quarta-feira, 30 de novembro de 2011

[com o sr. cachimbo e o sr. rafael] novamente a casa dos loucos...

(...continuando a história que começou aqui...)

Entretanto tínhamos conseguido arrefecê-lo um pouco. A tensão arterial não estava tão descontrolada como eu temia, não tinha arritmias por enquanto e já o tínhamos conseguido fazer tomar os tranquilizantes e alguma água. Não tanta quanto eu desejava, porque de vez em quando ele gritava “Murrette!” [veneno] e cuspia tudo o que tinha na boca. As Irmãs, felizmente, conservavam a boa disposição e não se importavam com aquele espectáculo, nem que a sua roupa fosse sistematicamente atingida pela água que ele de vez em quando acreditava que o podia matar. Iam-lhe falando mansamente e explicavam-lhe que era apenas água que lhe estavam a dar, que ninguém lhe ia fazer mal, que tudo estava a ser um sonho mau e que ia passar.

Já anoitecera e a luz do pátio não era suficiente para iluminar aquele quarto cheio de gente, mas preferi acender duas velas e não a lâmpada do tecto porque qualquer estímulo adicional equivalia, literalmente, a mandar mais achas para a fogueira daquele delírio assustador.

Pouco depois chegava o Sr. Cachimbo, com o seu habitual sorriso de orelha a orelha. Radiante por ter sido chamado e poder ser útil. Vinha com a mesma camisa e os calções com que se preparava para dormir no momento em que fora chamado, e a roupa justa deixava adivinhar o seu corpo enorme e enxuto de homem nascido no campo, habituado a esforços e que não conhecera abundâncias.

Já tinha sido devidamente informado pelo Sr. Revenda sobre o que se passava e concordava com ele. A primeira coisa que me disse, claramente instruído pelo guarda, foi que achava que o Sr. Rafael estava possuído por espíritos e que para ele sobreviver deveríamos chamar um curandeiro. E eu dei por mim a compreendê-los perfeitamente. É que o Sr. Rafael tremia num tremor grosseiro, que quase parecia voluntário, tinha uma fisionomia completamente alterada, mudava de expressão e de voz a cada momento, via bichos por todo o lado e dizia coisas completamente sem nexo. Como é que eu alguma vez lhes conseguiria explicar que aquilo era uma doença causada pela privação de álcool? Mas por fim o Sr. Cachimbo lá concordou, mais para me fazer a vontade do que por convicção, que sim, que podia ser isso. Eu que o tratasse como achasse bem. De qualquer modo agradava-lhe a ideia de que aquela doença era resultado de excesso de álcool. Assim poderia sempre voltar a frisar que com ele isto nunca aconteceria porque os muçulmanos não tocam em álcool.

O teste da malária foi negativo. Agradeci-lhe muito por ter vindo àquela hora tardia, mas ele fez-se desentendido. Agora que estava ali e me tinha feito um favor, não ia arredar pé assim sem mais nem ontem. Acabava de pagar o bilhete por inteiro, agora ficava até ao fim do espectáculo! Ofereceu-se para ficar por ali comigo a tratar do Sr. Rafael, que as Irmãs estavam cansadas. Elas acharam bem e despediram-se: eram horas de ir rezar. O guarda, vendo que não tinha de acompanhar novamente o Sr. Cachimbo a casa, tratou de dar de frosques e ir para o seu posto de vigia ao portão, aliviado por poder sair daquela casa de loucos, onde todos menos eu percebiam perfeitamente que havia espíritos maus e onde, mais tarde ou mais cedo, haveria de acontecer uma desgraça. Não percebia como é que mais ninguém tinha coragem de me dizer “o rei vai nu!”. Ele tinha tentado avisar-me, estava de consciência tranquila. Mas não queria estar dentro de casa e ser enrolado no furacão quando a desgraça acontecesse!

Lentamente, a expressão de terror cravada na face do Sr. Rafael ia cedendo, os tremores diminuindo, o coração abrandava e a tensão arterial estabilizou. Mudámos-lhe a roupa e os lençóis encharcados de água e suor. Realmente, sozinha teria sido impossível mudar uma cama com um homem tão pesado deitado sobre ela. Continuava a transpirar, mas já bastante menos e não me parecia muito desidratado. Íamos tentando dar-lhe água, mas já não era fácil porque agora estava quase a adormecer. Dentro de pouco tempo ia deixar de conseguir engolir. E depois… bem, depois era rezar para que a situação passasse antes que surgissem complicações, se não teria mesmo de o levar para o hospital e tudo seria ainda pior… Mas eu estava exausta. Era quase meia-noite de um dia que já durava há quase 72 horas e temia não me conseguir manter acordada. Mas também, vistas bem as coisas, agora não precisava de estar acordada. Precisava era de acordar dentro de algumas horas, quando o efeito dos tranquilizantes começasse a passar e tivesse de recomeçar o ciclo “mede-tensão-arterial-arrefece-com-toalhas-molhadas-troca-de-roupa-dá-lhe-mais-tranquilizantes-dá-lhe-mais-água-vê-se-surgiram-complicações-tenta-não-te-preocupar-tanto-confia-que-vai-tudo-correr-bem-tenta-dormir-mais-um-pouco-que-daqui-a-nada-tens-de-recomeçar-o-processo-todo-do-início”.

Mas agora como é que ia descalçar a bota do Sr. Cachimbo? Mas como é que as Irmãs me tinham deixado ali sozinha com ele sem uma pergunta, sem um sinal de estranheza, valha-me Nossa Senhora? Não lhes tinha passado nada pela cabeça? Quer dizer, elas deviam ter pensado que se tinha sido eu a mandá-lo chamar era porque sabia que ele era boa pessoa. Vá, calma. Estava tudo bem. A intensidade dos dias devia estar a toldar-me o pensamento… Sim, devia ser isso. A intensidade dos dias. Nada mais. Não se passava nada. Não se passava nada. Os cânticos em macua das Irmãs ecoavam através do pátio, enchendo a noite de paz e tranquilidade. Sempre os achei lindos, mas nessa noite os cânticos eram particularmente bonitos e as Irmãs, talvez por terem dois doentes mais por quem rezar, a Inês e o Sr. Rafael, estavam especialmente harmoniosas.

