sexta-feira, 23 de junho de 2017

[que farei quando tudo arde?] a minha amiga catarina


A minha amiga Catarina em cima do telhado, rodeada pelas chamas...
(Foto daqui)

Tenho estado à espera que ela nos conte como foi. Como foi que sobreviveu a todo aquele capítulo mais horrível da Divina Comédia. O que a fez nunca voltar costas à luta e, no princípio, meio e fim manter o sentido de humor, a compostura, o sangue-frio, a preocupação em dar notícias e o antirrugas. Uma mulher Chanel nunca se atrapalha, que uma mulher atrapalhada é pior que um anestesista bêbado. E mais inflamável.

Tenho uma amiga que esteve encurralada pelo fogo em Castanheira de Pera. Uma amiga que me fez chorar desesperada e rezar por um milagre durante mais de 12 horas. Não vejam isto como uma força de expressão. Eu não costumo rezar por milagres. Mesmo nos milagres a que já assisti (verdadeiros e inexplicáveis para mim, que sou uma mulher de ciência, acho que vi um - um e meio, vá, já vos falei sobre isto), não rezei por um milagre. Foi mesmo o desespero, a impotência e a incredulidade que me fez rezar pelo que não se pode pedir. E fazer refresh de minuto a minuto na sua página do facebook à espera do notícias, enquanto via apenas os apelos de outros amigos por notícias. Porque as ligações estiveram interrompidas durante horas!

No sábado o meu marido chegou a casa e eu estava deitada a chorar. E como é que lhe ia explicar ou sequer admitir a vergonhosa circunstância de que a pessoa por quem chorava não era sequer minha conhecida? Não a conheço pessoalmente, mas é minha amiga! Conheci-a aqui neste mato! Somos amigas e apaixonadas por Moçambique. Acabei por fazer uma promessa a Santa Escolástica (achei que Santa Bárbara e todos os outros milagreiros das catástrofes estariam assoberbados), que espero que ela agora me ajude a cumprir. Mas estava longe de imaginar como foi. O desespero de ter de proteger os seus sozinha, com uma mangueira em cima de um telhado, cercada pelo fogo que consumia as suas memórias de infância e a tranquilidade de ter uma casa segura onde criar raízes, quase sem meios e sem saber com quem contar. E no fim fazer-me rir a dizer que foi como a peça de Tennessee Williams, Gata em Telhado de Zinco Quente. Mas com sérum e antirrugas.

Espero que ainda nos conte como foi. E sei que um dia vai fazer qualquer coisa maior com isto que aconteceu, como é seu habitual. Coragem, Catarina! E obrigada por continuares por cá!

[Não sou silvicultora de bancada. Tenho muitas dúvidas e uma grande mágoa. Espero que algumas respostas venham a ser dadas por fim. Não tenho mais nada a dizer porque genuinamente não sei e não posso. Só posso ajudar no que está ao meu alcance...]

quinta-feira, 22 de junho de 2017

[welcome to mozambique] a seleção de esperanças!


"Os meninos das Irmãs" - Escolinha da Santa Cruz, Nampula
Não sei quais deles são meus filhados, possivelmente nenhum, porque só tenho rapazes e veem-se sobretudo meninas a dançar, mas sei que são felizes e lhes é permitido ser criança!
(Moçambique)

No mês da criança, no dia em que é divulgado o relatório da OCDE em que se faz a revelação bombástica de que "uma melhor educação na primeira infância aumenta as hipóteses das crianças desenvolverem todo o seu potencial, ao mesmo tempo que reduz as desigualdades sociais e é a principal determinante da mobilidade social" (como se ninguém o soubesse há anos), as irmãs de São João Baptista postaram este vídeo delicioso! Podia ser qualquer jardim de infância de qualquer país do mundo, mas fica num dos bairros mais pobres de Nampula e se vos disser que há anos que fazem coisas tão extraordinárias e defendem a infância com unhas e dentes podem crer que é verdade!

