terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] as histórias da tia cármen

(continuando...)

Na Casa do Gaiato, o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dos desenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nas figuras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!

E num fim de semana, enquanto ajudava alguns meninos com os trabalhos de casa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladas sessões de “histórias” contadas à tia Cármen, com um menino de sete anos, que vivia na casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondo lentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios, falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem me lembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitas crianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelo canto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família era muito ameaçador porque ia ouvindo a tia Cármen perguntar:

– Que animal é este dentro do lago?
– É um crocodilo.
– E o que é que ele está a fazer?
– Está à espera que as pessoas passem para a machamba* para as matar e comer…
– E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
– É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos para a escola.
– Para quê?
– Para lhe morder.
– Porquê? Porque é que a cobra lhe quer morder?
– Porque os espíritos maus a mandaram.
– Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?

Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrou uma solução e se reconciliou com o destino:

– Não, porque o irmão mais velho viu a cobra a tempo e conseguiu matá-la.
– Ah, que bom… E ele não teve medo?
– Não, ele é muito forte!
– E os pais, onde é que foram?
– Foram comprar peixe ao mercado.

E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada e protectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores. Qual tinha sido o motivo?, perguntava a tia Cármen. Mas o menino não se resolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, ora dizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé e por isso os pais se tinham ido embora zangados…

Era magistral a forma como a tia Cármen, sem nunca ter tido formação em Psicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas às personagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida e compreender melhor as suas emoções e circunstâncias, apaziguar-se com as suas perdas. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a um momento absolutamente mágico, em que a tia Cármen olhou o menino nos olhos e lhe perguntou:

– Então? Gostaste da história?
– Sim, tia Cármen.
– Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muito corajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
– Sim, tia Cármen?
– Parece que este menino se chama Rafael…

A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Como foi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidade trocado com a tia Cármen anunciava que estava um vínculo criado e lançada mais uma pedra na construção da auto estima e segurança do menino…

Era comentado por todos que os mais pequenos tinham ficado muito mais calmos desde que a tia Cármen tinha chegado. Pudera...

* Machamba – Terreno de cultivo, normalmente do sector familiar.

(continua...)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

[welcome to mozambique] notícias de iapala






Imagens de Iapala... A estação de comboios, a esplanada do Sr. Omar e a festa de aniversário da filha do Chefe de Posto.
(Iapala, Nampula)

Para os que vêm aqui ao mato para matar saudades de Iapala ou à procura de notícias frescas, aqui está uma reportagem sobre Iapala, enviada pela minha querida amiga Cloé. E ou muito me engano ou foi escrita por quem conhece mesmo a terra há bastante tempo!

Fala de todas as pessoas-chave de Iapala, o Sr. Omar, o dono do único restaurante local, a que ele pomposamente chama de "Complexo" e que ainda hoje me escreve a agradecer por o ter tratado de uma malária cerebral, o Sr. Rui Santos, um comerciante local rico e benemérito, a agricultura de rendimento e o papel da empresa João Ferreira dos Santos até há alguns anos no desenvolvimento local, o chefe de posto e as suas idiossincrasias, a necessidade constante de transferir doentes para o hospital distrital através de caminhos inimagináveis, o papel do caminho de ferro na afirmação da localidade no passado...

Vale mesmo a pena para quem conhece!

[o mato em lisboa #2] o avião do lázaro

Já vos falei sobre o Lázaro, o menino transferido de Angola há 127 dias, para passar o Inverno mais longo da sua vida num isolamento no meu hospital. Tem uma aplasia medular. Espera um dador compatível... Há uns dias, uma colega minha viu-o através da janela do quarto, a olhar tristemente para o avião telecomandado que uma voluntária lhe oferecera, sem brincar com ele.

- Então, Lázaro, o que se passa com o teu avião?
- Não funciona mais! Entou frio...´

(continua...)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

[as melhores do serviço de urgência] parabéns, é rapaz!


Meus queridos amigos, lembram-se daqueles pais amorosos e bem-dispostíssimos de que vos falei há tempos, que me fizeram uma descrição genial do barulho que o filho fazia a respirar? Segundo eles, filhos exemplares dos anos 80, o menino, na altura com uma bronquiolite aguda, respirava como se tivesse Peta Zetas nos pulmões! Descrição que passei a usar na prática clínica diária, que o que se perde em respeito e seriedade, ganha-se em clareza e galhofa!

Ontem na consulta, estava eu a destapar-lhe a fralda para observar as articulações da anca e as artérias femorais, quando, de repente, o piratinha começou a dar sinais de que me ia dar "um banho de água quentinha". Voltei a tapar a fralda, antes que o acidente se consumasse e o pai perguntou-me:

- Doutora, quer um tapa-pilinhas? Nós temos aqui um! Dá imenso jeito...
- Um quê? Mostrem... Ah, lindo! Genial! Onde é que compraram?
- Foi em Nova Iorque, mas também se pode mandar vir.

Não é o máximo? Filhos dos anos 80, mas também na crista da onda! Quantos acessórios mais vão inventar para os muda-fraldas?! Fui pesquisar e está à venda em imensos sítios, como aqui. E, de facto, deve dar algum jeito.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

[psiquiatrices] o mato em lisboa #1...

Numa das enfermarias do meu hospital, temos um menino vindo de Angola ao abrigo do protocolo com os países de expressão portuguesa. Transferido por aplasia medular: a medula óssea do menino, sem razão aparente, pura e simplesmente deixou de funcionar e produzir sangue.