– Doutora…
– Sim, Sr. Cachimbo?
– Eu tenho uma coisa para lhe dizer… Não me leve a mal. Eu até fico envergonhado, mas já lhe queria ter dito isto há muitos dias.

(continua...)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

[comentários que valem um post] vozes brancas* #56

A propósito do último "vozes brancas" - rubrica que ocasionalmente nos faz sair do mato africano para aterrar na realidade urbano-pediátrica de Lisboa - a Maria Bê contou-me do menino que, receoso de se queimar no jantar que escaldava no prato, pediu ao pai: "Papá, tira-me o sol da sopa..."

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[à espera da inês] a vida não é simples... mas faz sentido


Sempre que um doente tem alta, vemos partir com ele um cortejo de familiares que estavam por ali, acantonados nas imediações, acompanhando-o pelo tempo que fosse necessário, à espera das melhoras...
(Gilé, Zambézia)

(...continuando a história que começou aqui...)

– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de os respeitar. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.

– Outra religião? Mas os pais da Inês são católicos… ou não?
– Sim, são católicos. E praticantes. Mas isto é uma outra dimensão da espiritualidade. Uma outra dimensão que nós não temos. E que nem sequer compreendemos totalmente. Para os entendermos temos de perceber que cada família tem a sua religião. Cada família tem a sua história, os seus mortos e os seus ancestrais. Eles têm um Deus, que chamam de Muluku e a quem rezam na missa e em casa. Mas Deus para eles está muito longe. Nesta cultura quem os protege dos problemas do dia a dia não é Deus. Por mais que as tentemos fazer acreditar que sim, que Deus é amor e que vela por eles.
– Então porque é que rezam?
– Não sei muito bem, mas penso que rezam pela mesma razão que os meninos vão à escola. Porque têm esperança que um dia, num futuro longínquo, isso lhes vá trazer uma vida melhor. Mas para as coisas do dia a dia não contam com Deus.
– Então?
– Há intermediários entre Deus e as pessoas, que são os antepassados, os mortos da família. Cada família tem os seus antepassados. E por isso, cada família tem uma maneira de ver Muluku que é diferente das outras porque é influenciada pelo carácter dos seus defuntos e pela história da família. E por isso também compreendem que outras famílias tenham ideias diferentes e uma visão diferente do mundo. Acaba por ser uma espiritualidade muito tolerante nas diferenças e há muito respeito entre as pessoas…
– Isso é bonito…
– É muito bonito. É uma espiritualidade muito intensa e que dá um sentido muito forte de família e de união. Um sentido de continuidade e coerência entre as famílias. Nunca viu uma pessoa sozinha no hospital, pois não? Estão sempre muitas pessoas de família a acompanhá-la na doença.
– Sim, é verdade, nunca estão sozinhos. Estão sempre irmãos, tios, pais…
– Sim. Quando acompanham a família na doença, ou nos ritos de passagem, ou nos funerais, isso não é só solidariedade, não é só porque é correcto e é importante para o outro. Também é, claro, não duvido que o fazem porque é importante para o outro e porque querem estar presentes, mas é também uma manifestação da espiritualidade deste povo. São valores muito bonitos.
– Sim, é verdade, chega a ser comovente…
– Mas não é fácil aceitar que essa mesma espiritualidade tenha tantos mitos e tantos tabus que os impedem de viver a sua vida e andar para a frente.
– Pois… é isso mesmo… O tio da Inês estava mesmo convencido de que ela está doente porque eles não cumpriram bem o rito do funeral do tio mais novo, que morreu há poucos meses. Parece que faltava um dia para acabar quando uma tempestade destruiu a casa onde estavam e eles tiveram de se vir embora…
– Meus Deus, que desgraça… que sofrimento… e o que tem a menina?
– Acho que tem psoríase. Mas ainda não a vi, não tenho a certeza…
– Ai, credo, que doença para se ter aqui. Mas olhe que se calhar não a vai conseguir tratar… Aqui não há muitos medicamentos.
– Nem nas farmácias privadas?
– É uma doença rara. Duvido que tenham alguma coisa, mas pode sempre tentar…

Um murro no estômago. Mas será que não ia conseguir tratar a minha menina? Será que ia faltar à minha promessa e deixar que uma menina inteligente e cheia de potencial terminasse a sua vida assim humilhada?

Nem me estava a reconhecer naquelas preocupações… Para onde é que estava a ir a minha confiança, Santo Deus? Tudo o que tinha corrido mal nestes dois dias estava mesmo a influenciar-me e a deitar-me abaixo…

Tentei tranquilizar-me: no fundo ainda nada estava perdido. Dadas as circunstâncias até estava tudo a correr bastante bem. Tinha conseguido chegar a Nampula de carro sozinha, mesmo furando pineu pelo caminho, tinha tratado duas crianças quase mortas de desidratação e malária, conseguido fazer todas as compras, encontrar a Inês e compreender o que estava por detrás da sua ausência e da reclusão da família e ainda tinha começado a ver as crianças da escolinha. E, por milagre, o Vicente caíra-me do céu! Como é que eu me atrevia a perder a segurança se nada tinha corrido verdadeiramente mal? Lá porque tudo tinha sido difícil e delicado… Lá porque não me tinha tudo vindo parar às mãos de bandeja, como de costume em Moçambique, não queria dizer que não estivesse tudo bem. Sim, isto já devia ser o cansaço a falar… Estavam a ser muitas emoções ao mesmo tempo.

(continua...)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

[vozes brancas* #55] ...e o sono que teima em não chegar

Um amigo meu e a sua filha de dois anos e meio, que bocejava, bocejava, esfregava o nariz, cambaleava, mas pertinazmente - ou não tivesse precisamente dois anos e meio - lutava contra o sono para brincar mais um bocadinho com a sua cozinha, os seus tachos, os seus tupperwares e as suas panelas. Escusado será dizer que a sua cozinha, os seus tachos, os seus tupperwares e as suas panelas eram precisamente a cozinha, os tachos e etc. do resto da família, que isto de se ter dois anos e meio faz com que as cores do mundo real exerçam um fascínio muito mais irresistível do que os brinquedos...