Coisas extraordinárias como combater o tráfico e rapto de crianças. Sabem como? Chamam o senhor da conservatória de 6 em 6 meses à escolinha e registam cada uma das crianças que nasce no bairro! Desde que o fazem nunca mais houve um único rapto de crianças, que era um flagelo que assolava toda a província! Desapareceram os raptores. Foram para a Tanzânia, diz-se. Mas nunca mais! Podem rir-se. É um ovo de Colombo, é certo, mas como todos os ovos postos por esse senhor, absolutamente genial.

Na escolinha asseguram que todas as crianças aprendem a falar Português e se familiarizam com livros, letras e números antes de iniciar o primeiro ciclo. Porque nenhuma criança consegue aprender a ler numa língua estrangeira (e em Nampula, nas casa de família, fala-se Macua). A biblioteca das irmãs, por pobre que seja, tem um movimento de 400 pessoas diariamente! É uma ilha, um oásis! E o número de crianças que consegue aprender efetivamente a ler é incomensuravelmente superior aos meninos de outras escolas.

Proporcionam a alimentação, vestuário e material escolar a cada uma das crianças. Por escassa que seja a alimentação, todas as crianças (e asseguro-vos que as observei a todas, uma por uma!) estavam dentro das curvas de crescimento da OMS.

Quanto gastam as irmãs com cada uma das crianças? Com cada um dos nossos afilhados? Preparem-se: 70 euros por ano! Em roupa, alimentação, educação e material escolar. E acima de tudo, as crianças têm sempre um sorriso! Digo-vos, que só quem lá esteve sabe a força que um sorriso pode ter.

É isto. A vida é simples. Os 70 euros por ano que gasto com os meus afilhados valem cada cêntimo! Tenham um bom dia!

(Se me perguntarem: Beijo-de-mulata, alguma coisa te custa, nisto de ser mãe? Eu respondo que há uma coisa. É não poder tão cedo voltar a Moçambique... A saudade aperta tantas vezes... Mas não se aflijam que sou feliz do lado de cá!)

terça-feira, 6 de junho de 2017

[vozes brancas*] memórias de infância



Ainda a propósito da notícia do Público que deixou metade do país indignada, onde era referido que 43 crianças tinham sido "devolvidas" durante o período de pré-adoção no ano passado, houve quem tivesse comentado qualquer coisa como: "Pelo menos a maioria eram bebés. Ao menos não se vão lembrar de nada."

Não sei que formação têm as pessoas que verbalizaram coisas deste calibre... Com boa intenção, claro, não duvido, quase que para se consolarem e defenderem da catástrofe emocional que é saber que uma criança foi abandonada segunda vez. Mas a noção de que as experiências dos primeiros anos de vida são incrivelmente importantes e ficam gravadas a fogo na memória e no inconsciente tem mais de 100 anos e é irrefutável! Não por ser freudiana, mas por ser verdadeira.

Posso até provar-vos: O baby-de-mulata tinha 16 meses no dia em que chegou a casa e lhe nasceu uma mãe (para mim ele já tinha nascido antes, mas acho que nos adotamos verdadeiramente um ao outro nesse dia). Contei-vos a história há poucos dias. Pois que há quase dois anos, um dia, depois de um passeio no jardim chegamos a casa e ele disse-me:
- Mamã, pega-me ao colo...

E já no meu colo:
- Mãe, agora a fingir que eu tinha chegado de muito longe e tu me ias mostrar a casa...

E ao meu colo, conseguiu reproduzir a sequência com que lhe mostrei a sua nova casa no momento em que chegamos. E mais, por fim quis ir para a sala, pegou num livro e pediu-me para lho ler. No mesmo local onde lhe mostrei o álbum de fotografias de família...

E eu, que sabia de tudo, quase não consegui deixar de me emocionar e de me espantar. Os bebés guardam memória dos dias importantes. Por mais que não lhes consigam atribuir um significado. Por isso não lhes podemos falhar tão redondamente!

domingo, 4 de junho de 2017

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #6


(Continuando a história da longa caminhada que me levou o baby-de-mulata para casa... É desta que chegamos ao fim! Obrigada por me terem acompanhado neste relato. Para que se veja, portanto, que a adoção é um mundo maravilhoso e não é porque alguns com menos fé desistem que devemos deixar de acreditar.)