O Lázaro* tem 8 anos e está internado em isolamento há 124 dias e é um doce de criança. Uma paciência de antigo testamento. Em Portugal tem apenas a mãe, uma típica mulher de armas africana! Uma mulher que não reage, mas resiste até ao limite. Uma mulher que não é pró-activa, não é empreendedora, não se vê tomar qualquer iniciativa, mas é um suporte a toda a prova. É uma mulher acabada de sair do mato, quase analfabeta. que não arreda pé do quarto do filho e permanece o tempo todo sentada à cabeceira, com a bíblia aberta e o ar meio resignado, meio alheado de quem está habituado a sofrer... Cuida do filho. Fala pouco, faz poucas perguntas. Sai do quarto três vezes por dia para comer e tomar banho. Mas tem esperança. E está à espera. Apenas.

Há duas semanas, 110 dias depois de ter sido internado, o Lázaro começou a dar sinais de estar a começar a ficar saturado... Não dormia bem, recusava-se a comer até ao fim, não queria falar muito, resistia a tomar a medicação. Passava mais tempo sem brincar, sem ler ou ver televisão. Os colegas de Pedopsiquiatria foram chamados novamente para intervir junto do menino e de sua mãe.

Depois de mais de uma hora de conversa o menino estava mais calmo, a mãe menos alheada e ligeiramente mais sorridente e o colega da Pedopsiquiatria, ainda a tirar a bata esterilizada, máscara, touca e luvas, apareceu à porta da sala de reuniões.

- Então, o que achou do menino?
- Bem, não me pareceu muito diferente da outra vez, só está mais cansado de estar aqui, o que é compreensível. Não tem nada de anormal. Expliquei à mãe que ele foi retirado do ambiente dele e tem estado muito isolado e não pode brincar com ninguém nem ir para a rua como em Angola. Disse-lhe que ela tinha de brincar mais com ele.
- E ela? Percebeu alguma coisa?
- Sim, acho que sim... Não consegui que falasse muito, mas acho que percebeu o que eu lhe disse...

No dia seguinte, a mãe, colaborante e cheia de boa vontade, fazia o que o médico lhe tinha sugerido que fizesse: brincava, um pouco desajeitada, com os carrinhos e aviões no chão, junto à cama do filho, enquanto este, deitado na cama, alheio a tudo o que se passava em seu redor, via os primeiros programas da manhã do Canal Panda.

[E pronto, meus amigos, só um materialista diria que as palavras que o médico proferiu foram as mesmas que a senhora percebeu. A cultura de fundo é o que faz com que as palavras façam sentido. Numa sociedade africana, em que as crianças brincam livres e soltas pela rua, a ideia de os pais brincarem com os filhos não faz qualquer sentido. O médico dissera-lhe: "A senhora tem de brincar mais com o menino." E a senhora, que estava com o menino, estava a tentar brincar. Certamente intrigada por lhe terem dado um conselho tão bizarro, mas enfim, se o médico tinha dito... por um filho faz-se qualquer coisa...]

(continua...)

* Nome obviamente fictício.

[as melhores do serviço de urgência] o meu blogue dava um programa nacional de vacinação

Serviço de Urgência. Adolescente de 15 anos, praticante de parkour, vem por uma ferida na planta do pé (felizmente não perfurante) causada por um prego, que pisou inadvertidamente quando saltava de um andaime numa obra...

- Tens as vacinas em dia, André?
- Quase todas. Já ando para tomar a "vacina de encontra o tecto" há anos, mas ainda não tomei!
- Bem, então temos de tomar agora, que essa ferida está muito feia e os pregos podem ter tétano!
- Vai doer?
- Claro que sim. E às vezes cai o braço! André, não sejas tonto, anda daí.

[Sinceramente, quem faz parkour e anda por aí a saltar de varandas e andaimes pode perfeitamente tomar uma "vacina de encontra o tecto" sem se queixar!]

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] os girassóis da tia cármen


Os fantásticos girassóis da tia Cármen... o paradigma da sua defesa da personalidade!

(continuando...)

A tia Cármen, a vovó  dos meninos da Casa do Gaiato, contou-me uma tarde a sua dura experiência de uma infância passada durante a guerra civil de Espanha, em que mais do que uma vez tinha sido obrigada a fugir a pé com a família. Nesse dia, já rendida àquela personagem maternal, divertida e invulgar, pedi-lhe para me falar dos seus trabalhos artísticos e ela contou-me simplesmente que o maior prémio de pintura que alguma vez tinha recebido representava um enorme campo de girassóis. Dias depois mostrou-me uma fotografia desse quadro, em que os girassóis eram retratados a partir de baixo, com os caules cheios de espinhos e a luz do pôr do sol adivinhando-se coada pelas corolas das enormes flores. Mas longe de ser a visão serenamente bucólica que eu tinha imaginado, a imagem veiculava uma desconcertante sensação de movimento e opressão.

– Este quadro chama-se “A Fuga”. Durante anos tive a obsessão de pintar girassóis vistos por baixo porque tinha de deitar cá para fora a imagem do pior dia da minha vida, que foi o dia em que perdi o meu pai e tivemos de fugir de casa sem levar nada connosco através de um campo de girassóis. Eu era muito pequena e só tenho a recordação de enterrar os sapatos na areia mole e mal conseguir avançar, como nos pesadelos. E os girassóis eram altíssimos e tinham uns espinhos enormes que não picavam, mas arranhavam a pele até ficar toda em ferida.

Pois… estava explicada, portanto, a sua vocação do ensino da expressão plástica aos meninos. Ao ensiná-los a pintar estava a transmitir-lhes a sua melhor defesa da personalidade, a ensinar-lhes que pintando as suas angústias e medos poderiam mais facilmente vencê-los.

Mas não eram só aulas de pintura que leccionava. O que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dos desenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nas figuras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:

– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!

(continua...)

[welcome to mozambique] carnaval de quelimane







Instantes deliciosos do Carnaval de Quelimane, Zambézia
Por António Zafanias, fotógrafo do Diário da Zambézia. Fotos no blogue do Professor.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

[outras paragens] o carnaval em bissau


Fantástico, o Carnaval em Bissau! 
Foto de Helena Ferro de Gouveia, a Domadora de Camaleões.