E o meu amigo perguntava-lhe, também já ele bocejando:
- M., meu amor, não tens soninho?
- Hum...
- M., estás a abrir a boca tantas vezes e já estás quase deitada...
- Sim, tem sono...
- Então vamos dormir?
- Nããão...
- Mas tu tens sono, estás aí a abrir a boca tantas vezes...
- Mas a M. só tem sono na boca, não tem sono nos olhinhos...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[welcome to mozambique] a barbearia alvalade xxi



E a propósito da história que se vai passando (e já vai longa) por este mato adentro e a propósito do derby de sábado passado, queria comentar convosco que a casa do Sr. Cachimbo em Nampula era mesmo em frente à já sobejamente conhecida Barbearia Alvalade XXI...

E queria também dizer-vos que há actualmente um movimento absolutamente hilariante, com inscritos no facebook e na blogosfera nacional que, caso o Sporting Clube de Portugal seja - com a graça de Nossa Senhora de Fátima - sagrado campeão a 13 de Maio, têm como intenção ir aparar cabelo e/ou barba a esta mesma barbearia! Eu sou uma das inscritas e as saudades são tantas que tenciono cumprir o prometido, mesmo que não sejamos campeões. E, tal como a AL, apenas não prometo fazer a barba!

[continua a saga da inês e do sr. rafael] lepra e delirium tremens, isto não está fácil...

(...continuando a história que começou aqui...)

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um pobre homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o rapaz que te fez bater o coração há dois dias… Isto está bonito, sim, senhora!”

– Mas tem razão, acho que nem sequer conseguíamos levá-lo para o hospital. Ele é tão pesado... Acha que o consegue tratar aqui?
– Sim, se ele não tiver malária e conseguir engolir água acho que sim, Irmã… Tenho ali tranquilizantes e tudo o resto que é preciso. E duvido que no Hospital Central saibam tratar um delirium tremens
– Pois, é melhor ele ficar aqui, então… O Sr. Rafael é um homem muito bom. Durante a guerra andou sempre connosco. Apesar dos perigos de andar na estrada, ele era incansável, defendeu-nos sempre, nunca houve dia nenhum em que saíssemos com o carro que ele não nos acompanhasse, às vezes até doente.
– Sim, é um homem muito bom, também já percebi isso.
– Uma vez ele estava com malária, mesmo no meio de uma crise, a tremer de frio e cheio de dores, quando caímos num buraco e furámos um pneu…
– Ui… Déjà vu
– Pois… Mas precisamente à frente desse buraco estava uma mina. Foi por Deus que não passámos por cima dela.
– Credo!
– E foi ele quem se levantou e nos foi ajudar a sair do buraco e trocar o pneu. Nem sei como é que ele teve coragem de fazer aquilo tudo a tremer com uma crise de paludismo a dois ou três centímetros da mina… Foi mesmo por um triz que não morremos todas. Ele conseguia fazer aquilo de olhos fechados. Se não fosse ele já nenhuma de nós estava aqui para contar estas histórias. E foram muitas vezes mesmo. É o mínimo que podemos fazer por ele…
– Parece que o estou a ver. Ainda hoje ele tem essa capacidade de se compor e entrar em ação quando é necessário. À vinda para cá fez precisamente o mesmo, mas estava alcoolizado, não estava com malária… Bem, temos de o despir e arrefecer.
– Sim, vamos a isso. Mas o que terá acontecido para ter isto agora? Ele já bebe há tanto tempo…
– Ele ontem de manhã disse-me que ia deixar de beber… Estava muito envergonhado pela figura que fez durante a viagem. E pelos vistos tentou cumprir…
– Sabe, nós já vimos isto acontecer muitas vezes. O alcoolismo é uma praga aqui em Moçambique. E o povo também conhece bem o delirium tremens. Sabem que mata mesmo. Mas acham que os bichos que eles vêem nas alucinações são os antepassados da família enfurecidos com qualquer coisa. E motivos para os espíritos se zangarem nunca faltam, claro, basta pensar um pouco e encontram logo duas ou três situações em que se quebraram tabus.
– Pois, ainda hoje o tio da Inês…
– Ah, é verdade, como é que correu a conversa com o tio?

As Irmãs iam-me ajudando a despir e a arrefecer o Sr. Rafael com toalhas molhadas.

– Parece-me que correu bem. Mas pode ser só impressão minha. Vamos ver se ele faz mesmo aquilo que disse, que já percebi que as pessoas aqui são muito de resistência passiva. Dizem sempre que sim e depois só fazem o que querem.
– Pois, é mesmo isso. Mas o que foi que ele disse?
– Disse que achava que a Inês tinha lepra…
– Ai, pobrezinhos… Sabe, aqui a lepra é uma humilhação que se estende à família inteira. A maior parte das vezes, quando alguém fica a saber, a vida das pessoas fica destroçada. Não admira que a tenham tentado esconder…
– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de respeitar. E temos de os compreender. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.

(continua...)

[improbabilidades] empadas de galinha

Num restaurante vegetariano:
- Têm óptimo aspecto estas empadas, são de quê?
- São de galinha com rosmaninho.
- Ah... de galinha?
- Sim, isto é como nos conventos e nas casas das boas famílias: aqui às vezes peca-se ao sábado.

domingo, 27 de novembro de 2011

[digam o que disserem da austeridade merkeliana] qualquer dia isto tem outro nome...


Pois, se calhar não é só a minha mãe que já chama "Merkel" ao vulgaríssimo Salazar (o meu sobrinho também já pergunta se pode lamber o "Mequi")... De tal forma que qualquer dia no MoMA em Nova Iorque já só temos a torradeira de lareira e a taça de alumínio... Sinais dos tempos...
(Post inspirado num post hilariante da Rita Maria)

[e agora, só para compor o ramalhete...] delirium tremens

(...continuando a história que começou aqui...)

Regressei a casa perturbada, mas feliz. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Só esperava poder cumprir a minha promessa de que haveria de curar a Inês. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…


Mas o dia ainda não tinha terminado. E a noite era ainda uma criança… Ao portão, o guarda esperava-me com a notícia de que o Sr. Rafael estava doente. Que estava “com espíritos”, mas que as Irmãs não tinham dado autorização para ele ir buscar um curandeiro.

