sábado, 30 de outubro de 2010

[instantes] para sempre

A alegria das crianças que corriam sempre atrás do nosso carro até desaparecermos no horizonte...
(Gurué, Zambézia)

[a twitch upon the thread]

"I caught him with an unseen hook and an invisible line which is long enough to let him wander to the ends of the world and still bring him back with a twitch upon the thread."
Evelyn Waugh in Brideshead Revisited

[as melhores do serviço de urgência] esta urgência dava um filme cigano

Há alguns anos atrás, numa cálida noite de verão, estavam três colegas meus, ainda alunos do último ano de Medicina na sala de pequena cirurgia do São José - essa grandiosa urgência de Lisboa - quando entra um jovem cigano trazido de maca após ter sido esfaqueado num ombro, com a roupa cheia de sangue e inconsciente. Era o terceiro doente esfaqueado nessa noite numa esquina do Martim Moniz pelo mesmo assaltante, que entretanto só acabou por ser preso de madrugada...

Enquanto um deles ia chamar os colegas mais velhos que estavam noutra sala a tratar dos primeiros esfaqueados da noite, os outros dois colegas e o enfermeiro de serviço apressaram-se a calçar umas luvas e socorrer o doente. Ora acontece que, há alguns anos atrás, os meus colegas eram alguns anos mais novos (mais uma vez este blog presta homenagem aos jovens soldados foliões que imortalizaram o Marquês de la Palice) e consta que o enfermeiro que estava de serviço era igualmente alguns anos mais jovem e também bastante novinho...

Foi aí que começou o grande aperto: o doente vinha inconsciente e a sangrar activamente do ombro e os meus colegas, tal como mandam os bons preceitos do suporte de vida, em vez de tentarem estancar a hemorragia começaram a avaliar os sinais vitais enquanto o enfermeiro, absolutamente ignorado, os olhava, parado, à espera de instruções:

Colega 1 [posicionando a via aérea] - Vê lá se respira...
Cinco segundos depois:
Colega 2 - Acho que não... [Olhando anelante para a porta, à espera de ver aparecer a qualquer momento os colegas mais velhos e palpando o pescoço em busca do pulso carotídeo... a aflição crescendo cada vez mais...] ...e também não tem pulso. Está em paragem!
Colega 1 - Dá-lhe um murro no peito. Temos de começar massagem cardíaca!

Nisto o doente, muito a custo, abre um olho, tenta levantar o pescoço e diz em voz arrastada mas muito indignado:
- Eh, lá... ê só tou bêbado!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

[instantes] a força que um sorriso pode ter...

Aprendendo a ser mãe...
A menina carrega o irmãozinho nas costas, enquanto este masca alegremente um pedaço de cana-de-açúcar.
(Gilé, Zambézia)

[et in arcadia ego...]

- She never loved him as we do...
(There was no past tense in Cordelia's verbe to love.)
Evelyn Waugh

[as melhores do serviço de urgência] reanimações falhadas

Como já vos tenho contado em diversos números anteriores, o Hospital de Curry Cabral foi o primeiro hospital onde trabalhei e de que guardo memórias fantásticas. Uma das quais é a sensação de ter de morder o lábio inferior para não sorrir quando os familiares dos doentes utilizavam a expressão "ir ao Rego*" como se fosse a coisa mais normal do mundo...

Outra das imagens que me ficaram para sempre aconteceu em certa noite de verão, uma noite já bem entrada na madrugada... estava eu de banco no SO - que era assim uma espécie de unidade de cuidados intensivos, mas com porta para a rua e de acesso quase directo - calmamente a transcrever umas análises, quando de repente, na sala contígua, oiço um bip longo de um alarme de um monitor, seguido de um ruído de arrastar de camas. Levantei-me de imediato para ir acudir à situação de perigo que se me desenhava na mente: uma paragem cardíaca e um enfermeiro zeloso que se precipitara para a cama do doente para iniciar manobras de reanimação, mas que inexplicavelmente não tinha gritado por ajuda. Ainda nem tinha chegado à porta quando oiço um berro abafado de um homem, seguido de um ruído de luta corpo a corpo e um estrondo enorme. Entro na sala e, incrédula, vejo um dos doentes que estava internado com um enfarte agudo do miocárdio, de pijama na cama do doente do lado, com este a debater-se furiosamente para o atirar da sua cama abaixo e vários objectos da mesa de cabeceira e os suportes dos soros a serem atirados ao chão no meio da inusitada batalha campal que se instalara na pacata enfermaria... Já os cateteres saltavam das veias, com soros, medicação e sangue derramados, quando os enfermeiro acorreram para os separar e restabelecer a ordem pública...