Só pela imagem apetece viajar para poder tomar parte nestes momentos! Deixo-vos com um excerto do post da Helena Ferro de Gouveia: "O Carnaval da Guiné Bissau".
"Muito longe dos carnavais “ricos” de outras paragens, em Bissau dança-se quase sempre descalço, às vezes mesmo quase sem roupas, improvisa-se instrumentos musicais, até de cascas ocas de árvore, e usam-se como adereços coisas tão bizarras como um pedaço de espremedor de esfregona partido enfiado na cabeça.
Depois são as cores e os ritmos, são as esculturas feitas de lama e depois pintadas, é a mesma lama a cobrir corpos, umas vezes de branco outras de castanho, uns espelhos pequenos pendurados, por vezes corpos esfregados com óleo e sementes coladas na pele."

[a geração da utopia] o polvo


A praia dos meus sonhos e o nascer do sol no Índico...
(Praia das Chocas, Nampula)

Até aos 23 anos eu costumava dizer que já tinha um plano para a velhice. Um plano absolutamente infalível. E nem sequer tinha um plano B. Eu estava plenamente convicta de que quando a velhice chegasse, com a consciência de quem já viveu como queria e com a arrogância de quem já não sonha, haveria de me dedicar a fazer tricot. Muito tricot. Tricot até à rabdomiólise! Imaginava uma velhice doce e desassombrada. E então aprendi, assim em jeito de PPR, a fazer tricot com a minha querida avozinha, hoje lúcida, doce, tranquila e desassombrada, com os seus 98 anos.

Mas, entretanto, o coração fugiu-me. À traição! E ficou enterrado em África, não muito longe de Maputo... E depois fugiu-me novamente, quando já não esperava que me abandonasse de novo. Cada vez para mais longe. E passaram a ser cada vez mais as noites em que não durmo. Cada vez mais os desassossegos por ver tanto por fazer. E tenho mais vontade de lutar... com a plena consciência de que o que vivo também não passa de uma utopia.

E foi então que conheci o meu colega com nome de filósofo [não, não é o Sócrates!], o meu guru espiritual do "modo África"*, que me fez perceber que eu um dia também irei engrossar as fileiras daqueles que, depois de se desiludirem demasiadas vezes com o mundo e com as pessoas, vão acabar numa cabana na praia, com o amor da sua vida, a tentar caçar um polvo [no meu caso é mais provável que seja uma lagosta, vá... e a praia pode ser um spa, mas vem tudo a dar no mesmo], longe do resto do mundo**...

Paradoxalmente talvez até seja uma coisa que me descansa... Isso quer dizer que até lá posso viver a utopia com todas as minhas forças. Só tenho de aprender algures a fazer pesca submarina!

* Aquele que me ensinou a respirar fundo em qualquer circunstância africana e dizer para mim própria: "Não, isto não é revoltante. Isto é exótico!"
** Referência a uma das cenas finais do romance de Pepetela "A Geração da Utopia". Sim, que eu posso ser loira, mas o meu guru é um homem culto, tsá?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] a tia cármen...




As aulas de pintura e a tia Cármen...
(Casa do Gaiato, Maputo)


(continuando...)

E, entre o trabalho no centro de saúde e as noites com os meninos, havia o jantar com o senhor padre, os outros voluntários da casa e um ou outro convidado. Todos eles eram pessoas fascinantes e que me acolheram desde a primeira hora.

Acabei por fazer uma amizade especial com a tia Cármen, uma entusiástica voluntária espanhola, antiga empresária e viúva de um português, que há dois anos deixava os filhos e os netos durante o ano lectivo para ir para a Casa do Gaiato dar aulas de pintura e expressão plástica.

Na minha perspectiva, a tia Cármen tinha vindo para ser a avó da casa, a figura de referência que os meninos, sendo órfãos, não tinham. Uma avó autêntica, com uma insuficiência cardíaca ligeira, uma doença pulmonar obstrutiva crónica que me deu trabalho a controlar e, sobretudo, com uma enorme paixão pelos mais pequenos e com uma missão autoproclamada, que era deixá-los ser meninos e ajudá-los a brincar.

Afirmava com muita graça que havia dois tipos de voluntários em África: os que se dedicavam ao ensino, à saúde e ao desenvolvimento económico-social e os que se dedicavam a construir infraestruturas. Mas ela não tinha vindo para uma coisa nem para outra. Tinha vindo para incentivar os seus meninos a sonhar e apoiar os seus sonhos, porque acreditava piamente que só a expressão dos sentimentos fazia crescer. Sobretudo para aqueles meninos tão pequenos e que já tinham sofrido tanto. “Porque sem sonhos não há desenvolvimento e sem entusiasmo não há trabalho!”, terminava.

(continua...)

[casa do gaiato] meninos da rua de maputo


Na sala de aula...
(Casa do Gaiato, Maputo)
Foto de Pedro Sá da Bandeira

Excerto de uma reportagem no Zambézia Online:
Josias de seis anos de idade, é um exemplo paradigmático de uma criança que tomou a decisão de virar as costas à vida de rua e procurar um lar substituto. Há dois meses decidiu largar a vida de rua e juntar-se à família da Casa do Gaiato, depois de ter passado tantos meses a percorrer as avenidas da cidade do Maputo, à procura de um contentor de lixo de onde pudesse tirar algo para se alimentar. Cansado de viver de esmola, onde de dia deambulava na baixa e à noite refugiava-se nas barracas do bairro Trevo, no município da Matola, para dormia, Jossias tomou a decisão de largar tudo e voltar a uma vida normal.