– Com espíritos, Sr. Revenda?
– Sim, Doutora, ele não está a falar certo, fala com os espíritos, treme as mãos e os braços e parece que vê bichos…
Delirium tremens! Valha-me Deus! E já estava a ficar assim ontem de manhã… Vi-o tremer quando lhe fui levar o mata-bicho, mas naquele momento nem sequer associei a nada, achei que seria fraqueza porque não tínhamos jantado… Ele hoje também continuava com as mãos a tremer?
– Não sei, Doutora, de manhã fomos ao Anchilo procurar a minina Inês e durante o resto do dia estive a dormir só...
– Pois... calculo. E eu hoje de manhã nem fui vê-lo, com a preocupação de irmos ao Anchilo. Era só o que nos faltava agora um delirium tremens...
Tremes? O que é isso, Doutora?
– É a doença dos homens que bebem muito. O corpo fica envenenado pelo álcool e já não passa sem ele. Basta ficar um ou dois dias sem beber e começa a tremer, a ver coisas e ouvir coisas…
– Não, Doutora, não é isso. Isto são espíritos maus. Maus mesmo. Quando os espíritos vêm na forma di bichos, as pessoas morrem quase sempre. É preciso chamar curandeiro para tirar os espíritos. As Irmãs não acreditam em mim!
– Sim, Sr. Revenda, tem razão, esta doença provoca alucinações com bichos e pode matar, é mesmo isso! Mas eu também sei tratar esta doença, não são só os curandeiros.

O guarda estava perplexo. Devia achar que eu era completamente tonta. Não compreendia como é que eu podia, na mesma frase, concordar com ele, que era um facto que o Sr. Rafael estava a ver bichos, e depois dizer que conseguia tratá-lo sem a ajuda de um curandeiro.

– Doutora não está a perceber… Isto é uma doença que vem da tradição! Ele vai morrer se não lhe tirarem os espíritos.
– Está bem, Sr. Revenda, mas não se preocupe que ele vai ficar bem…

O guarda olhava-me incrédulo e assustado. Claramente não acreditava em mim e provavelmente estava cheio de medo de morrer também, receoso de que aqueles espíritos violentos e malignos o atacassem por tabela, já que o Sr. Rafael estava em sua casa… Não valia a pena insistir na conversa. Não falávamos de todo a mesma linguagem e eu nesse dia já tinha tido irritação suficiente com a “tradição” para conseguir sentar-me e explicar-lhe com calma que raio era isso de delirium tremens. E no fundo não valia a pena, não ia conseguir. Era uma doença impressionante demais para alguém mudar assim de opinião.

Entrei no quarto. Deitado na cama, o Sr. Rafael tremia por todos os lados com uma expressão de terror, alagado em suor e, fazia movimentos bruscos com as mãos, como se tentasse apanhar insectos ou afastar qualquer coisa que só ele via e que parecia que o ameaçava. Tomei-lhe o pulso, que batia descompassado, ardia em febre e debatia-se sem me reconhecer… Tartamudeava qualquer coisa em macua que não entendia: “Massi, massi.”

– Que diz ele, Sr. Revenda?
– Está a dizer "água".
– Traga-me água, então, numa garrafa para beber e num alguidar também, que temos de o arrefecer. E depois vá buscar o Sr. Cachimbo a Namutequeliwa, é a terceira casa ao lado do portão das Irmãs da Apresentação. Diga-lhe que preciso que me venha fazer um teste de malária, que isto pode ser também malária cerebral…
– Sim, Doutora.

Minutos depois chegavam as Irmãs com a água que eu tinha pedido.

– Não acha que é melhor levá-lo para o hospital? Não sei se nós sozinhas conseguimos tratar dele…

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem sequer ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o homem que te fez bater o coração há dois dias [e reflectir sobre a vida emocional dos pinguins]… Isto está bonito, sim, senhora!”

(continua...)

sábado, 26 de novembro de 2011

[sonhos cor de rosa] e vidas pequeninas



Um exemplar de Salazar, tal como se encontra no MoMA, Nova Iorque
(Para os meus queridos amigos do mundo lusófono, que nos vêm ler de além-fronteiras: um Salazar é o nome por que em Portugal é conhecido este utensílio de cozinha)

Lembram-se de vos ter contado, aqui há atrasado, que o meu sobrinho tinha um objecto de transição completamente freak?, toda eu baba até às sinapses mais recônditas daquela massa que só os totalmente daltónicos conseguem acreditar que é cinzenta...

É que hoje de manhã, na consulta, uma mãe confidenciou-me que o objecto de transição do filho de 20 meses, a que ele dorme abraçadíssimo é... um salazar! Coisa mai linda, valha-me Nossa Senhora da Alta Cozinha...

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

[as melhores do serviço de urgência] e o diagnóstico é...

Depois do diagnóstico brilhante de bronquiolite do menino que tinha uma "respiração à Darth Vader", eis que ontem diagnostico uma laringite (ou melhor, uma laringotraqueobronquite, mas não vamos complicar...) pela descrição de uma mãe extremosa, senhora de um ouvido musical apuradíssimo, que me disse que a filha estava com uma "voz de Marge Simpson". Qualquer dia temos aqui uma "Caderneta de cromos dos anos '80" com doenças e diagnósticos. Me aguardje!


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

[à procura da inês] lepra, valha-me santa rita de cássia?

(...continuando a história que começou aqui...)

– Que doença acham que ela tem?
– Irmã… Inês tem… – a voz sumiu-se-lhe na garganta, desaparecendo num sussurro.
– Tem o quê?
– Tem… tem lepra.

Fiquei fora de mim! Nem consegui disfarçar o que sentia… Nem me tinha passado pela cabeça que fosse isso de que suspeitavam. Disparei no mesmo momento:

– Senhor Mutaquela! Claro que não é lepra! Pelo acabou de dizer não pode ser. E de qualquer modo a lepra é uma doença que tem cura. E quase não é contagiosa! Mas a sua irmã, mãe de Inês sabe disso. Ela é técnica de farmácia, ela entrega os medicamentos para a lepra aos doentes. De certeza que vê as pessoas a melhorar.
– Sim, ela também disse que não era lepra, mas eu não acredito. E lepra é doença trad’cional. Eu estou a pagar pelo mal que fiz ao meu irmão…
– Por favor! Acha que lepra é assim, com feridas em todo o corpo? Já viu algum doente de lepra com feridas na cabeça ou no peito? Os doentes de lepra têm feridas nas mãos e nos pés, não é em todo o corpo, no resto do corpo têm é manchas. Ela tem manchas?
– Não, tem firida só.
– Pois, papá, a Inês tem uma doença de pele normal. Muitas vezes começa depois de uma malária ou de outra doença com febre. Ela não teve malária antes de isto tudo começar?
– Ah… sim, teve…
– Sim, papá, está a ver? Deve ser psoríase.
– Quê?
– É uma doença de pele. Uma doença normal! E lepra não é castigo por um crime, não tem de ser humilhação para a família. Lepra é uma doença e tem cura! Mas a Inês não tem lepra, tem psoríase, que é outra doença.

