(Continuando a história da longa caminhada que me levou o baby-de-mulata para casa... É desta que chegamos ao fim! Obrigada por me terem acompanhado neste relato. Para que se veja, portanto, que a adoção é um mundo maravilhoso e não é porque alguns com menos fé desistem que devemos deixar de acreditar.)
De uma forma ou de outra, no jardim de infância ou no hospital, lá tinha conseguido voltar a visitar o meu amor pequenino no meio daquele calor tórrido que é a planície a 150 km de Lisboa. Continuavam as minhas angústias, os dias maus em que ele só abria e fechava janelas e portas, mas lentamente ia conseguindo atingir alguns marcos do desenvolvimento. Já fazia carga nos membros inferiores (tentava alegremente ignorar que ele já tinha 15 meses e esse é um marco dos 6 meses, mas adiante), por vezes tolerava a posição de gatinhar, já o conseguia frustrar sem que se retirasse de todo e voltasse a alhear-se completamente. Eu via que ele estava a evoluir. Lentamente, mas estava!
Do outro lado da maré, tinha ainda de remar com a equipa de adoções da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. As entrevistas já tinham terminado. Seguiram-se os testes psicológicos, os testes de personalidade e um "teste de memórias de infância" que achei delicioso. A sério que achei o teste genial! É que o princípio da parentalidade é muito simples: ninguém, em princípio, consegue dar o que não teve. A forma como somos pais espelha muito os pais que tivemos e a forma como fomos tratados em criança. O teste de "memórias de infância" faz-nos reviver e tornar conscientes da forma como os nossos pais nos viam. Se nos valorizavam, se nos encorajavam quando não conseguíamos fazer algo, se nos elogiavam em frente a estranhos ou, se pelo contrário, faziam queixas ou nos humilhavam. É bom ver como se preocupam com questões deste tipo e depois nos põem à prova com casos práticos plausíveis, para ver como nos desenvencilhamos de uma situação grave com um hipotético filho.
Faltavam ainda muitos passos a dar. Cheguei à parte das formações obrigatórias. As tais formações B e C, que duram meses. Importantíssimas, não duvido, mas que não ocorreriam naquele mês e que iriam atrasar todo o processo. Fiquei desesperada! Tanta correria e agora ficava tudo parado por causa de duas formações? Mas corria o ano de 2012. Lembram-se? Eu reavivo a vossa memória, se me permitirem. Rebentara o escândalo porque Miguel Relvas, o então Ministro dos Assuntos Parlamentares, tinha uma licenciatura de cujo plano curricular, com 36 cadeiras, tinha tido equivalência a 32! Foi então que em conversa com uma amiga ela me perguntou o que iria eu aprender nessas formações que não soubesse já e nos veio, num rasgo de loucura, a ideia peregrina! Pois com certeza que pediria também "equivalência"! Não foi bem assim que falei com a equipa que me acompanhava, claro, mas perguntei com bons modos se achavam indispensável a formação ou se a poderia até fazer depois. Disseram-me que então ficaria pendente, dada a urgência do caso e que se eu sentisse necessidade poderia sempre requerer a formação depois. (Mais um passo dado! Mas a "ideia brilhante" por associação com o Ministro Relvas ficou para a história da família!).
Chegámos, por fim, à parte das entrevistas com a família alargada. Sendo eu solteira, tinha de provar que tinha uma aldeia inteira para me socorrer e ajudar a criar o baby que ali vinha. Já era agosto, mas a equipa, incansável e maravilhosa, fez questão de só ir de férias quando o processo estivesse terminado e com parecer dado. Eu não esperava tanto. Os meus pais estavam de férias a centenas de quilómetros quando percebi que afinal lhes ia ter de pedir para virem. A psicóloga ainda disse que poderia entrevistar os meus irmãos, mas os meus pais fizeram questão de vir. Sabiam bem que seriam a pièce de resistance! E, de facto, depois da entrevista com eles, senti que se tinham dissipado todas as nuvens. O parecer iria ser positivo. Estava tudo encaminhado! E, sete dias depois, já em casa vinda do hospital, tive um pressentimento. Voltei a descer as escadas e no correio lá estava a carta da Santa Casa dirigida à minha pessoa, certificando que Beijo-de-Mulata estava apta a adotar uma criança!!! Finalmente o "teste de gravidez" vinha positivo! É difícil descrever esse momento...