Ao que nos contou, abandonou a casa dos pais por causa dos maus-tratos e decidiu se juntar a outros meninos de rua, vagueando pelas artérias da cidade das acácias, de contentor em contentor de lixo, à procura de algo para matar a fome. Num desses dias foi interpelado pela irmã Quitéria Torres, que o convidou a abandonar a vida que levava para se juntar à família da Casa do Gaiato. Mesmo desconfiado, aceitou o convite.

“Tudo se passou numa sexta-feira. Combinámos que ela viria me buscar no domingo, isto porque ainda queria me despedir dos meus amigos. Realmente a irmã Quitéria apareceu e levou-me para a Casa do Gaiato. Gostei e decidi ficar. Estou há quase um mês e não pretendo sair mais. Apelo aos meus amigos que ainda se mantêm na rua para que abandonem a vida de mendigos e se juntem a nós, pois aqui a vida é melhor que lá fora. Hoje já estudo e estou satisfeito, porque ando limpo, tomo banho, não vasculho mais os contentores de lixo, porque tenho o que comer. É aqui que quero continuar a viver e aprender.” disse o menino ao nosso Jornal.

Reforçando o apelo do menor, a irmã Quitéria Torres disse que é chegado o tempo dos que estão na rua recolherem aos mais diversos lares existentes, não se excluído a hipótese de regressarem às suas famílias verdadeiras. Segundo ela, os que têm poder de decisão sobre as crianças devem fazer de tudo para que elas sejam enquadradas em famílias substitutas para que voltem a alimentar os seus sonhos.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

[as melhores do serviço de urgência] a fase oral do freud...

Serviço de Urgência. Um menino de cinco anos entra arrastado por sua mãe, ainda a reclamar que queria ficar na sala de espera a brincar porque, coincidência das coincidências, tinha encontrado um coleguinha de escola e, para gáudio de ambos e desespero das respectivas progenitoras, começaram a desfilar todos os palavrões que conheciam... É incrível como as crianças têm sempre a percepção de quais são os espaços onde podem montar este tipo de carnavais sem que as mães os possam arrastar dali para fora no mesmo momento.

Motivo da urgência: lesões da face vermelhas, descamativas, muito incomodativas... Uma dermatite da face mesmo "assanhada". Marcas de coceira em cada centímetro da pele.

- E quando é que isto apareceu? - pergunto.
- Olhe, doutora, ele é um menino muito nervoso. Isto piora sempre nos dias de escola e melhora quando está em casa mais dias... Também porque eu estou sempre em cima dele a pôr-lhe creme quando está em casa, mas não é só isso. Se passar um dia inteiro fora de casa entretido também melhora, mesmo que eu não lhe ponha creme. Então à sexta-feira ele está uma lástima.
- E que tratamentos já fez?
- Eu já o levei a uma alergologista e fez uns tratamentos, mas só melhora dois ou três dias e assim que pára volta tudo ao mesmo.
- Ok, vamos despir o menino.
- Ah, não vale a pena, ele só tem isto na cara,
- Não pode ser. Tem de ter mais alguma lesão em qualquer lado...
- Não tem, doutora. A alergologista também ficou muito admirada com isso...
- Humm, vamos ver.

De facto não tinha mais lesão nenhuma em qualquer parte do corpo. Mas enquanto o observava reparei que tinha as unhas roídas até ao sabugo, algumas quase em sangue e estava cheio de feridas nos dedos provocadas pelo "vício" de roer as unhas...

- Credo, João, olha o que é que tu fazes às tuas unhas! - repreendi-o.
Sorriu-me, envergonhado...

- Ouve a doutora! Ai, olhe, eu já fiz de tudo para ver se ele larga este vício, mas é mesmo difícil!
- Estou a ver... e também usa chucha?
- Não, doutora.
- A sério, mas então deve chuchar no dedo, olhe para estes dentes.
- Não, ele não chucha no dedo, mas só conseguiu largar a chucha há seis meses. Foi aí que começou a roer as unhas desta maneira!
- Ah, já percebi tudo...
- Então?

[Esta fase oral está aqui em força!]
- Ele na escola deve estar sempre aos beijinhos à educadora, ou não?
- Sim, doutora! Ele é muito nervoso, cheio de medos e muito dependente. Na escola é uma coisa por demais! Está sempre "atrelado" à Xana, a educadora.
- E ela? Não o estimula a estar mais com os outros meninos?
- Acho que não. Ela adora-o e ele está sempre ao pé dela a pedir colo e a dar-lhe beijinhos, é mesmo verdade!
- E ela usa maquilhagem?
- Ah, sim, por acaso usa! Não me diga... Acha que esta coisa na cara pode ser disso? Ele por acaso faz alergia a quase todo o tipo de cremes.
- Acho que pode ser disso, sim. E também acho que precisa de o levar ao psicólogo.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

[onde dormem as crianças] uma janela para o quarto...


Não, meus queridos amigos, eu sou pediatra mas não venho aqui falar de perturbações do sono na criança...

Quer dizer, se quiserem muito também falo, pronto, mas o que eu tinha planeado para hoje era mostrar-vos um trabalho absolutamente fantástico do fotógrafo James Mollison, que nos entreabre, para um pequeno vislumbre, o dia-a-dia de várias crianças no mundo, através das imagens dos seus quartos... Mostro-vos alguns exemplos para terem mais vontade de viajar até aqui.




[casa do gaiato] o portão do centro de saúde


(continuando...)

Mas voltando ao centro de saúde onde passava os meus dias: não resisto a falar de um outro trabalhador muito importante. Ao portão do recinto onde ficava o centro de saúde estava sempre o segurança, o tio Vasco*. E tenho de reconhecer que a irmã Quitéria, que o tinha colocado naquele posto, só podia ser uma pessoa com uma criatividade e um poder de observação notáveis. Posso pedir-vos para fazerem um exercício comigo? Imaginem que têm à vossa disposição todas as pessoas da aldeia, pois não há praticamente emprego, mas não podem exigir qualificações, uma vez que poucos têm sequer a escolaridade mínima... Numa zona já desminada, sem grande violência no dia-a-dia, para além das ocasionais rixas de homens bem avinhados, qual o perfil que escolheriam para um segurança de um centro de saúde? Controlador? Intimidante, com capacidade para proteger os trabalhadores e os equipamentos? Correcto e incorruptível?