Calei-me. Olhei-o de frente. Deus sabe o que me custou não odiar naquele momento aquela cultura terrivelmente injusta. Injusta sobretudo para com as mulheres e as crianças. Bastava ter um tio pouco instruído e meio neurótico para deitar por terra todo o esforço que já tinha sido feito para criar uma menina, para que tivesse estudos, uma profissão e armas e confiança para enfrentar a vida.

Bem desabafavam as Irmãs que é muito difícil ajudar este povo porque a cultura de tradições, feitiços e castigos é um obstáculo enorme ao desenvolvimento. Aquele homem era o chefe da família e tinha sido o primeiro a ousar proferir o nome da doença na família. Sendo assim, não me espantava que tivessem tentado esconder a menina.

Às vezes o estigma instala-se e cola-se à pele, mais visível que a própria lepra, mais mutilante e corrosivo... E de que serve o tratamento se ele implicar exposição pública, mesmo que seja um internamento num hospital? De que serve ficar curado se depois não se puder voltar para casa e continuar a sua vida? A doença é lenta, mas a cura é mais longa ainda e o estigma... esse é cruel. O estigma enterra em vida quem ainda tinha força e vontade de viver.

Enfim, mas todos estavam a sofrer, era isso que não podia perder de vista. E aquele homem, apesar de tudo, estava a tentar tratar a sobrinha da forma que podia e achava correcta. Tinha investido no tratamento quase todas as suas poupanças e estava prestes a arruinar-se para que ela melhorasse. Merecia o meu respeito, por muito que discordasse de tudo o que tinha sido feito e me doesse a situação da menina. “Vá buscar Inês hoje mesmo. Vá buscá-la, que ela está a passar mal ali sozinha e leve-ma amanhã a casa das Irmãs. A doença dela tem cura, papá!" Vi os olhos dele iluminarem-se.

– Sim, Irmã. Obrigado.

Regressei a casa perturbada, mas feliz, apesar de tudo. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…

(continua...)

[welcome to mozambique] medicina tradicional



Imagens raras de médicos tradicionais durante uma cerimónia de cura...
Fotos da net (desculpem, mais uma vez não tenho o link mas não resisto a partilhá-las convosco...)

Certa vez, uma das meninas que viviam connosco na casa das Irmãs, no Gilé, foi de fim de semana a casa da família, para se tratar de uma "dor de cabeça tradicional" ou "cabeça grande" (que nome delicioso)... Não sei muito bem o que é uma "dor de cabeça tadicional", apesar de ser uma doença muito comum, de que se fala constantemente. A minha ideia é que é algo do foro da psicopatologia, entre a depressão e a perturbação de ansiedade... Um sofrimento genuíno, mas que a pessoa não consegue verbalizar...

Depois de ela chegar, vimos que continuava tristonha, murchita, pouco activa e sorridente...

- Mas, Bernardina, não chegaste a ir ao curandeiro fazer cerimónia por causa dessa dor de cabeça?
- Sim, tia P., mas se a pessoa "não apanha sorte" não fica curada...

[à procura da inês] pronto, acho que é mesmo desta, podem começar a pensar em voltar...


A casa de um curandeiro na Zambézia...
(Muiane, Zambézia)

(...continuando a história que começou aqui...)

Aviso: Embora seja desta que percebemos o que se passa com a nossa menina, ainda não é aqui que nos encontramos cara a cara com ela. Se o vosso objectivo é conhecê-la assim cara a cara, então podem voltar amanhã, que ela já cá deve estar... Por hoje é só o tio, que por acaso engatámos com uma pinta descomunal! Adiante:


Quase tremia só de pensar que ia enfrentar o “tio grande” da Inês. Que mais me iria acontecer desta vez?

Mas, enfim, contra as minhas expectativas e seguindo à risca as indicações da Irmã Lurdes, consegui tranquilamente chegar à fala com ele. Quando percebeu o motivo que me trazia ali, já estava sentado, de garrafa de cerveja na mão e vi-o engolir em seco, mas não se levantou, ficou sentado a ouvir-me. Bendita Irmã Lurdes! Se na minha vida tivesse sempre quem me orientasse desta forma…

Depois do choque inicial, pareceu-me que o consegui acalmar e acabou por me dizer que a Inês tinha adoecido cerca de dois meses antes com feridas na pele. Inicialmente nos cotovelos e joelhos e que depois tinham alastrado por todo o corpo. A princípio ninguém tinha ligado muito, porque não tinham associado a doença a nenhum acontecimento mas, à medida que as chagas avançavam e lhe cobriam todo o corpo, começaram a associar a doença à morte recente do tio mais novo da Inês que vivia numa aldeia a 40 km dali. O ritos do funeral, desgraçadamente, não tinham sido cumpridos à risca. Um dia antes de terminarem chovera de tal modo que a casa tinha ficado destruída…

O rosto cobria-se-lhe de lágrimas à medida que ia falando. Estava profundamente culpabilizado porque tinha sido ele próprio a dar a ordem de terminar as cerimónias fúnebres e regressar a Nampula. O seu irmão sempre tinha sido um homem tão bom e compreensivo, sempre tão preocupado com o bem-estar e conforto dos outros e da família… Pensara que os antepassados e o falecido não se haveriam de importar. Que haveriam de compreender que não tinha sido com intenção de “fazer mal” mas porque não tinha mesmo havido condições para continuar de maneira nenhuma. Mas enganara-se e a sobrinha estava a pagar por isso. Soluçava agora sem conseguir parar.