De uma forma ou de outra, no jardim de infância ou no hospital, lá tinha conseguido voltar a visitar o meu amor pequenino no meio daquele calor tórrido que é a planície a 150 km de Lisboa. Continuavam as minhas angústias, os dias maus em que ele só abria e fechava janelas e portas, mas lentamente ia conseguindo atingir alguns marcos do desenvolvimento. Já fazia carga nos membros inferiores (tentava alegremente ignorar que ele já tinha 15 meses e esse é um marco dos 6 meses, mas adiante), por vezes tolerava a posição de gatinhar, já o conseguia frustrar sem que se retirasse de todo e voltasse a alhear-se completamente. Eu via que ele estava a evoluir. Lentamente, mas estava!

Do outro lado da maré, tinha ainda de remar com a equipa de adoções da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. As entrevistas já tinham terminado. Seguiram-se os testes psicológicos, os testes de personalidade e um "teste de memórias de infância" que achei delicioso. A sério que achei o teste genial! É que o princípio da parentalidade é muito simples: ninguém, em princípio, consegue dar o que não teve. A forma como somos pais espelha muito os pais que tivemos e a forma como fomos tratados em criança. O teste de "memórias de infância" faz-nos reviver e tornar conscientes da forma como os nossos pais nos viam. Se nos valorizavam, se nos encorajavam quando não conseguíamos fazer algo, se nos elogiavam em frente a estranhos ou, se pelo contrário, faziam queixas ou nos humilhavam. É bom ver como se preocupam com questões deste tipo e depois nos põem à prova com casos práticos plausíveis, para ver como nos desenvencilhamos de uma situação grave com um hipotético filho.

Faltavam ainda muitos passos a dar. Cheguei à parte das formações obrigatórias. As tais formações B e C, que duram meses. Importantíssimas, não duvido, mas que não ocorreriam naquele mês e que iriam atrasar todo o processo. Fiquei desesperada! Tanta correria e agora ficava tudo parado por causa de duas formações? Mas corria o ano de 2012. Lembram-se? Eu reavivo a vossa memória, se me permitirem. Rebentara o escândalo porque Miguel Relvas, o então Ministro dos Assuntos Parlamentares, tinha uma licenciatura de cujo plano curricular, com 36 cadeiras, tinha tido equivalência a 32! Foi então que em conversa com uma amiga ela me perguntou o que iria eu aprender nessas formações que não soubesse já e nos veio, num rasgo de loucura, a ideia peregrina! Pois com certeza que pediria também "equivalência"! Não foi bem assim que falei com a equipa que me acompanhava, claro, mas perguntei com bons modos se achavam indispensável a formação ou se a poderia até fazer depois. Disseram-me que então ficaria pendente, dada a urgência do caso e que se eu sentisse necessidade poderia sempre requerer a formação depois. (Mais um passo dado! Mas a "ideia brilhante" por associação com o Ministro Relvas ficou para a história da família!).

Chegámos, por fim, à parte das entrevistas com a família alargada. Sendo eu solteira, tinha de provar que tinha uma aldeia inteira para me socorrer e ajudar a criar o baby que ali vinha. Já era agosto, mas a equipa, incansável e maravilhosa, fez questão de só ir de férias quando o processo estivesse terminado e com parecer dado. Eu não esperava tanto. Os meus pais estavam de férias a centenas de quilómetros quando percebi que afinal lhes ia ter de pedir para virem. A psicóloga ainda disse que poderia entrevistar os meus irmãos, mas os meus pais fizeram questão de vir. Sabiam bem que seriam a pièce de resistance! E, de facto, depois da entrevista com eles, senti que se tinham dissipado todas as nuvens. O parecer iria ser positivo. Estava tudo encaminhado! E, sete dias depois, já em casa vinda do hospital, tive um pressentimento. Voltei a descer as escadas e no correio lá estava a carta da Santa Casa dirigida à minha pessoa, certificando que Beijo-de-Mulata estava apta a adotar uma criança!!! Finalmente o "teste de gravidez" vinha positivo! É difícil descrever esse momento...