Bem, eu digo, a sua principal característica da personalidade era ser um coscuvilheiro de primeira apanha, daqueles mesmo do tipo não-há-nada-que-eu-não-saiba-ou-não-venha-a-saber! Aquele homem era um autêntico agente infiltrado! Perdoem-me o preconceito. Se calhar a potencial utilidade desta perturbação da personalidade foi imediatamente evocada por todos os estimados leitores, mas a mim não me tinha passado pela cabeça. E já agora perdoem-me também o abuso de linguagem, que este blogue pretende-se assim mais para o científico do que para o comezinho e ser "cusco" não é, evidentemente, perturbação mental nenhuma, ou pelo menos é aquela história de sempre, não vem classificada no DSM, a bíblia das perturbações mentais...

Mas, como eu ia dizendo, o tio Vasco era absolutamente extraordinário! Nunca mais voltei a ter alguém que me desse parte dos doentes que eu tinha visto depois de os ter mandado para casa ou de os ter enviado para outro hospital. Era melhor que uma equipa domiciliária de follow-up: sabia tudo sobre os doentes que tinham passado por ali – como estavam, como se estavam a dar com a medicação, se os meninos já tinham voltado à escola ou se os adultos já tinham voltado a trabalhar. Foi ele quem um dia deu o alerta de que uma senhora viúva que tinha estado no centro de saúde no dia anterior com uma gastroenterite aguda não tinha passado por ali. Pouco tempo depois foram a sua casa, onde a encontraram caída e muito desidratada. Como passava o dia ao portão, toda a gente tinha obrigatoriamente de falar com ele. Sempre que ficava preocupada com um doente, bastava lembrar-me do nome dele e perguntar por ele ao tio Vasco:

Tio Vasco, que é feito da D. Eugénia?
Começou a tomar o antibiótico há dois dias e esta tarde saiu para a machamba. Já estava melhor.
E como está o professor Sebastião?
Estava com malária de três cruzes e ainda não consegue sair de casa, mas a filha foi levar-lhe comida e diz que hoje já tinha apetite de comer...


(continua...)


* Nome fictício. Não é por nada, é que não me lembro mesmo do nome verdadeiro...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] o centro de saúde


(continuando...)

Foi uma experiência apaixonante, trabalhar no Centro de Saúde da Casa do Gaiato com os outros profissionais, que eram pessoas com muito pouca cultura médica ou científica, mas a maior parte deles com experiência clínica e muito bom senso.

E, como se não bastasse ter começado do zero na Medicina Tropical, ainda havia a barreira da língua (o dialecto Changana é absolutamente impenetrável e dificílimo) mas que se resolveu em grande estilo: colocaram à minha disposição uma intérprete fantástica, a Inês de Maria, que para além de tradutora e mediadora cultural, tinha um sentido de humor e uma boa disposição a toda a prova e adaptava as minhas perguntas desastradas à realidade local. Ainda hoje sorrio quando me lembro que quando perguntava aos doentes em que suspeitava de imunodeficiência se alguma vez tinham tido candidíase orofaríngea e explicava: “assim pequenas placas tipo iogurte”, ela, imperturbável, traduzia iogurte para “coco ralado” ou “mandioca cozida”, traduzia as minhas recomendações de “não fazer esforços” para “não deve pilar milho nem trabalhar com enxada”... Ou quando comecei a compreender um pouco do dialecto, uma vez uma senhora queixou-se que a filha de sete anos tinha a “dor do mês”.

Com sete anos já é menstruada? – perguntei, abismada, ainda para mais porque a menina não aparentava sequer ter sete anos, mas apenas cinco ou seis.

Não, não é menstruada – assegurou-me a Inês, o que ela disse é que a menina tem epilepsia, aqui as pessoas chamam-lhe tradicionalmente a “doença do mês” ou a “doença da lua”...

(continua...)

[instantes] a força que um sorriso pode ter!


- Bom dia, esse é o meu filho, primeira sorte!
(Gilé, Zambézia)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

[instantes] porque a vida é todos os dias!


Vamos para casa!
(Gilé, Zambézia)


Obrigada pelo dia de hoje, meus amigos! E por o estarem a tornar tão especial!

[ser estrangeiro é um modo de vida] inculturação


Carnaval de Quelimane, por António Zafanias, fotojornalista.
(Quelimane, Zambézia)


"Este Cronista Não Sabe que Não Sabe" Crónica de Manuel Cardoso, sj. Daqui.

"Em Moçambique, quando se recebe uma visita em casa é falta de educação perguntar se ela quer comer alguma coisa, se ela quer tomar algo. Perguntar a uma visita se quer comida é receber a visita como se fora um mendigo esfomeado. Receber bem é acolher a pessoa, sentá-la e depois ir cozinhar, colher ou comprar comida para lha colocar à frente. Mas como é que eu ia adivinhar que receber alguém perguntando, Queres almoçar connosco, é uma ofensa?