– Mas, Sr. Mutaquela, não tentaram tratar as feridas da Inês? Nem sequer ao princípio?
– Claro, primeiro foi internada no Anchilo – e sublinhava “no Anchilo!” da mesma forma que alguém em Lisboa diria que tinha levado o filho a uma consulta “em Londres” para enfatizar como estava preocupado e tinha tentado investir na cura –, mas não melhorou nada... só piorou.
– Eu sei, Sr. Mutaquela, mas também sei que não deixaram a Irmã Maria vê-la. Nem sei quem foi que a tratou.
– Foi outro enfermeiro amigo da família. Não queríamos que se soubesse da doença. Se alguém sabe que esta doença apareceu na nossa família temos de ir todos embora…
– Mas não é assim, credo! Doença não é crime!
– Mas ela continuou a piorar e então percebemos que era uma doença trad’cional. E agora está internada na casa de um curandeiro, mas também não está a melhorar… A doença também não ajuda…
– A doença não ajuda? O que é que isso quer dizer?
– A doença é muito má. E pega-se. O curandeiro nem se aproxima dela. Ninguém se pode aproximar…
– O curandeiro não se aproxima dela? Então como é que ele espera tratá-la?
– Ele deixa-lhe os medicamentos ali e ela faz os tratamentos sozinha. E nós vamos lá levar comida para ela, mas também não podemos entrar…
– Então isso quer dizer que ela está lá completamente sozinha?
– Sim. E não pára de chorar. Eu nem consigo ir até lá, é a mãe que vai. E volta sempre a chorar: “Ah, mwanaka! Ah, mwanaka!*”, como se Inês já tivesse morrido.
– Que horror! Não pode ser, quem é esse curandeiro? Ao menos sabe o que faz?
– Não… Não é um curandeiro muito bom, porque os melhores curandeiros de Nampula não aceitaram tratá-la. Mas mesmo assim estamos a ficar sem dinheiro e ela ainda está a piorar…

Eu estava horrorizada, sem palavras e quase a chorar também, a imaginar o sofrimento da menina, sozinha, repelida e ostracizada como se alguém tivesse injustamente colado um crime horrendo à sua pele. Haveria maior humilhação? E sentia uma indignação crescer-me dentro do peito! Como era possível tratar assim uma adolescente? Mas tentei manter a calma.

– Mas porque é que acham que a doença se pega? Que doença acham que ela tem?
– Irmã… Inês tem… – a voz sumiu-se-lhe na garganta, desaparecendo num sussurro.
– Tem o quê?
– Tem… tem lepra.

Fiquei fora de mim! Estava fula! Nem consegui disfarçar o que sentia… Nem me tinha passado pela cabeça que fosse disso que suspeitavam.

Ah, mwanaka! – “O meu filho!” Grito das mulheres macuas quando morre um filho ou pressentem a sua morte iminente.

(continua...)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

[à procura da inês] finalmente no bom caminho...

(... continuando a história que começou aqui...)

Aviso: Ainda não é desta que encontramos a Inês. Em contrapartida, neste post aprende-se uma técnica infalível para engatar um homem macua*. E ensinada por uma freira de 70 anos com décadas de experiência em África! A não perder... Ou melhor, a não perder se forem meninas solteiras, casadoiras e com um homem macua em vista. De outro modo podem ir dar mais uma voltinha por aí, que quando encontrarmos a Inês eu aviso.

No final do lanche apareceu o Sr. Soares da EDM**, que tinha levado a minha mensagem à Irmã Lurdes em Iapala***. Não o esperava de todo, sobretudo tão cedo. Contava pedir ao guarda para ir procurá-lo à EDM no dia seguinte, mas só por descargo de consciência. As perguntas que eu tinha feito à Irmã Lurdes estavam a anos-luz do que agora já sabia e das angústias que teria gostado de partilhar. Eu tinha-lhe apenas perguntado se ela tinha a certeza de que era no Centro de Saúde 25 de Setembro que a mãe da Inês trabalhava e contava-lhe a conversa com o técnico de farmácia.

Não sei como foi que a partir daquela mensagem a Irmã Lurdes intuiu, com toda a certeza, aquilo que me tinha levado mais de 24 horas de esforço e desgaste a compreender. Respondeu-me que certamente havia um problema muito grave e que, para a mãe ter deixado de trabalhar, era porque a família tinha vergonha da situação e ia escondê-la a todo o custo. Que não valia a pena ir procurar a mãe ou o pai porque eles nunca me diriam o que se passava. Só o “tio grande”, o irmão mais velho da mãe, o verdadeiro responsável pela protecção da criança e pela tomada de decisões importantes, poderia desbloquear a situação e dar autorização para que eu a visse e a pudesse tratar.

Que fosse sozinha ter com ele ao local de trabalho, uma fábrica de móveis onde era estofador. Que fosse com tempo, que dissesse que tinha de falar com ele e o convidasse a sentar-se comigo. Aconselhava-me a levar uma garrafa de cerveja gelada e, quando estivesse sentada, a tirasse casualmente da carteira e lha oferecesse. Que apenas então dissesse ao que vinha. Uma vez sentados com uma senhora, os homens macuas só se levantam se ela se levantar primeiro ou se ela lhes der autorização. São muito poucos os que conseguem quebrar esta regra de ouro da boa educação que lhes é incutida desde meninos. E uma cerveja na mão seria mais uma garantia de que o senhor seria “bem educado”… Que lhe falasse com o coração e lhe dissesse que queria mesmo fazer alguma coisa pela menina. Que era preciso ter paciência, mas que estava no bom caminho.

E pronto, lá ia eu outra vez. Uma vergonha tinha-me invadido ao ler a carta. Nesta altura do campeonato já era mais do que suposto ter-me ocorrido precisamente perguntar pelo “tio grande” da menina, o irmão mais velho da mãe, mas desgraçadamente, mais uma vez constatava que ainda não tinha interiorizado a cultura macua e a organização matrilinear da sociedade. Mas até mesmo o Vicente, a viver em Nampula há mais de seis meses, não se tinha lembrado disso. Pelo contrário, ainda funcionava raciocinando como se estivesse na sociedade patriarcal do Sul, em que o pai é que tem a decisão sobre os destinos dos filhos e da família. Mas, caramba, bem que aquela estadia em Nampula podia estar a ser menos difícil!

Fui ter com o tio da Inês nessa mesma tarde. Uma das Irmãs ofereceu-se para me acompanhar até lá para me indicar o caminho, para não termos de acordar o guarda mais uma vez. Ele ia entrar ao trabalho dentro de poucas horas e já me devia andar a rogar pragas… Fizemos um desvio para ir ao supermercado comprar cerveja, que era coisa que não existia em casa das Irmãs [só havia o licor de pêssego feito por elas, famosíssimo em toda a província, mas não era a mesma coisa...]. Estacionámos no mesmo sítio onde eu e o Sr. Revenda tínhamos estado no dia anterior. Uma voz de criança bem disposta:
– Mamã, lembra di mim? Sou Gabriel, o chefe dos ladrões. Posso ficar a guardar o carro?