Levou-me algum tempo a perceber que raio é que se tinha passado... Ora o doente com um enfarte agudo do miocárdio que saltara da cama para cima do doente do lado não estava com uma crise psicótica nem possuído por um desejo mórbido e louco, mas era antes cardiologista. Pois... isso mesmo! Foi essa a explicação que ele me deu de imediato quando perguntei, furiosa, o que é que se passava ali...

Explicou-me que estava a dormir tranquilamente quando, de súbito, despertou com o bip longo do monitor do doente do lado, olhou para o traçado electrocardiográfico do monitor e viu uma linha direita contínua e o doente parado. Com o raciocínio levemente toldado pelo sono, pelos tranquilizantes que lhe tinham dado e pela sensação de morte iminente que vivera horas antes, concluiu de imediato que se tratava de uma paragem cardíaca e decidiu iniciar reanimação cardio-respiratória. A versão do vizinho do lado era ligeiramente diferente... O vizinho do lado, por seu lado, que não estava em paragem cardio-respiratória coisa nenhuma, apenas desligara inadvertidamente um fio do monitor quando se tinha virado enquanto dormia, tinha acordado espavorido com um homem em pijama a dar-lhe murros no peito quase a ponto de lhe partir as costelas e a soprar-lhe pela boca adentro (sim, na altura a respiração boca-a-boca ainda fazia parte do suporte básico de vida)... Obviamente que se tinha tentado defender com unhas e dentes do homem que o estava a assediar!

De onde se conclui que até para sobreviver a um internamento é preciso ter sorte, vizinhos simpáticos e sentido de humor...

*Rego = Hospital de Curry Cabral

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

[as melhores do serviço de urgência] ouvidas por amigos

- Ele até veio de ambulância para Lisboa em estado cómico... (... mas se calhar até foi divertido, não?)
- O meu marido é especialista em cuidados paleolíticos! (... o que será isso? Cuidados paliativos para idosos?)
- Ele não fez nada, mas apanhou à mesma três dias de prisão perpétua... (... coitadinho, nunca mais passava o tempo...)
- Estava com uma tosse seca e irritadiça. (...eeer... a tosse ou a menina?)
- Puseram-na a dormir para fazer uma sornância. (Ai eu, se me deixassem, também estava agora a fazer uma sornância... e de preferência a dormir...)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

[instantes] à beira do rio molócué

Mulher com filho nas costas, preparando-se para ir buscar a "água limpa" do meio do rio para cozinhar...
(Gilé, Zambézia)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

[vozes brancas* #28] afilhados à distância

Este ano, um dos pedidos que levava quando cheguei a Nampula era o de procurar a afilhada à distância de uma amiga minha para falar com ela, conhecê-la, ver como estava e se precisava de alguma coisa e, por fim, tirar uma fotografia com ela. Pedi às Irmãs que organizam este apadrinhamento à distância para mandar chamar a menina. Só sabia que se chamava Remissa, que tinha 7 anos e morava no bairro de Muahivire, mas isso bastava (nem me ocorreu saber mais do que isso). Ela apareceu, dias depois, acompanhada pela irmã mais nova pela mãe, que me contou que a pequena Remissa tinha ficado muito entusiasmada:
- Mãe, a minha madrinha está a chamar! Quero viajar!

E lá lhe expliquei:
- Não, a tua madrinha não te quer levar daqui, não te quer longe da tua família, mas se quiseres estudar e até mesmo ir para a faculdade, ela vai-te ajudar...