Depois da histeria total que partilhei com as melhores amigas, telefonei à diretora do centro de acolhimento. Iria ter autorização para ir visitar o menino? Claro, respondeu-me! E até poderia levá-lo a passear!

Foi uma delícia voltar a entrar naquela casa! De manhã fui comprar uma cadeirinha para o carro e levei o meu irmão e a minha cunhada a conhecer o sobrinho e afilhado. Foi um passeio lindo e ao fim do dia ainda me deixaram dar-lhe banho. Acreditem que foi um momento mágico que fez toda a diferença para mim!

Estava eufórica! Os 20 dias seguintes demoraram séculos a passar. Tive de esperar que a equipa de adoções local regressasse de férias para pegarem no processo. Imagino o que sentem os pais que esperam anos. Às tantas já estava desesperada, com a agravante de ter de deixar todas as noites o menino a chorar quando me vinha embora. Chorava ele e chorava eu depois em casa... E a outra agravante que era estar a terminar o internato e não conseguir prever se me apresentaria a exame ou não, dado que o prazo era dentro de dias. A psicóloga da Santa Casa era um amor. Aturou-me nesses dias todos. "Tenha calma, se ele fica a chorar é porque se está a vincular. É bom sinal, o seu dia vai chegar. Decida a sua vida profissional sem entraves, tudo o que decidir está bem decidido."

E foi assim, com muita impaciência, que chegou finalmente o dia em que o baby-de-mulata veio para minha casa e se tornou meu filho do coração! Já passaram quase cinco anos desde que a minha vida deu uma volta e o meu coração se encheu de gargalhadas, canções infantis e palhaçadas! E de ralhetes e recados e alegrias pelas pequenas e grandes conquistas. Foi há quase cinco anos que me levantei da cama com a confiança de que iria ao centro de acolhimento onde ele estava para me vir embora com o colo cheio, a cadeirinha de trás ocupada e a alma a transbordar. A minha mãe fez questão de vir comigo apesar de nesse dia estar doente.

Foi também nesse dia que passei a acreditar em milagres no desenvolvimento das crianças. O meu baby, que tinha o diagnóstico de "autismo", quando me viu chegar, radiante de alegria, pela primeira vez olhou-me diretamente nos olhos e estendeu-me os braços para que lhe pegasse! Eu nem queria acreditar! O resto da reunião com a equipa de adoções foi todo com ele ao meu colo. As senhoras ficaram encantadas com o que estavam a ver.

Mas o melhor estava para vir. Tenho isto para vos dizer desde que comecei, em agosto do ano passado, a contar a história desta caminhada. E só por isso a tenho vindo a contar, sem desistir de a escrever. É porque queria partilhar convosco o momento de pura magia que se seguiu. Parece patetice, mas só me ocorreria o canto de Simeão, depois de ver Jesus no templo, para descrever o que senti nesse momento: "Já vivi para ver isto! Já tive toda a alegria que se pode ter na vida. Já posso, a partir de agora, ir em paz."

Depois de uma viagem de 150 km, chegámos a casa. Ele ia assustado. Tenso. Durante o caminho adormecera com as mãos cerradas. Já me conhecia, mas mais uma vez sentia que estava a mudar de vida, que algo de irreversível estava a acontecer e ainda não sabia se era bom ou mau...