Depois da histeria total que partilhei com as melhores amigas, telefonei à diretora do centro de acolhimento. Iria ter autorização para ir visitar o menino? Claro, respondeu-me! E até poderia levá-lo a passear!
Foi uma delícia voltar a entrar naquela casa! De manhã fui comprar uma cadeirinha para o carro e levei o meu irmão e a minha cunhada a conhecer o sobrinho e afilhado. Foi um passeio lindo e ao fim do dia ainda me deixaram dar-lhe banho. Acreditem que foi um momento mágico que fez toda a diferença para mim!
Estava eufórica! Os 20 dias seguintes demoraram séculos a passar. Tive de esperar que a equipa de adoções local regressasse de férias para pegarem no processo. Imagino o que sentem os pais que esperam anos. Às tantas já estava desesperada, com a agravante de ter de deixar todas as noites o menino a chorar quando me vinha embora. Chorava ele e chorava eu depois em casa... E a outra agravante que era estar a terminar o internato e não conseguir prever se me apresentaria a exame ou não, dado que o prazo era dentro de dias. A psicóloga da Santa Casa era um amor. Aturou-me nesses dias todos. "Tenha calma, se ele fica a chorar é porque se está a vincular. É bom sinal, o seu dia vai chegar. Decida a sua vida profissional sem entraves, tudo o que decidir está bem decidido."
E foi assim, com muita impaciência, que chegou finalmente o dia em que o baby-de-mulata veio para minha casa e se tornou meu filho do
coração! Já passaram quase cinco anos desde que a minha vida deu uma volta e o meu coração
se encheu de gargalhadas, canções infantis e palhaçadas! E de ralhetes e
recados e alegrias pelas pequenas e grandes conquistas. Foi há quase cinco anos que me levantei da cama com a confiança de que iria ao
centro de acolhimento onde ele estava para me vir embora com o colo cheio, a
cadeirinha de trás ocupada e a alma a transbordar.
A minha mãe fez questão de vir comigo apesar de nesse dia estar doente.
Foi também nesse dia que passei a acreditar em milagres no desenvolvimento das crianças. O meu baby, que tinha o diagnóstico de "autismo", quando me viu chegar, radiante de alegria, pela primeira vez olhou-me diretamente nos olhos e estendeu-me os braços para que lhe pegasse! Eu nem queria acreditar! O resto da reunião com a equipa de adoções foi todo com ele ao meu colo. As senhoras ficaram encantadas com o que estavam a ver.
Mas o melhor estava para vir. Tenho isto para vos dizer desde que comecei, em agosto do ano passado, a contar a história desta caminhada. E só por isso a tenho vindo a contar, sem desistir de a escrever. É porque queria partilhar convosco o momento de pura magia que se seguiu. Parece patetice, mas só me ocorreria o canto de Simeão, depois de ver Jesus no templo, para descrever o que senti nesse momento: "Já vivi para ver isto! Já tive toda a alegria que se pode ter na vida. Já posso, a partir de agora, ir em paz."
Depois de uma viagem de 150 km, chegámos a casa. Ele ia assustado. Tenso. Durante o caminho adormecera com as mãos cerradas. Já me conhecia, mas mais uma vez sentia que estava a mudar de vida, que algo de irreversível estava a acontecer e ainda não sabia se era bom ou mau...