Chega a ser comovente perceber o carinho destas crianças pelas madrinhas e padrinhos que nunca viram mas que entendem que é em parte graças a eles que podem ter uma oportunidade de continuar os estudos e sair de um ciclo de pobreza...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[vozes brancas* #27] a vida é simples, dizem eles

Há alguns meses, estava um bebé internado com uma doença muito grave no meu hospital e as irmãs mais velhas pediam insistentemente à mãe para o ir visitar porque tinham muitas saudades. Ao que a mãe respondia que não podia ser, porque o hospital estava "cheio de bichos" que lhes podiam fazer mal. Dias depois, a filha de 4 anos e meio perguntou-lhe:
- Ó Mãe, por que é que não compra um mata-moscas para matar os bichos do quarto do mano? Assim já podíamos ir vê-lo...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[estado em que se encontra este blog] consolando o inconsolável

A Irmã Lurdes tentando dar algum consolo à mulher do curandeiro, que tinha acabado de perder a filha, vítima de raiva. Ah, mwanaka...
(Gilé, Zambézia)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

[publicidade institucional] beijo-de-mulata também cresce aqui




Nasce em qualquer degredo, cria-se em qualquer chão...
(Monsaraz, Alentejo)

[o fim do mundo em bicicleta] carrega-se de tudo

Cinquenta quilos de carvão e um sorriso rasgado.
(Alto Molócué, Zambézia)

domingo, 24 de outubro de 2010

[o fim do mundo em bicicleta] sob um sol abrasador


Um artesão transportando as suas cadeiras na estrada para o Gurué.
(Gurué, Zambézia)

sábado, 23 de outubro de 2010

[memórias do fim do mundo] o rio molócué


Aos fins-de-semana e às vezes ao fim da tarde quando o hospital estava calmo, costumávamos ir com as meninas lá de casa dar um passeio ao Rio Molócué, o tal rio dos crocodilos de que já vos falei uma vez...

[o fim do mundo em bicicleta] uma ambulância no gilé

Natureza morta com bicicleta-ambulância.
(Gilé, Zambézia)

[publicidade institucional] beijo-de-mulata pode ser medicamento





Vale a pena ver, embora contenha algumas imprecisões, nomeadamente a informação de que esta flor é rara... Como já vimos anteriormente, ela nasce em qualquer degredo, cria-se em qualquer chão...

(Obrigada à Márcia, minha correspondente no Instituto Ricardo Jorge, que me enviou o link)

[vozes brancas* #26] ingenuidades

Esta tarde, na consulta com um menino de 3 anos e meio, depois de lhe observar a pilinha e constatar que não tinha fimose, ele mexeu-se como se estivesse muito desconfortável e disse para a mãe:
- A minha pilinha ficou muito grande, tens de a arranjar nas cuecas...

(Eu e a mãe íamos rebentando a rir...)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

[a vida não é simples] ...mas devia!

Juro e assino a jura:
O nosso amor há-de florir
À tona da mais funda sepultura
Que a vida nos abrir

Miguel Torga in Diário III

[publicidade institucional] beijo-de-mulata



Beijos-de-mulata na Fortaleza da Ilha de Moçambique

Vinca rosea é nome científico desta flor silvestre, acrescentada de vulgar por Lineu. Mas também é o nome de que menos gosto...

Em Moçambique, ela é como o amor dos simples e das mulheres fatais, aparece sem se saber como, explode como se o destino fosse inevitável, nasce em qualquer degredo, cria-se em qualquer chão*. E também, como o amor dos simples e das mulheres fatais, dependendo de como o tomamos e de quem no-lo dá a beber, tanto pode conter um medicamento como um veneno em potência: em doses certas pode até curar a doença mais grave, mas em excesso mata mesmo, sem apelo nem agravo. E por isso, em Moçambique, tem nome de mistério e nome de feitiço, beijo-de-mulata...

No Brasil, esta flor é como o amor dos devassos, não pede licença para crescer por toda a parte, nasce em qualquer degredo, cria-se em qualquer chão. E como não escolhe os terrenos por onde cresce e não pede permissão para se reproduzir desenfreadamente, o seu nome é maria-sem-vergonha.

Em Portugal, é como o amor das mães, nasce em qualquer degredo, cria-se em qualquer chão… cresce por entre as pedras da calçada, qualquer lajedo a aceita, galga terrenos, sobe montanhas, apazigua quem a contempla. É como o amor que nos aconchega a colcha e nos sussurra baixinho "gosto de ti". É como o amor que nos mordisca a orelha esquerda e nos deseja um terno boa-noite. [Ah, o mordiscar da orelha esquerda não faz parte do amor de mãe? Tudo bem, mas faz parte do boa-noite... Bem, era o meu lado brasileiro de maria-sem-vergonha a falar...]

* Verso de Miguel Torga

[vozes brancas* #25] olha a lua...