Esta é uma crónica sobre viver em África, sendo Europeu. Sobre ser estrangeiro. Sobre viver em Moçambique sem ser turista. (...) Segundo a ordem lógica desta crónica, o cronista devia agora apresentar as técnicas, os métodos: o modo e ordem para entrar em terra alheia. Mas o cronista não conhece esses meios. Pior, o cronista não sabe o que não sabe! (...)
Então, como descobrir o que não sei? Procurar moçambicanos, procurar estar com Moçambicanos, procurar estar com moçambicanos nos seus ambientes próprios, e procurar estar atento aos moçambicanos. Este é o único caminho que descobri até agora. Podem contradizer-me: Manel, compra o guia do American Express e lê lá o que precisas de saber; nos guias de viagem está tudo escrito! Contudo, será que no guia diz como se cumprimenta, respeitosamente, uma senhora de idade? Diz qual a ordem pela qual as pessoas se servem à mesa? Ou como comem? Diz qual o gesto apropriado para saudar alguém na rua, e qual o apropriado para o fazer na Igreja? Diz como pedir desculpa?
Eu não sei o que sendo óbvio para um moçambicano, não é óbvio para mim, português. E o meu problema é ninguém perder tempo a escrever o óbvio, justamente porque é óbvio! E, ao mudar de terra, o que parece óbvio deixa de o ser. Aprender novos óbvios é a missão do estrangeiro que não quer ser turista, do estrangeiro que quer entrar em Moçambique, e isso é que torna ser estrangeiro tão apaixonante!"

Manuel Cardoso, sj

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

[dia europeu da disfunção eréctil] histórias do mato...


 Pausinystalia yohimbe, planta africana de onde se extrai a Ioimbina, largamente difundida e utilizada contra a disfunção eréctil. Também conhecida como "Pau de Cabinda".

(continuando...)

De todas as vezes que trabalhei como voluntária em Moçambique, apesar de a minha especialidade de coração ser a Pediatria, sempre vi adultos e crianças e, obviamente, tratei todas as doenças sexualmente transmissíveis (DST) que me passaram pelas mãos [passe a expressão] e que grassam como a malária por todo o país. Para isso de muito me serviu a minha formação na consulta de DST no Centro de Saúde, onde durante meses, antes de iniciar a especialidade, tratei das mazelas e desgraças dos "porbaixos" dos tios e tias da Lapa e restante Lisboa.

Outra circunstância que também contribuiu em larga medida para a minha grande actividade assistencial nesta área foi a recusa determinada de todas as minhas amigas médicas em tratar destes assados:
- Aquela doutora ali é que é especialista - indicavam elas, muito afavelmente, apontando na minha direcção, quando algum doente as abordava com estas questões.

De modo que quando algum homem me entrava na consulta e o via fechar a porta atrás de si, percebia imediatamente qual era o assunto que o afligia.

Mas se as DST não me traziam questões de maior - sabia diagnosticá-las, tinha exames à disposição e os medicamentos necessários -, os homens com disfunção eréctil vinham por arrasto e isso é que era um problema. Um bicho-de-sete-cabeças. Nunca tinha tido formação nessa área e não era situação que me despertasse curiosidade ou interesse científico... Nestes casos fazia apenas uma investigação básica (ver se os ditos senhores tinham reflexos normais nos membros inferiores, se não tinham anemia ou insuficiência cardíaca e pouco mais) e tentava terminar a consulta o mais rapidamente possível, dizendo que não tinha medicamentos para isso e que o melhor era procurarem um curandeiro, porque eu sabia que existiam  árvores nas imediações de cuja casca se extraía um produto viagra-like que combatia a disfunção eréctil (a Ioimbina, ver figura ilustrativa). Aliás, era notório que muitos homens padeciam desse mesmo mal nas redondezas, uma vez que algumas árvores estavam tão esquartejadas que quase se lhes viam as entranhas... E se a situação fosse psicológica não me estava a ver a fazer psicoterapia a homens de outra cultura. Curandeiro com eles e vá de chamar o próximo.

Mas, certo dia, um dos enfermeiros do hospital insistiu tanto que me vi obrigada a investigar mais sobre o assunto... E, quanto mais investigava, menos percebia o que se passava, porque as respostas eram todas afirmativas: que sim, que às vezes acordava com erecção, que sim, que às vezes tinha erecções e ejaculação durante o sono, que sim, que pois e que também... Mas então, haveria algum problema na relação com a mulher?

- Não, doutora, eu ainda tenho amor!
- Mas que estranho, então o que é que lhe acontece?
- Doutora, para "brincar" com a minha mulher eu não apanho aquela força... eu só consigo "brincar" quatro vezes por noite...
[Caiu-me o queixo...]

- Ah... bem... acho que sendo assim não o posso ajudar. Tem de ir ao curandeiro mesmo...

[E muitas questões se poderiam colocar a partir desta, mas o post já vai longo e o dia é o dia Europeu da disfunção eréctil e não Africano por alguma razão...]

[14 de fevereiro] dia europeu da disfunção eréctil



Hoje, como convém relembrar, é o Dia Europeu da Disfunção Eréctil. Não sou militante desta causa. Não posso dar o corpo a todos os manifestos [salvo seja]... Respeito e apoio, porém, quem se dedica a ela porque é um problema muito mais frequente do que se imagina, sobretudo entre os jovens e, devido a ele, há entre nós muitos casais infelizes. A disfunção eréctil é geradora de inúmeras tensões e mal-entendidos. E até deixo a pergunta para a qual não há resposta, quantos casais terão ficado por construir por causa deste tabu? Aliás, quando entre mulheres se diz: "Sabes, ele tem um problema..." Já se sabe a que nos referimos, não é verdade?

Por isso, vou novamente agarrar o mote e recuperar o que escrevi no ano passado, já que não me apraz falar de São Valentim, um santo que foi banido da Igreja no louco ano de 1969 porque se provou que nunca existiu. E também porque até tenho uma história para contar sobre o assunto.