Impagável, aquele miúdo! Mas não lhe podia dar confiança…
– Não, obrigada, nós não precisamos.

Quase tremia só de pensar que ia enfrentar o “tio grande” da Inês. Que mais me iria acontecer desta vez?
 
* Macua - Grupo étnico que habita as Províncias de Nampula, Zambézia, Niassa e Cabo Delgado; a sua língua. Definição daqui.
** EDM - Electricidade de Moçambique.
*** Iapala não tinha rede de telemóvel, lembram-se? As mensagens tinham de ir transportadas em mão por portadores de confiança.
 
(continua...)

[welcome to mozambique] à beira do lago niassa



À beira do lago do fim do mundo...
(Niassa, Moçambique)

Foto da minha amiga M.

[à procura da inês] no hospital do anchilo





No hospital do Anchilo...
(Nampula)

(...continuando a história que começou aqui...)

Eu e o Vicente ficámos novamente a olhar um para o outro. Ambos com uma única ideia na mente: se alguém nos tivesse dito que podia salvar o nosso menino, qualquer de nós teria ido com ele até ao fim do mundo, se fosse preciso. Como é que aqueles pais desistiam assim de uma filha que adoravam e sempre tinha sido saudável? Não, não podia ser verdade… Eles não podiam ter desistido. E nós também não íamos desistir. O pai tinha dito que ela estava internada. Isso devia ser verdade… Mas onde estaria?

– Tia P., se é verdade que a menina está internada, só pode estar no Anchilo. É lá que todas as pessoas que trabalham na Saúde vão quando estão doentes. É o melhor hospital daqui.

No dia seguinte fui com o guarda, o Sr. Revenda, ao hospital do Anchilo. Mais uma vez o assunto da Inês queimava-me a língua, mas ao meu lado, o Sr. Revenda roncava o sono dos justos e eu mal tinha coragem de o acordar para lhe pedir indicações quando era mesmo preciso escolher o caminho...

Felizmente, a Irmã Maria, uma Irmã Comboniana e enfermeira do hospital, disponibilizou-se de imediato para me ouvir e ajudou-me a rever todos os processos das semanas anteriores. Descobrimos que a Inês tinha estado internada durante um mês inteiro numa das enfermarias de Medicina Interna. Mas o processo não tinha nada escrito. Nem sequer o motivo de admissão. A Irmã estava perplexa. Jurava-me a pés juntos que não a tinha visto nunca no período em que o processo dizia que tinha estado internada. Ela que controlava tudo. Absolutamente tudo. Quem entrava, quem saía, se a medicação estava a ser cumprida, se os doentes melhoravam ou pioravam, se as mamãs estavam a planear abandonar o hospital por os tratamentos se estarem a prolongar… Tudo! Eu já tinha ouvido falar dela. Era uma força da natureza, uma força de trabalho e competência. Não era possível a menina ter lá estado internada sem ela ter dado conta.

Fomos rever os registos da medicação e, de facto, lá estava o nome dela, com a referência de “cama extra”. Provavelmente os pais tinham pedido para a menina não ficar fisicamente internada e alguém ia ao hospital várias vezes por dia receber a medicação por ela. E deviam ter pedido especificamente para que a menina não fosse vista pela Irmã Maria, a profissional mais experiente de todo o hospital, porque pensaram que essa seria a única maneira de as Irmãs de Iapala não ficarem a saber da doença! Santo Deus, mas que maneira de agir mais arrevesada… Fomos ver que medicação correspondia àquela cama para ver se pelo menos chegávamos a um diagnóstico, mas segundo os registos, a menina tinha sido tratada com uma série de antibióticos, anti-fúngicos e anti-parasitários. Parecia que alguém tinha disparado em todas as direções sem saber rigorosamente nada do que estava a fazer. Pela medicação também não íamos a lado nenhum. A Irmã também não reconhecia a assinatura de quem a tinha administrado. Claramente tudo tinha sido feito para encobrir a menina e a sua doença tabu… Credo! Mas como é que era possível? Aquilo começava a parecer um romance policial de péssima qualidade. E havia uma vida à mistura! A vida e o futuro de uma menina, que lhe estavam a ser roubados de forma cruelmente injusta e injustificada por uma qualquer tradição… Se antes estava preocupada e compadecida pela família, agora estava genuinamente zangada.

– O que acha que posso fazer mais, Irmã?
– Não estou a ver, sinceramente… Se já foste falar com os pais e oferecer a tua ajuda e eles recusaram, então duvido que haja mais alguma coisa a fazer… Quando as pessoas não querem ser ajudadas é quase impossível alcançá-las. É assim em todo o mundo, não é só em Moçambique. E aqui a justiça não nos permite retirar a custódia da criança à família, como na Europa… Não há lei nenhuma que proteja as crianças dessa forma.
– Pois é, Irmã…
– Muitas vezes temos de aceitar que não podemos fazer mais nada pelas pessoas, por muito que nos custe. Lançamos uma semente. Podemos rezar para que dê fruto. Muitas vezes não podemos fazer mais. Mas pode ser que ainda caiam em si e te procurem…

Mas já eram 08:30 e dentro de meia hora ia começar o meu périplo na escolinha a ver as 150 crianças que me tinha proposto ver. Fazia por me esquecer disso, se não ainda me “dava a travadinha” e podia desistir à partida. Tinha de regressar rapidamente a Nampula. Não havia mais nada a fazer se não enviar outra mensagem à Irmã Lurdes e esperar que ela tivesse alguma ideia ou que as nossas investidas da noite anterior pudessem ter lançado alguma semente…

As consultas na escolinha decorreram sobre rodas, ao contrário das minhas expectativas. Sem problemas, sem choros, sem birras. Nunca tinha visto crianças como aquelas, disciplinadas, bem comportadas, com uma obediência sem reservas. E a alegria no final da consulta quando recebiam um balão era indescritível. Mas cheguei exausta ao fim da tarde. Faltavam-me ainda algumas compras para fazer, mas as Irmãs obrigaram-me a ficar a descansar e lanchar com elas. E tinham razão. Ainda não me tinha sentado como deve ser com elas em família…

(continua...)