Contam os meus pais muitas vezes que o meu irmão, quando tinha três anos, certa noite olhou para o céu e viu a lua em quarto crescente:
- Olha, a lua 'tá pa'tida!
- Ah... e quem partiu a lua, querido?
- Foi a tia Céu.

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

[a minha vida dava um filme cigano] uma questão de mentalização

Há tempos, uma amiga minha estava no Serviço de Urgência, quando chega uma adolescente cigana de seus 15 anos, pequenita, enfezadita, a arder em febre mas com um ar de esperteza vivaça, acompanhada por sua mãe, uma matriarca obesa vestida de preto, com a cabeça coberta por um lenço e com um ar que anunciava "Eu tive dez filhos e só por milagre é que sobreviveram todos..." E a adolescente, de seu nome Sueli (mais um dos tais nomes que não auguram nada de bom), pequenita, enfezadita, quase não conseguia engolir a própria saliva tal era o calibre da amigdalite, que literalmente lhe transbordava até às orelhas... 

Mal a menina abriu a boca, o diagnóstico ficou feito e a minha colega começou a tentar convencer a matriarca de que uma injecção de penicilina é que era o melhor tratamento. E que os sintomas passariam mais rápido e que a menina não estava em condições de conseguir tomar comprimidos e que depois os pais iam para venda e a menina ficava em casa e não-ia-tomar-a-medicação-que-a-gente-sabe-muito-bem-como-é que-são-as-coisas-já-tivemos-a-idade-dela-não-é... E que depois ela tinha de tomar conta dos irmãos e não podia. (Sim, que não vale a pena tentar fingir que não sabemos que a menina não anda na escola desde os 10 anos e que vai ficar aferrolhada em casa a tomar conta dos irmãos até se casar). E que rebeubeubéu-pardais-ao-ninho...

A menina é que não estava pelos ajustes. Que não queria injecção nenhuma, que não queria, não queria, não queria... e rapidamente entrámos na fase da baba e do ranho e do lamento cigano que bem conhecemos, meio carpido, meio gemido, meio cantado (e não me venham dizer outra vez que bem feitas as contas isso dá lamento e meio, que eu para contar tenho jeito para histórias e mesmo assim só às vezes...). A mãe, já por seu lado, por um lado estava de acordo com a injecção, por outro lado não tinha mão na filha. E, como também não tinha poder de persuasão, chegou-se a um impasse.

- Bem - disse a minha colega, tentando manter a calma - talvez seja melhor então chamar o pai para decidir... ele está lá fora?
- Sim, sim, Sotôra. É melhor chamá-lo.
- Como é que ele se chama?
- É Nando.
- Fernando quê?
- é Fernando, é Armando.
- Armando quê? [Continuando a tentar manter a calma.]
- Armando Silva.

Dez segundos depois entra o Sr. Armando Silva com um ar de poucos amigos:
- Entã o que é que se passa?
- Olhe, a sua filha está com uma infecção na garganta e precisa de tomar uma injecção de penicilina para isto passar mais rápido e de vez.
[O lamento da menina continuava em ruído de fundo.]

- Está bem. E depois?
- Mas ela está muito receosa da injecção e não quer tomar. Se calhar é melhor irem lá fora conversar um pouco com ela e tentar mentalizá-la de que tem mesmo de tomar a injecção para a doença passar mais rápido.
[O ruído de fundo cada vez mais alto.]
- Está bem, Sotôra.
- Sim, então vão lá [suspirando de alívio e preparando-se para chamar o próximo doente] e depois voltem aqui.

Saem os três da sala de consulta para o corredor e ouve-se uma voz masculina num grande chorrilho de palavrões, acompanhado de um "Ai Nando, batas na tua filha!".

Nem tempo tinha tido de chamar o doente seguinte, quando entram novamente na sala, com a adolescente com as faces muito coradas e caladinha que nem um rato num autoclismo.
- Pronto, Sotôra, já está mentalizada! Vamos lá rápido que temos de voltar para a venda!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

[welcome to mozambique] o nosso hospital

Natureza morta com tenda da Unicef
(Gilé, Zambézia)

domingo, 17 de outubro de 2010

[lamento em sol maior] horizontes

(Dedicado a um grande amigo)
Sinto muito... muito mesmo... tu não merecias nada disto. Mas se ao menos te pudesse fazer acreditar que está tudo bem, que ela esteve sempre bem e que a vida vai continuar a fazer sentido...

[ai, os amores impossíveis] fugir é o melhor remédio...