(continua...)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

[outras palavras] os tumultos na grécia

A propósito dos graves acontecimentos na Grécia, podemos recordar as palavras de Mia Couto sobre a revolta popular em Maputo em Setembro de 2010. Um excelente artigo, intitulado "A Pobreza Sai Muito Caro", que reproduzo parcialmente. A totalidade do texto aqui.
Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte imediato da minha janela. Escurece o futuro. Estamo-nos suicidando em fumo? Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está, em chamas, consumindo a estrada. Essa estrada é aquela que nos levaria a uma condição melhor.
E de novo, uma certa orfandade atinge-me. Eu, como todos os cidadãos de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz, não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. Alguém virá dizer-nos alguma coisa, diz um dos meus filhos. Ninguém, excepto uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.
A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins da semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente agrediram o seu próprio futuro. Os tumultos não tinham uma senha, uma organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de poder reverter a decisão de aumento de preços. Sem enquadramento organizativo os tumultos, rapidamente, foram apropriados pelo oportunismo da violência, do saque, do vandalismo.
Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações redutoras e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos deve obrigar a um repensar de caminhos (...). Na verdade, os motins não eram legais, mas eram legítimos. Para os que não estavam nas ruas, mesmo para os que condenavam a forma dos protestos, havia razão e fundamento para esta rebelião. (...)
Mia Couto, artigo n'O País

[gémeos] não foi fácil, mas sobrevivemos todos!


Calma, o peito chega para os dois!
(Gilé, Zambézia)

[casa do gaiato] os meus meninos...


Os meus meninos gaiatos...
(Boane, Maputo)

(continuando...)

Depois do trabalho no centro de saúde eram os meninos que preenchiam o fim das minhas tardes e as noites. O meu quarto na Casa do Gaiato era na casa dos meninos dos oito aos dez anos e rendi-me a eles desde o primeiro dia, quando que me foram enfeitar a mesa de cabeceira com uma flor silvestre que crescia dentro de uma casca de coco, e me cantaram uma música de boas-vindas, enquanto se digladiavam para ver qual deles me fazia a cama...

À noite conversávamos, fazíamos macacadas, improvisávamos teatros, tirávamos as fotografias mais loucas e ajudava-os com os trabalhos de casa. Tornei-me a solução de recurso nas brigas, tão frequentes quanto seriam de prever numa casa só de rapazes... E como ainda faziam chichi na cama, também me levantava de noite para os mandar à casa de banho poucas horas depois de adormecerem, embora as reacções de pânico de alguns quando eram acordados me perturbassem... Que histórias de vida terríveis estariam por detrás dessas reacções? Nunca tinha lidado com situações dessas, mas descobri que afinal era muito fácil tranquilizá-los e chamá-los à realidade:

Aqui estás seguro... ninguém te vai fazer mal.

 (continua...)

[os meninos da guerra] voltar a ser gente!


Menino-soldado...
(Imagem da net muito reproduzida, pelo que não consigo citar a fonte original)

Ainda assim, só consegui ter a certeza de que aquela interpretação não tinha sido fantasia minha quando o Padre José Maria me confirmou que sim, que alguns dos meninos mais velhos do orfanato tinham andado na guerra, embora não se tivesse alongado muito:

O que é que isso interessa agora? A guerra já acabou! Já basta tudo quanto sofreram. Há dois anos apareceram aí uns oficiais do exército a perguntar quais é que tinham sido os meninos que tinham andado na guerrilha, queriam nomes, sabe-se lá para quê, mas eu recusei-me a responder. Quase todos agora são adolescentes normais. Só um ou dois é que o psiquiatra achou que precisavam de acompanhamento. Para quê desenterrar o que já lá vai se não os ia ajudar em nada? Mais vale que esqueçam...

Mas não, não esqueciam. Eram diferentes dos outros. E seriam sempre diferentes… Para os mais novos, os que tinham sido mobilizados eram respeitados e reverenciados como uma espécie de heróis e rodeavam-nos para ouvir as suas histórias. Mas os mais velhos escutavam-nos mais com compaixão do que com respeito ou inveja. Entendiam a sua fragilidade… Não me foi difícil depois perceber quais eram estas "estrelas" que tinham um estatuto diferente, e assisti a uma ou outra discussão em que não se abordava diretamente o assunto da guerrilha, mas em que se notava claramente o seu fascínio por armas... Também ali, entre crianças e adolescentes, para além histórias de perdas, de abandonos e maus-tratos, havia traumas, feridas de guerra e stress pós-traumático.

Eu perguntava-me muitas vezes se seria possível sobreviver a tudo por que eles tinham passado e depois crescer normalmente, trabalhar com vontade, constituir uma família. Pelos vistos sim... Com mais ou menos marcas, com mais ou menos dificuldades na escola e nos relacionamentos, sei que todos acabaram por crescer. E muitos já completaram cursos superiores, arranjaram empregos, saíram da casa, casaram e tiveram filhos... É a isto que os pediatras gostam de chamar resiliência…
(continua...)

[interlúdios] and now for something slightly different

Esta semana, na Gulbenkian, durante um concerto particularmente feliz dirigido por Ton Koopman, um senhor já de certa idade, ao meu lado, cabeceava, lutando com pouca convicção contra o sono. Percebi que ele só podia ser músico [depois confirmei que era maestro] porque só acordou estremunhado duas vezes, e levantou a cabeça muito indignado por ter sido interrompido à traição no sono dos justos, a primeira vez quando o barítono deu uma nota ao lado e a segunda quando o cravista tocou três notas seguidas fora de tom.

Tive alguma dificuldade em voltar a concentrar-me no concerto porque só me lembrava de uma cena mais do que caricata que me aconteceu há dois anos [ou já terá sido há três?] no São Carlos, durante uma ópera de Wagner [o Siegfried], em que eu e o senhor ao meu lado na plateia, que eu não conhecia de lado nenhum, dormimos durante mais de metade do segundo acto.

Primeiro um cabecear envergonhado, depois um sono mais solto no meu caso, um roncar tímido, mas rítmico no caso do meu companheiro. Por fim, acabámos por assumir que era preciso dormir um bocadinho para estarmos frescos nos actos seguintes e colocámos dois casacos no apoio de braços das cadeiras entre nós e, depois de alguns "mas esteja à vontade" e "faça favor", lá adormecemos em grande estilo, quase encostados um ao outro.

