou há um ano à consulta. Era um menino sorridente e bem disposto. Persistente. Depois de meses de fisioterapia começou a andar apesar do cérebro que lhe faltava. Chorava quando se ia embora da consulta porque estava ávido de qualquer atenção. Tentava sempre levar um brinquedo de cima da minha secretária numa carência de afeto indescritível. Dizia algumas palavrinhas (água, papa, olá). Graças ao zelo das funcionárias do lar tinha uma carga viral indetetável desde o primeiro dia. Sorria com confiança para todos à sua volta porque as pessoas que cuidavam dele, apesar de não serem família, sempre lhe tinham sorrido de volta.

Mas há duas semanas, na hora da consulta dele, vi chegar um casal holandês com uma cadeirinha de passeio. Lá dentro vinha o meu menino, a cantar uma canção em holandês. Contra todas as expetativas, o menino tinha sido adotado cinco semanas antes e vinha à consulta já com os pais adotivos. Estavam os três radiantes! Desde há cinco semanas os pais tinham assistido a uma explosão de desenvolvimento. O menino, outrora com um atraso de desenvolvimento grave, que só começara a andar com meses e meses de fisioterapia, tinha começado a correr, a subir escadas, a saltar. Já compreendia holandês. Cumpria todas as ordens que a mãe gentilmente lhe dava: "Vai dar um beijinho à doutora", "Vai arrumar este livro na caixa azul". Já fazia frases em holandês. Estava feliz. Mesmo feliz. Mas no momento em que a mãe lhe disse: "Agora vamos para casa", fez menção de chorar, como fazia habitualmente. Começou a fazer beicinho. Agarrou-se a mim e aos brinquedos que tinha na mão para os levar com ele, no desespero de quem tenta prolongar o momento de atenção e alegria que vivera ali. Gelei por instantes, pelo desconforto que os pais poderiam estar a sentir. Pela angústia de separação do menino. Foi então que de repente, os olhos do menino brilharam novamente. Olhou de novo para a mãe como quem pensa: "Alto, espera aí...". Ela estava ali, à sua espera! Agora tinha uma mãe! E um pai! Afinal já não estava triste. Afinal tinha um sítio para onde ir que era muito mais feliz e seguro do que aquele. E saiu novamente a cantar, na sua cadeirinha, uma canção em holandês, que não me sai da cabeça desde então.

É tão, mas tão bom ver alguém fintar o destino!

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

[as melhores do serviço de urgência] febre a subir...

Do capítulo dos "Sinais Absolutamente Inequívocos de Febre Interior", uma das doenças tradicionais portuguesas mais intangíveis*:

No serviço de urgência de pediatria com uma amiga minha...
- O menino quando chegou estava com febre?
- Não, doutora, por isso não lhe deram nada na triagem. Mas agora tem febre interior a subir outra vez de certeza, doutora. Eu sei porque está com a pilinha murcha...

* A par com os apesar de tudo mais palpáveis "bucho virado" e a "espinhela caída".

quinta-feira, 10 de março de 2016

[inspiração para uma despedida] até sempre, irmã

Quem me conhece ou acompanha há mais tempo este blogue sabe que houve um blogue-antes-do-baby-blogue. Antes de ser mãe-do-baby-de-mulata eu era a beijo-de-mulata, e escrevia um blogue de aventura e saudade, um blogue que escrevia para manter vivas as recordações das missões em Moçambique, para que não me fugissem as imagens, nem os cheiros, nem as palavras, nem as músicas... nem a Irmã Lourdes. A irmã que me ajudou em tudo, que foi minha mãe, amiga, companheira, orientadora, animadora, mediadora cultural. Foi com os olhos dela que aprendi a amar o povo macua, compreender os seus paradoxos, as suas angústias, perdoar as suas negligências e atrocidades, admirar o amor incondicional que tinham pelas crianças, respeitar as tradições que protegiam as mulheres, as crianças e os idosos. Com ela aprendi a conhecer crenças, ritos, feitiços, aprendi a compreender de que falavam as pessoas no hospital quando me falavam de doença e o que esperavam de mim. E aprendi que só conhecendo a cultura podemos tratar verdadeiramente as pessoas, conquistar a sua confiança e comunicar.

Há dois dias, depois de quase um ano de luta contra uma leucemia debilitante, não resistiu mais e partiu... Desgraçadamente não pude estar presente no funeral, porque o baby-de-mulata anda adoentado e com mãezite agudizada e porque tinha uma sessão da "Oficina de Pais" para crianças com atraso de desenvolvimento de que era responsável. Mas como ela própria dizia lá em Moçambique, quando eu chegava atrasada à missa depois de um dia longo no hospital: "Não te preocupes, trabalhar também é rezar..."