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

David Mourão-Ferreira

sábado, 16 de outubro de 2010

[instantes] a força que um sorriso pode ter!

Mihecué, Zambézia
(Foto da R.)

[as melhores do serviço de urgência] zoeiras

Há tempos, uma colega minha otorrino estava de urgência no hospital e vem um senhor de seus 60 anos, com um ar muito angustiado...
- Então o que é que se passa consigo?
- Estou a ouvir barulhos nos ouvidos.
- Está com zumbidos?
- Sim... quer dizer, não são bem zumbidos...
- Então, consegue descrevê-los?
- Sim, é assim [cantando]: "Ó malhão, malhão... tu não vales nada!"
- Ah, então não é para mim... tenho ali um outro colega que é mais especializado no assunto...

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

[instantes] da noite no mato


A Lua sobre o Monte Gilé

[vozes brancas* #24] a luz nos meus olhos



No início da nossa estadia deste ano em Moçambique, o primeiro trabalho que eu e a R. fizemos foi o exame global de saúde aos meninos mais pobres da escolinha das Irmãs. Foram três dias extenuantes, que abrangeram um fim-de-semana, em que vimos mais de 250 crianças, mas resultou num trabalho de equipa fantástico, em que todos os funcionários colaboraram com muito boa disposição: uns pesavam e mediam, outros registavam nos gráficos de percentis, outros faziam rastreio de visão e outros de audição e quando, finalmente, as crianças chegavam a nós, cada uma tinha um tradutor de macua... Um autêntico luxo!

Um dos meninos que vimos, um amor de criança com cinco anos, tinha uma ptose palpebral congénita, ou seja, tinha as pálpebras descaídas desde que nascera, de tal maneira que apenas via o mundo por uma nesguinha de luz e estava em risco de cegar progressivamente (estamos a tratar da ida dele à capital para ser operado, não fiquem assim). E àqueles olhos tão pouco habituados a ver, qualquer luminosidade provocava uma sensação intensa de desconforto pelo que se recusava frequentemente a que lhe levantassem as pálpebras para treinar a visão e foi muito difícil testá-lo. No final do teste começou a chorar como se não aguentasse mais.
- Então, meu querido, por que é que estás a chorar? - perguntaram-lhe.
- Tenho muito frio nos olhos...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

[vozes e danças] com sabor a fim do mundo


Estas eram as meninas que viviam com as Irmãs no Gilé, essa grande capital do mato, para poderem estudar na escola secundária Joaquim Chissano durante o ano lectivo (e, por amor da santa, não me venham dizer como uma amiga minha "Ai que engraçado, a Escola Secundária Joaquim Chissano era justamente no Gilé...." que eu aperto-vos o pescoço! Estamos em Moçambique, homens de Deus! Todas as escolas básicas se chamam Josina Machel e todas as escolas secundárias têm o nome do anterior Presidente da República. Bem, quer dizer... quase todas. Há já algumas com o nome do actual Presidente, Armando Emílio Guebuza... Mas perceberam a ideia, certo? É inevitável como a Praça dos Heróis Moçambicanos em todas as cidades e vilas, inevitável como o Monumento aos Heróis Moçambicanos mesmo em frente à Praça dos Heróis. Inevitável como o Centro de Saúde 25 de Setembro na Rua 3 de Fevereiro. Inevitável como a formatura dos alunos, o içar da bandeira e o hino nacional antes e depois das aulas. Inevitável como os desmaios diários dos alunos obrigados a permanecer na formatura no pino do sol, às vezes sem terem comido nada o dia todo. Estamos em Moçambique e as regras instituídas pelo partido quase único são para se cumprir. Ou pelo menos para não desrespeitar abertamente, vá... Entendido? Isto se não quisermos uma guia de marcha com 24 horas para sair do país ou um boicote liminar do nosso projecto sem direito a qualquer explicação.).