De vez em quando ele levantava ligeiramente a cabeça, olhava para o palco e aninhava-se outra vez, enquanto comentava para mim: "Eles têm uma resistência... Já estamos há duas horas nisto... E ainda faltam mais quantas?" "Mais quatro", respondia eu, e sucumbíamos ao sono novamente. A cada mudança de registo ou frase mais enfática lá levantava ele outra vez a cabeça: "Eles têm uma resistência!"

[casa do gaiato] crescer na guerra...

Imagem da Campanha da ONG Child Soldiers denunciando a mobilização de crianças para a guerra na África Subsariana.

(continuando...)

Foi numa dessas jornadas de machibombo* que me apercebi, horrorizada, de que alguns dos meninos mais velhos, inclusivamente o António, tinham sido mobilizados para a frente de combate durante a guerra civil.

Quase no fim da minha estadia, no meio de uma conversa com os mais novos, de chofre e a propósito de uma disputa insignificante, o António perguntou-me se eu achava importante para uma família ter armas em casa. De súbito fez-se silêncio e o António parou o machibombo no meio do caminho. Pelos vistos era um assunto muito debatido entre eles e queriam muito ouvir a minha opinião.

Engoli em seco, tentei disfarçar que tinha ficado chocada com a pergunta, e respondi da forma mais natural que me foi possível. Dei-lhes a minha opinião, debatemos ideias, falei dos perigos, contrapus argumentos, dei exemplos, criámos situações hipotéticas. Por fim, voltou a colocar o machibombo em andamento e conseguimos mudar de assunto. Mas houve uma frase cruzada, captada de raspão, que me fez suspeitar da razão da pergunta… Na altura a frase não me fez muito sentido porque não podia conceber os meus meninos numa situação tão monstruosa. Mas claro, se tantas crianças tinham sido mobilizadas para a guerrilha, por maioria de razão isso poderia ter acontecido a estas, tão desprotegidas...

E nessa noite a frase ecoava-me nos ouvidos, não tanto pelo sentido mas pela expressão comprometida do menino que a tinha dito e o olhar fulminante dos outros que o rodeavam. Claramente era um assunto tabu, não entre eles, mas entre eles e os adultos.

*Machibombo - Autocarro
(continua...)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] o início dos dias...



A savana e as micaias...
(África do Sul)

(continuando...)

Era no centro de saúde que começavam os meus dias. Depois do mata-bicho* com os meninos, o António, um dos mais velhos, que já tinha carta de condução, ia levar-me ao centro de saúde através de uma picada fabulosa, quase desaparecida por uma vegetação rasteira de savana seca a perder de vista, de onde dava a impressão ser possível ver sair a qualquer momento uma gazela e onde, a espaços, emergiam as micaias, as árvores que eu amo desde o primeiro dia, com os seus espinhos, a sensação de serem as únicas sobreviventes no meio da secura atroz da planície e a sua copa espalmada, como se o céu ali fosse demasiado baixo, e que me faziam, absurdamente, lembrar o cabelo de uma antiga professora de matemática...

Eu ia à frente no machibombo**, ao lado do António. Os meninos que não tivessem aulas nesse dia também iam connosco atrás, para ajudarem em pequenas tarefas do centro de saúde: encarregavam-se da inscrição dos doentes, ver temperaturas, medir tensões arteriais, varrer o pátio, ajudar os doentes a perceber como se tomava a medicação.

A filosofia da casa era que os meninos deviam ajudar e participar em todas as atividades de apoio à comunidade, para se sentirem úteis, valorizados e criarem uma autoestima fundada na capacidade de ajudar os outros. Eu via-os desempenhar aquelas tarefas com um empenho, um entusiasmo e um orgulho enormes. Era mesmo importante para eles, meninos órfãos ou abandonados, sentir que conseguiam de facto ajudar alguém, sentir que alguém lhes ficava genuinamente agradecido depois de se dirigir a eles com uma dúvida, um pedido, uma hesitação que eles conseguiam resolver.

*Mata-bicho - Pequeno-almoço.
**Machibombo - Autocarro.

 (continua...)

[casa do gaiato] os encantos de primeira vez em áfrica








A Casa do Gaiato de Maputo (a capela, os meninos, o refeitório e o berçário para as crianças desnutridas da aldeia mais próxima).
(Boane, Maputo)

Já vão quase dez anos desde a minha primeira missão de voluntariado em Moçambique, altura em que, ainda com quase nenhuma experiência, me colocaram a dirigir o Centro de Saúde da Casa do Gaiato, no meio do mato, a 50 km de Maputo...

A aldeia mais próxima ficava a cinco quilómetros e era lá que funcionavam as principais atividades de apoio à comunidade, incluindo o centro de saúde. Quando cheguei, a enfermeira responsável pela saúde estava em Espanha, para onde tinha viajado com urgência pela doença de um familiar próximo. Era portanto necessário alguém para ficar a tomar conta do centro de saúde... Pois... inacreditavelmente, eu, ainda sem a licenciatura, era a pessoa mais diferenciada!

Confesso que nunca tinha estudado Medicina Tropical a sério. Nem mesmo sem ser a sério. Nem mesmo por descargo de consciência antes de ir. Só levei um livro de Medicina para ler porque achei que não ia ter cabeça nem oportunidade para estudar… Enganei-me! Enquanto lá estive estudei até à inconsciência porque tive de tratar desde malária até febre de Katayama, passando por impétigo e tinha. Descobri a minha vocação! É mesmo disto que eu gosto. Seria de bom grado a primeira dama do estado de emergência!


E uma experiência que parecia inicialmente aterradora, porque não conhecia nem a língua, nem a cultura e mal conhecia as doenças, transformou-se numa paixão!

(continua...)