Chegámos a casa, peguei-lhe ao colo e fui apresentar-lhe o espaço. Mostrei-lhe o sítio das coisas por analogia com o centro de acolhimento. O que imaginava que viriam a ser os seus locais preferidos. O sítio das Bolachas Maria, a casa de banho com uma banheira enorme e alegre (acho que fiquei aprovada quando ele viu a banheira!), o quarto dele, o quarto das brincadeiras onde já tinha colocado alguns brinquedos iguais ao que ele tinha no centro de acolhimento. Reconheceu-os e sorriu. Pela primeira vez olhava exatamente para onde eu apontava. Sem esforço nenhum da minha parte. Sem precisar de lhe captar a atenção e exagerar os gestos. Parecia que compreendia tudo e deixava que lhe falasse. E foi então que fomos para a sala ver o álbum de fotografias de família que tinha preparado. Mostrei-lhe os tios, os avós, os primos e o milagre aconteceu: a dada altura reconheceu-me numa fotografia. Fez-me parar de desfolhar o álbum. Pegou nele com as suas mãozinhas, deu um beijo na minha fotografia e depois olhou para mim e sorriu-me. Olhos nos olhos! "Sim, sou eu, eu sou a tua mãe!", disse-lhe. E, pela primeira vez, encostou-se no meu peito. Foi nesse momento que me nasceu um filho! Nascemos um para o outro.

Um mês depois, com 17 meses, o baby já gatinhava, dava os primeiros passos e eu assistia a uma explosão de linguagem com palavras novas de dia para dia. Compreendia tudo e conhecia toda a gente da família. Dois meses depois fomos a uma consulta de desenvolvimento e o teste mais exigente para esta idade (Escala de Griffiths) era normal. Inteiramente normal. Pontuou 100 em 100! E claro, o melhor está sempre para vir!

Já vi muitos milagres na minha vida. Já me aconteceram vários. Sei sempre que tenho de me esforçar para os aceitar, porque não é imediato sentir que os mereço. Mas depois sinto que tenho de fazer alguma coisa com eles. Por causa deles. Foi por causa do primeiro que me tornei pediatra. Foi por causa deste que decidi que me iria dedicar ao desenvolvimento. Porque é preciso agradecer todos os dias!

sexta-feira, 2 de junho de 2017

[histórias de desamor na adoção] as crianças devolvidas


Ontem, dia da criança, tentei ignorar uma notícia. E ainda dizem por aí (e até há quem cante!) que a dor da gente é coisa que não sai no jornal. Fiquei com um nó na garganta porque, em pouco mais de um ano, 43 crianças não chegaram ao fim do processo de adoção e foram "devolvidas" às instituições de onde provinham. Estive até ao fim à espera de ver que pelo menos 90% teriam mais de 13 anos, que seriam pré-adolescentes difíceis, com histórias de vida complexas e psiques intrincadas. Que pudessem ter doenças graves. Daquelas mesmo graves como o meu baby-de-mulata, que tinha "autismo" e um intestino que era um molho de brócolos. Mas não, o nó na garganta não se desatou no final. Quase metade tinha menos de 2 anos. Um número irrisório tinha problemas de saúde graves. O que foi que se passou?

É claro que há coisas de que ninguém fala! Que a depressão pós-adoção é tão real como a depressão pós-parto, mas muito menos falada e tolerada. Que os candidatos passam anos a idealizar o dia em que o telefone toca, a ansiar por esse dia. A telefonar de seis em seis meses para ver como vai o andamento da "gravidez" virtual de que já receberam o teste positivo há tanto tempo (a declaração de que se está apto para adotar), mas não há bebé à vista. E no meio deste tempo, cada um faz a sua vida como pode. Há casais que se desfazem. Que colocam o sonho de maternidade em stand by. Que se anestesiam, que adormecem à pancada os relógios biológicos. Que procuram outras formas de contactar com crianças. Que se dedicam aos sobrinhos, à carreira profissional, um doutoramento. Que se defendem como podem do sofrimento que é saber que a "gravidez" pode não chegar ao fim. Há os que vão tentando FIV atrás de FIV com desilusões atrás de desilusões.