Mas, como eu ia dizendo, estas eram as adolescentes que viviam lá em casa. Muitas eram órfãs, a maioria com famílias demasiado pobres para conseguirem pagar sequer um décimo da estadia, quase todas com histórias de vida terríveis que podiam fazer qualquer adolescente perder a vontade de se levantar da cama todas as manhãs, quanto mais de continuar a estudar. Só iam a casa nas férias e voltavam sempre mais magras, com doenças por tratar e com mais histórias tristes para contar... Mas tinham uma força e uma alegria de viver contagiante. E se dançavam assim na missa, imaginem o que era às vezes aquela casa depois da missa... E, no Gilé, elas eram "as meninas das Irmãs". Tinham uma cama, comida todos os dias, água nas torneiras, luz dentro de casa, livros e cadernos para estudar. Nunca iam ao hospital sozinhas e portanto eram sempre atendidas fosse a que horas fosse. Na escola os professores pensavam sempre duas vezes antes de lhes pedirem subornos ou favores sexuais porque sabiam muito bem que, no que tivesse a ver com as meninas, as Irmãs eram umas autênticas leoas. Defendiam-nas com unhas e dentes e, portanto, se fossem descobertos corriam o risco de perder o emprego e já não seriam os primeiros a ir para a prisão.

Não sei bem sequer se elas tinham noção de que tinham "padrinhos" no estrangeiro que nunca conheceriam pessoalmente mas que apoiavam o projecto das Irmãs para lhes proporcionar os estudos. É certo que rezavam sempre por eles em conjunto nas orações da noite, mas os padrinhos são como os anjos da guarda, por vezes estão demasiado longe para podermos acreditar neles...

Mas se fora de casa elas eram protegidas pelas Irmãs e pela sua reputação de leoas, dentro de casa estavam longe de serem tratadas nas palminhas. Como quaisquer adolescentes que se prezem davam-nos água pela barba! Ansiedades, angústias, dúvidas, namorados, doenças - verdadeiras ou imaginadas, saudades de casa, intrigas com as amigas, todas as noites aquela casa era uma animação. Uma telenovela das antigas. Mas também eram os melhores momentos, os que passávamos sentadas na varanda, ao fim do dia, olhando a lua que subia sobre o monte, as queimadas a arder aqui e ali, a tentar impingir umas às outras o cão mais chato à face da terra, permanentemente a roçar-se em nós e a pedir festinhas. As meninas vinham ter comigo e com a R. e por lá ficávamos, lado a lado, a namorar a noite e a conversar, todas com a difícil tarefa de tentar compreender o mundo e crescer nele...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

[vozes brancas* #23] a vida é simples, dizem elas...

Ontem na consulta com o Diogo, uma ternura de 3 anos e meio:

Diogo - Eu já não uso f'alda!
Eu - Ai que lindo, meu querido! Mas [olhando disfarçadamente para os meus registos]... tu já não usas fralda há muito tempo...
Diogo - Pois é, mas a minha namo'ada ainda usa.
Eu - A tua namorada? E como é que ela se chama?
Diogo - Bia.
Eu - Ah e tu gostas muito da Bia?
Diogo - Sim e damos muitos beijinhos.
Eu - Muitos beijinhos?! Onde?!
Diogo [com um ar de Duh, onde é que ela estacionou a nave?] - Na boca.
Eu - E depois, que mais é que vocês fazem juntos?
Diogo - Ficamos à janela a ver os popós passar...

[Ohhhh]

Mãe - E a Doutora havia de os ver... eles são mesmo queridos...
Eu - Que engraçados...
Mãe - Mas no outro dia chegou a casa com um ar tristíssimo a dizer:
            - Ó mãe, a Bia está zangada comigo...
            - Porquê, filho?
            - Não sei...
            E estava com um ar aflito, assim como quem diz: "Ó mãe, ajuda-me que eu não estou a perceber nada..."

[Pois é... Mal ele sabe... mal ele sabe o que o espera!]

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

[áfrica, meu amor impossível] mwanaka


Eu - Mwana ola tani? [Quem é este bebé?]
Menina (com um ar radiante) - Mwanaka! [É o meu filho!]

(Só as crianças para nos fazerem acreditar que a vida é simples!)

sábado, 9 de outubro de 2010

[vozes brancas* #22] magia

Num jantar de gala com muitos médicos bem dispostos e uma menina de 3 anos, linda de morrer com ar de princesa rebelde:

Menina - Não gosto de ti! Abracadabra, pé de cabra, vou transformar-te num monstro!
Médico bem disposto - Uuuuh, eu sou um monstro e vou-te comer!
M - Abracadabra, pé de cabra, agora vou transformar-te num elefante!
MBD - Uuuuh, eu sou um elefante e vou dar-te duche com a tromba!
M - E agora vou transformar-te num sapo amarelo [dito muito depressa]. Abracadabra, pé de cabra!
MBD - Num senhor da EMEL?! Tu não gostas mesmo de mim...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