Chegámos a casa, peguei-lhe ao colo e fui apresentar-lhe o espaço. Mostrei-lhe o sítio das coisas por analogia com o centro de acolhimento. O que imaginava que viriam a ser os seus locais preferidos. O sítio das Bolachas Maria, a casa de banho com uma banheira enorme e alegre (acho que fiquei aprovada quando ele viu a banheira!), o quarto dele, o quarto das brincadeiras onde já tinha colocado alguns brinquedos iguais ao que ele tinha no centro de acolhimento. Reconheceu-os e sorriu. Pela primeira vez olhava exatamente para onde eu apontava. Sem esforço nenhum da minha parte. Sem precisar de lhe captar a atenção e exagerar os gestos. Parecia que compreendia tudo e deixava que lhe falasse. E foi então que fomos para a sala ver o álbum de fotografias de família que tinha preparado. Mostrei-lhe os tios, os avós, os primos e o milagre aconteceu: a dada altura reconheceu-me numa fotografia. Fez-me parar de desfolhar o álbum. Pegou nele com as suas mãozinhas, deu um beijo na minha fotografia e depois olhou para mim e sorriu-me. Olhos nos olhos! "Sim, sou eu, eu sou a tua mãe!", disse-lhe. E, pela primeira vez, encostou-se no meu peito. Foi nesse momento que me nasceu um filho! Nascemos um para o outro.
Um mês depois, com 17 meses, o baby já gatinhava, dava os primeiros passos e eu assistia a uma explosão de linguagem com palavras novas de dia para dia. Compreendia tudo e conhecia toda a gente da família. Dois meses depois fomos a uma consulta de desenvolvimento e o teste mais exigente para esta idade (Escala de Griffiths) era normal. Inteiramente normal. Pontuou 100 em 100! E claro, o melhor está sempre para vir!
Já vi muitos milagres na minha vida. Já me aconteceram vários. Sei sempre que tenho de me esforçar para os aceitar, porque não é imediato sentir que os mereço. Mas depois sinto que tenho de fazer alguma coisa com eles. Por causa deles. Foi por causa do primeiro que me tornei pediatra. Foi por causa deste que decidi que me iria dedicar ao desenvolvimento. Porque é preciso agradecer todos os dias!
Foi também nesse dia que passei a acreditar em milagres no desenvolvimento das crianças. O meu baby, que tinha o diagnóstico de "autismo", quando me viu chegar, radiante de alegria, pela primeira vez olhou-me diretamente nos olhos e estendeu-me os braços para que lhe pegasse! Eu nem queria acreditar! O resto da reunião com a equipa de adoções foi todo com ele ao meu colo. As senhoras ficaram encantadas com o que estavam a ver.
Mas o melhor estava para vir. Tenho isto para vos dizer desde que comecei, em agosto do ano passado, a contar a história desta caminhada. E só por isso a tenho vindo a contar, sem desistir de a escrever. É porque queria partilhar convosco o momento de pura magia que se seguiu. Parece patetice, mas só me ocorreria o canto de Simeão, depois de ver Jesus no templo, para descrever o que senti nesse momento: "Já vivi para ver isto! Já tive toda a alegria que se pode ter na vida. Já posso, a partir de agora, ir em paz."
Depois de uma viagem de 150 km, chegámos a casa. Ele ia assustado. Tenso. Durante o caminho adormecera com as mãos cerradas. Já me conhecia, mas mais uma vez sentia que estava a mudar de vida, que algo de irreversível estava a acontecer e ainda não sabia se era bom ou mau...
Chegámos a casa, peguei-lhe ao colo e fui apresentar-lhe o espaço. Mostrei-lhe o sítio das coisas por analogia com o centro de acolhimento. O que imaginava que viriam a ser os seus locais preferidos. O sítio das Bolachas Maria, a casa de banho com uma banheira enorme e alegre (acho que fiquei aprovada quando ele viu a banheira!), o quarto dele, o quarto das brincadeiras onde já tinha colocado alguns brinquedos iguais ao que ele tinha no centro de acolhimento. Reconheceu-os e sorriu. Pela primeira vez olhava exatamente para onde eu apontava. Sem esforço nenhum da minha parte. Sem precisar de lhe captar a atenção e exagerar os gestos. Parecia que compreendia tudo e deixava que lhe falasse. E foi então que fomos para a sala ver o álbum de fotografias de família que tinha preparado. Mostrei-lhe os tios, os avós, os primos e o milagre aconteceu: a dada altura reconheceu-me numa fotografia. Fez-me parar de desfolhar o álbum. Pegou nele com as suas mãozinhas, deu um beijo na minha fotografia e depois olhou para mim e sorriu-me. Olhos nos olhos! "Sim, sou eu, eu sou a tua mãe!", disse-lhe. E, pela primeira vez, encostou-se no meu peito. Foi nesse momento que me nasceu um filho! Nascemos um para o outro.