Mas no dia em que o telefone toca, anos depois do tal teste de gravidez positivo (às vezes três anos, às vezes seis anos), o dia nunca é propício. Claro! A vida está sempre programada sem filhos. Até para mim, que quem acompanhou o processo sabe que não pensava em mais nada, o dia não foi propício. No preciso dia em que o baby me foi entregue tinha de entregar o currículo para terminar a especialidade. No MESMO DIA, caramba! Tive uma semana para reorganizar o meu projeto de vida profissional e colocar oportunidades e carreira para segundo plano. Eufórica, claro! Mas sem saber se no final da licença de maternidade ainda teria as mesmas oportunidades de contrato. A vida sempre me foi madrinha e foi o melhor que me poderia ter acontecido. Sei que fiz o que estava certo, mas estava preparada, à espera do que veio a acontecer. Mas e os outros, que esperaram seis anos? É que temos de ser realistas: sempre me custou ouvir isto dos muitos pais de filhos adotados que conheço profissionalmente, mas seis anos depois, o sonho já não é o mesmo! O encanto já não é o mesmo. O deslumbramento, a excitação, a felicidade sabem um pouco mais a frio... Há alguns pais que relatam a minha euforia. Mas muitos (um número arrepiante!) relatam este desencanto. Um parto doloroso e inesperado. E o transtorno e a reviravolta que uma gravidez de dez dias em vez de nove meses pode trazer a uma vida? Em poucos dias é preciso meter férias, preparar o quarto, comprar roupas, fazer um álbum de família e o diabo a sete. As famílias podem não ter um pé-de-meia preparado para fazer face a uma despesa inesperada como esta. E há sempre uma viagem, uma tese, um projeto que tem de ficar por terminar.

E depois vai-se ao desconhecido. Os pais querem um filho. E os filhos querem uma família. Mas se perguntarem a um casal se era mesmo "aquele" filho que queriam. Inicialmente não, claro! Tal como se perguntarem a uma criança se era "daquela mãe" que ele estava à espera. Claro que não! Mãe é a pessoa que dá o amor maior e tudo quanto uma criança necessita. Se não há vínculo não há amor. Não é aquela senhora que é a "MÃE" que se idealizou. Não é aquele senhor que é o PAI com que a criança sonhava. São feios e tensos. Claro que não são os meus pais, dizem as crianças que já falam! É claro que não era nada daquilo...

Se não se está à espera disto, o desencanto pode ser avassalador. Os vínculos não são imediatos. Mesmo com os filhos biológicos, carregados nove meses no ventre. Os vínculos demoram, o amor leva tempo.

É natural que a primeira reação seja de rejeição. Por parte da criança e até de parte a parte. É natural que a criança diga coisas como "vocês não são os meus pais nem nunca serão!" Pode até dizê-lo para os testar, mas isto custa ouvir. E custa muito! E ainda mais se a instituição onde os pais adotivos os foram buscar for a mesma instituição onde a mãe biológica um dia prometeu que os ia buscar e nunca mais voltou. A criança continua à espera que a sua mãe volte e se for com os "novos pais", está a trair a mãe biológica e, pior, ela nunca mais os encontrará! Alguém terá feito o trabalho de casa e preparado a criança para ir para uma família? Nem sempre! Há instituições onde nada disto é feito. Onde as crianças continuam à espera que as mães as venham buscar. E há crianças que apesar do trabalho que é feito não conseguem ultrapassar a imagem da mãe a dizer que voltava.

Se os pais idealizaram a relação perfeita, pior um pouco. Se forem mais preparados talvez seja mais fácil. Se os técnicos conseguirem descortinar o que se passa e traduzir por palavras o que todos estão a sentir também é mais simples, mas nem sempre é simples. E depois de anos a tentar engravidar pelas vias mais naturais, isto pode saber mesmo a um "filho de segunda". Um filho de recurso... "Com um filho biológico nada disto aconteceria", pensam as mães, para quem o mito da "voz do sangue" é tão portuguesmente verdade.