[áfrica não é para todos] as pontes


Em Abril contei-vos este diálogo com a Irmã Lurdes antes de atravessar uma ponte de bambu no meio do mato, a caminho da campanha de vacinação:

- Mas, Irmã, nunca tem medo de atravessar estas pontes de jeep?
- Bem, medo sempre tenho, mas sei que Deus está connosco. [Assim como se dissesse "O meu pai é o dono disto tudo, sei muito bem que nada de mal nos pode acontecer."]
- É que isto assusta um bocadinho...
- Podes sair e passar a ponte a pé que eu não levo a mal.
- Não, Irmã, não vou fazer isso. Não a vou deixar... e também não me serve de nada ser a única pessoa a sobreviver aqui no meio de nenhures...

Pois é. Mal sabia eu que este ano o caminho para o Gilé tinha "problema di ponti". E um problema grave. Uma ponte absolutamente improvável. Imponderável. Para não passar por lá tínhamos de fazer um desvio de mais de 200 km em picada. Oito horas de caminho, portanto! Ou seja, se queríamos fazer o trabalho a que nos tínhamos proposto, o caminho era necessariamente aquela ponte. Só que desta vez nem mesmo a Irmã Lurdes, aventureira nata, acreditava que fosse possível:
- Esta ponte não foi feita para passarem carros. Eles passam mas arriscam-se a cair na água. [Assim como se dissesse: "África não é para todos. Deus é infalível, mas nós não somos..."]

Felizmente foi sempre a R. quem levou o carro, quem assumiu a ponte dentro do peito e a passou uma vez e outra e outra. Às vezes com o coração pequenino mas sempre com um sorriso nos lábios. E digo-vos, eu que estive sempre lá, no lugar do co-piloto, caladinha como nunca estou, aprendi que só há uma maneira de passar. E não, ninguém disse que era fácil:

Páre. Feche os olhos. Respire fundo. Abra os olhos. Espere que alguém vá para diante do carro para o ajudar a acertar as rodas com os troncos. Meta a tracção às quatro rodas. Isto se o carro tiver tracção. Se a tracção funcionar. Se souber como se mete a tracção. Se não puder meter a tracção não desespere. Sobretudo não desespere. Meta a primeira. Esqueça tudo o resto. Esqueça o pedal do travão, o pedal de embraiagem, o travão de mão, a marcha à retaguarda e as outras mudanças. Esqueça o resto do mundo. Mande sair quem acha que poderá dizer uma palavra que seja. Aconteça o que acontecer não perca a confiança. Em si, no carro e na própria ponte. É importante acreditar sempre que aquilo que está à sua frente é, de facto, uma ponte. Alguma confiança na Providência Divina ajuda sempre, mas isso também não é para todos... E pronto, já passou! Um dia de cada vez. Tente não pensar que amanhã vai ter de voltar pelo mesmo caminho. Em África amanhã não existe.

[tenho a cabeça em áfrica] e uma dor no peito, caramba!

I once had a hospital in Africa...

Mas vou deixar-me de lamúrias... Até porque não sei chorar por escrito... E não me venham dizer que é assim  :'(  porque não serve, ninguém chora assim :'( e eu ainda para mais choro sempre com o corpo todo, esparramada na cama e com uma almofada por cima da cabeça. Não é assim :'(. E não me adianta continuar a falar desta dor no peito, discutir se a dor é física ou psicológica, que eu sei bem que a sinto, que me dói como há muito tempo não sentia dor nenhuma e não me interessa mais nada. Não adianta de nada dizer que ainda não acredito que vivi um amor impossível, ou falar da vontade de acreditar que talvez ele não seja impossível, do medo de que afinal seja mesmo, do horror que me causa a perspectiva de nunca mais poder voltar, das borboletas no estômago, do desejo permanente de regressar ao fim do mundo... Acabou. Vou mas é recomeçar a falar-vos do fim do mundo, que sempre é mais divertido... E chorar só de vez em quando, se não aguentar mais.

sábado, 2 de outubro de 2010

[palavras que nunca direi] mas tenho pena...

"A magia dos interuptores que dão sempre luz paga-se com um mata-bicho de cimento chamado de pequeno-almoço e que se toma no café, em pé, e sem tempo para palavras."

Dra. Muxy-Muxy