Um mês depois, com 17 meses, o baby já gatinhava, dava os primeiros passos e eu assistia a uma explosão de linguagem com palavras novas de dia para dia. Compreendia tudo e conhecia toda a gente da família. Dois meses depois fomos a uma consulta de desenvolvimento e o teste mais exigente para esta idade (Escala de Griffiths) era normal. Inteiramente normal. Pontuou 100 em 100! E claro, o melhor está sempre para vir!
Já vi muitos milagres na minha vida. Já me aconteceram vários. Sei sempre que tenho de me esforçar para os aceitar, porque não é imediato sentir que os mereço. Mas depois sinto que tenho de fazer alguma coisa com eles. Por causa deles. Foi por causa do primeiro que me tornei pediatra. Foi por causa deste que decidi que me iria dedicar ao desenvolvimento. Porque é preciso agradecer todos os dias!
Patricia muito obrigada pela tua partilha! És uma pessoa extraordinária, tenho pena de não ter privado mais contigo quando estávamos na faculdade! Parabéns!
ResponderEliminarTenho tanto, mas tanto, mas tanto orgulho em ti. Como se te conhecesse desde sempre e a 4 olhos. A minha amiga que me ensinou a ver África e que me ensina todos os dias à acreditar em milagres.
ResponderEliminarBeijos do lado de cá.
Deixou-me completamente sem palavras...que a vida lhe continue a sorrir sempre! Grande beijinho
ResponderEliminarEstou de lágrimas nos olhos, mas desta vez de alegria. Sabia que a história tinha um final feliz, mas TÃO feliz assim nem ousava esperar. Muitos parabéns por toda a coragem e persistência, porque os milagres não acontecem sem muito trabalho e dedicação, para além, é claro, do amor incondicional.
ResponderEliminarVou mandar um mail :)
Obrigada pela partilha! :)
ResponderEliminarQue percurso tão emocionante e inspirador! Que o seu filho saiba sempre a mãe maravilhosa que tem! Um beijinho para os dois!
ResponderEliminarLi cada texto deliciada com a sua escrita mas este final tão maravilho supera todas as minhas expectativas. Muitos parabéns a si e ao baby por ter uma mãe tão fantástica. felicidades
ResponderEliminarQue bom ter podido ler a vossa História do princípio ao fim. Entusiasmei-me, frustrei-me, sorri, chorei e, agora no fim, fiquei muito feliz por se terem encontrado e por terem tido o vosso final/início feliz!
ResponderEliminarObrigada por partilhar este "nascimento" tão especial do seu filho! Tenho a certeza que é uma pessoa especial!!!! É incrível como podemos gostar de alguém que nem conhecemos... gosto muito de si!!!
ResponderEliminarGrata pela partilha! Q nunca lhe falte a esperança em novos milagres e que a vida lhe traga muitas alegrias e desafios.
ResponderEliminarMuito obrigada pela sua partilha. Encontrei o relato a meio e foi atrás para poder compreender este vosso caminho. Emocionei-me muitas vezes e outras tantas torci para que tudo desse certo (mesmo sabendo de antemão que havia um final feliz!). Desejo, do fundo do coração, que o mundo vos continue a sorrir e a conspirar a vosso favor! Votos das maiores felicidades. Continuarei deste lado a acompanhar-vos.
ResponderEliminarSandra Mendes
Que relato emocionante.. Nestes dias que trazem tanta tristeza é muito bom ler uma história tão bonita. Só desejo que tenham toda a felicidade do mundo!
ResponderEliminarSó agora acabei de ler o relato. Obrigada pela partilha de uma história tão dura e tão bonita, Patrícia. Felicidades para toda a família.
ResponderEliminarDemorei uns meses a cá voltar ler o fim da história. É maravilhosa! Desejo-vos felicidades! Fiquei curiosa, como conta a vossa história ao Baby?
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