Felizmente a minha mensagem de despedida chegou a tempo para ser lida no funeral. Foi o meu milagre desta manhã.

"Meus queridos amigos, é com muito pesar que por motivos familiares e profissionais não posso estar presente nesta última despedida da nossa querida Irmã Lurdes, mas gostaria de deixar o meu testemunho como leiga que conheceu uma mulher santa, uma mulher de coragem, absolutamente extraordinária.

Conheci-a em Iapala, província de Nampula, em Moçambique, quando a missão estava no seu apogeu. Para quem a conheceu, a missão era um paraíso no meio de uma paisagem avassaladora, com montanhas, savana verde e céu a perder de vista. Era também um oásis num mar de dor e devastação, de doença a pobreza. E a Irmã Lurdes tinha passado a guerra com o povo. Tinha comido à mesma mesa que os habitantes locais, tinha passado fome com a população, tinha dormido no mato muitas vezes, para no dia seguinte descobrir que uma cobra ou um escorpião se tinha ido aninhar no meio da esteira com ela. Nunca teve medo. No tempo da guerra as cobras não mordiam porque o homem fazia parte da paisagem. Durante a guerra sofreu ataques de bandidos, pilhagens sucessivas, tratou feridos, consolou órfãos e viúvas, tratou doenças até ao limite das suas forças.

Quando conheci a Irmã Lurdes, a guerra já tinha acabado, já não havia minas, já se podia andar com o jipe pelas picadas. A irmã, baixinha, frágil e com voz um pouco trémula, era a última pessoa que eu imaginava ver num jipe enorme a atravessar pontes feitas de bambu, atravessar areais onde se podia ficar enterrado sem dó nem piedade, e a fugir com destreza de buracos no meio da estrada capazes de partir um camião. Dava assistência no hospital, cuidava das meninas do lar, assistia a população envolvente e deslocava-se quase diariamente às quase cem comunidades distantes para vacinar as crianças e as grávidas, pesar os bebés, confortar quem tinha visto morrer os seus entes mais queridos, tratar os doentes que sabia tratar, com os medicamentos da sua bolsa verde-tropa de onde saiam os artigos mais improváveis... e transportar para o hospital da missão quem só no hospital pudesse receber assistência.

Mas a Irmã ia deixar Iapala. Na altura em que a conheci, já estava de partida. Ia fundar a missão do Gilé, na Zambézia. E eu perguntava-me como seria possível deixar Iapala, aquele paraíso fantástico, e ir para uma terra onde não havia nada, onde até as mandiocas eram raquíticas, onde até o terreno tinha areia, onde nem a fé nem a esperança vingavam e a morte espreitava atrás de cada cajueiro. Mas a sua coragem e confiança era inabaláveis: Se era para lá que Deus a mandava... seria para lá que iria! Com a alegria de quem vai ver nascer um novo mundo! E foi o que aconteceu. Podem não acreditar, mas eu vi o "antes" e o "depois". Todo o distrito se desenvolveu com a chegada das irmãs. A Irmã Lurdes tinha fama de santa entre as pessoas. Todos a procuravam e respeitavam. Vinham partilhar dores, preocupações e depois trazer alegrias.

Quando a sua doença começou, cedo percebeu que o fim da vida se aproximava. Mas a sua fé permaneceu inabalável. Se Deus a chamava, pois com certeza que iria! Quando Deus quisesse. E continuou espalhando fé e esperança por onde passava, desde casa até ao hospital, menos por palavras do que pelo exemplo de força e coragem.

E tenho a certeza de que partiu para casa do Pai com a mesma confiança de sempre. E podemos ter a certeza de que de hoje em diante, o próprio céu será um local ainda melhor com a sua presença!

Deixa-me desolada, ainda assim, por não me ter conseguido despedir de si... Parece que é a minha cruz, a de por vezes não chegar a tempo... Mas bem-haja por todo o bem que fez e por tudo quanto me fez descobrir!

Até sempre!"

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

[vozes brancas*] tecnologias...

Numa sociedade em que as crianças têm cada vez mais acesso precoce a perigosos distratores visuais - televisão, tablet, telefone, computador - o processamento verbal e auditivo e, por conseguinte, a leitura e escrita podem ficar seriamente comprometidos. Eu tento proteger o meu filho com unhas e dentes (sem fundamentalismo, claro, apenas prego uma valente rabecada de alto a baixo a quem se atrever a chegar perto da minha cria com um dispositivo eletrónico) e tendo cativá-lo para atividades mais físicas e apelativas. Ontem, ao jantar, o baby-de-mulata queixava-se de que a cadeira abanava. Foi então que descobri que alguém anda a boicotar as minhas nobres intenções. Virou-se para o tio que jantava connosco e disse com um olhar de entendido:

- Acho que tens de fazer uma atualização a esta cadeira!

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.