E podemos pensar que um bebé é diferente. Um bebé não fala, não agride, não diz coisas que magoam. Mas reage à rejeição com ansiedade e tensão. Um bebé que ainda não conseguiu estabelecer uma vinculação segura não olha nos olhos, não sorri, não come, cospe a comida, fica irritado com tudo, não dorme bem, não se encosta ao peito da mãe. Está sempre em alerta e tenso. Nada a ver com o bebé fofinho que dorme tranquilo nos braços da mãe que toda a gente idealiza.

Eu, que sou pediatra, às tantas tive de ir perguntar a uma grande amiga pedopsiquiatra se estaria a fazer alguma coisa de errado porque o príncipe insistia em adormecer na cama dele e não chamava quando acordava. Ficava alegremente a palrar no berço. Há tempos perguntei-lhe por que não queria dormir ao meu colo. Respondeu-me: "Mamã, desculpa, eu gosto muito de ti. Mas é que me faz muito calor!" Às vezes a realidade é muito diferente das nossas fantasias...

É preciso muita maturidade e um GPS emocional muito potente para conseguir lidar com isto e sobreviver. Sobretudo sem experiência e sem preparação. Felizmente a maioria das crianças está ávida de amor e afeto. E os pais também estão ávidos de serem pais. Geralmente há uma amiga, uma avó, uma prima com experiência e que passou pelo mesmo. Quem nunca conheceu ninguém que teve um filho que não dormia de noite, não comia ou que chorava por tudo e por nada. Passado algum tempo tudo se sana... Lembro-me bem que o meu baby só se apaixonou verdadeiramente por mim meses depois de lá estar em casa. Sim, meses. Dois meses, acho eu. Dou muitas vezes este exemplo aos pais. Mesmo o meu, que era bebé, demorou tempo. O amor leva tempo!

Os técnicos que acompanham o processo são pessoas competentes e preparadas. Psicólogos, assistentes sociais. São quem pode ajudar os pais a ultrapassar os seus receios, descodificar o que se passa com as crianças, tranquilizar os pais. O problema é que por melhor que sejam os técnicos, eles são os mesmos que os estão a avaliar. São eles que no fim vão emitir um parecer positivo ou negativo sobre se deve ou não ser requerida a adoção plena. Do mesmo modo que alguns alunos têm receio de "fazer má figura" ao colocar questões aos professores, muitos pais não conseguem expor os seus receios, dúvidas e zangas aos técnicos. Mas a falta de vínculo não lhes escapa. Salta à vista! Os pais têm seis meses para mostrar o que valem. A criança tem seis meses para se adaptar. Se estes seis meses são passados a lutar com sentimentos contraditórios, com uma depressão pós-adoção, com uma adaptação difícil ao novo papel de pai e mãe e com a reorganização do casal em torno da criança, é difícil a criação de uma vinculação segura. E qual é o técnico irresponsável que ao fim de seis meses, vendo que a criança e os pais não estão seguros e felizes, que rejeitam, negligenciam e não têm empatia com o filho, deixa a criança com esta família? A isto se chama devolução. Um projeto que não aconteceu... Quantos casais "biológicos" se desfazem no primeiro ano de vida de uma criança? Os primeiros tempos são muito exigentes, extenuantes emocionalmente e fisicamente!

Mas teremos maneira de melhorar? Claro que sim! Tem de haver equipas de recurso, que sejam diferentes das que estão a avaliar o processo. Preparadas para intervir neste período crítico. Se virmos o caso de uma criança que está o tempo todo tensa, irritada, que não come nem dorme, essa criança está doente! Profundamente doente. A vinculação com pais maduros, disponíveis e seguros pode reparar esta ferida imensa. Mas por vezes é preciso um médico. Sobretudo se a mãe se deprimir também com isto tudo. Facilmente se cai na asneira de pensar que "O bebé não é do meu sangue. Geneticamente nada disto me estava destinado." Se for preciso colocar um pedopsiquiatra na equipa, que se coloque! Eles fazem milagres com casos muito mais difíceis! Mas tem de haver um caminho para que não se ouçam mais notícias destas!