[disclaimer] aviso: ignore este aviso

Meus queridos amigos, eu não me canso de vos contar como gosto de vocês todos, de como vos agradeço por me virem visitar e não me deixarem a falar sozinha neste mato, de como é importante para mim que me vão "ilumimando" com os vossos comentários. E, por isso, hoje venho dizer-vos que compreendo que estejam preocupados com a Inês e que eu também estava mesmo muito preocupada com ela nesta altura do campeonato, que às noites até já não conseguia dormir bem e acordava constantemente com os chamamentos das mesquitas em frente da casa das Irmãs (eram três, uma chamava às quatro da madrugada, outra às cinco, outra às cinco e meia, e às seis as Irmãs começavam a rezar... de maneiras que cometi muitos pecados em pensamentos e blasfémias nessas madrugadas de angústia por aquela gente toda não me deixar dormir com as suas ruidosas manifestações do amor a Deus...).

Mas enfim, o que eu queria vos dizer é que vamos continuar afincadamente à procura da Inês, já que não é do nosso feitio desistir e quando se nos mete uma coisa na cabeça vamos literalmente até ao fim do mundo. Mas já há gente demais angustiada pela história e eu não quero ser responsável por ataques de pânico e maleitas afins, portanto prometo que aviso, num título bem explícito, quando a encontrarmos. Isto para garantir, do fundo do coração, aos mais angustiados que não vos levo a mal que vão de férias uns dias para outros blogues mais cor de rosa e menos prolixos, que quando a encontrarmos eu aviso que podem voltar, ok?

A emissão segue dentro de momentos.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

[à procura da inês] não, não vamos desistir!

(...continuando a história que começou aqui...)

Voltámos para a casa da Inês mesmo a tempo de encontrar o pai, que chegava de um biscate nocturno. Desta vez ele não associou a minha presença a nada e pude perguntar-lhe tranquilamente onde estava a menina. Respondeu-me que estava doente e internada. Só então caiu em si e me perguntou quem eu era e ao que vinha. A expressão do rosto mudou completamente. O semblante crispou-se e não voltou a abrir a boca, por mais que insistíssemos. Começou a chorar por fim.

– Papá, eu sou médica, estou com as Irmãs de São João Batista em Muahivire. Eu posso ajudar a sua filha. Pense nisso. Pense melhor. Não tem nada a perder. Eu estou lá até ao final da semana. Se for preciso até mando vir medicamentos de Portugal para ela. Mas leve-ma lá! Ela é tão boa aluna, tão boa menina. Tem uma vida inteira à sua frente. Ela merece, papá!

O choro transformou-se num choro convulsivo e alto… A mãe, ouvindo-o, abriu a porta ainda em lágrimas e puxou-o para dentro. Ficámos mais algum tempo a bater à porta e a ouvi-los soluçar dentro de casa, sem uma palavra. Provavelmente num abraço sofrido igual ao meu e do Vicente nessa tarde… Até que desistimos com um: “Esperamos por vocês. Todas as doenças têm tratamento. Por favor oiçam-nos, nós queremos mesmo ajudar! Boa noite.”

Ficámos novamente a olhar um para o outro. Ambos com uma única ideia na mente: se alguém nos tivesse dito que podia salvar o nosso menino, qualquer de nós teria ido com ele até ao fim do mundo, se fosse preciso. Como é que aqueles pais desistiam assim de uma filha que adoravam e sempre tinha sido saudável? Não, não podia ser verdade… Eles não podiam ter desistido. E nós também não íamos desistir. O pai tinha dito que ela estava internada. Isso devia ser verdade… Mas onde estaria?

– Tia P., se é verdade que a menina está internada, só pode estar no Anchilo. É lá que todas as pessoas que trabalham na Saúde vão quando estão doentes. É o melhor hospital daqui.
– Onde é o Anchilo? É perto?
– Não, é muito longe…
– Mas sabes o caminho?
– Não, tia P., mas todo o mundo sabe…
– Vou lá amanhã de manhazinha. Anda, agora vou levar-te a casa, que deves estar exausto. Olha, e esta capulana, queres levá-la para a tua namorada?
– Não tenho namorada, tia P., primeiro tenho de ter dinheiro para pedir em casamento!
– Pronto, pronto… Mas fica com ela na mesma. E diz-me o que precisas.
– Nada, tia P., muito obrigado…
– Está bem, Vicente. Mas havemos de falar mais vezes… Ficas bem?
– Sim, tia P., obrigado.
– Vem ter comigo lá a casa nos próximos dias. Quero muito ver-te outra vez…
– Sim, tia P...

(continua...)

[refrões de uma vida] a força que um sorriso pode ter!


A menina que vendia papaia à beira do lago...
(Metangula, Distrito do Lago, Niassa)

Foto da minha amiga M.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

[em casa da inês] algo de muito grave se passava...

(...continuando a história que começou aqui...)

Após alguns minutos, a porta abriu-se e uma mulher, de seus trinta e poucos anos, emagrecida e despenteada, semi-despida abriu a porta, estremunhada. Não me deu tempo sequer de explicar ao que vinha. Assim que me viu, percebeu que eu só podia vir de parte das Irmãs, e fez menção de fechar a porta. Não tinha contado com isso. Nem me tinha passado pela cabeça que ela compreendesse de imediato o que é que eu fazia ali. Que ingenuidade a minha…

A vizinha e o Vicente, pelo contrário, não esperavam outra coisa. Precipitaram-se para a porta no mesmo momento, impedindo-a de se fechar. A vizinha dizia repetidamente qualquer coisa em macua, que não compreendia totalmente, mas que incluía a palavra “ajudar” e a mãe debatia-se, furiosa, com o ar indignado de quem está a ser invadida no seu espaço. E com toda a razão, que afinal de contas tínhamo-la acordado do seu primeiro sono para vir falar, sem pré-aviso nenhum, de um assunto delicadíssimo. Que fiasco mais uma vez, valha-me Deus!

A vizinha estava quase a desistir. Apesar de tudo não queria escândalos nem violência física, que era o que estava a um passo de acontecer. Naquele momento ocorreu-me perguntar, só para o caso de a mãe estar a pensar que eu lhe vinha cobrar alguma coisa: “O que se passa com a sua menina?”

Foi aí que algo no seu semblante mudou. Desmoronou-se e começou a chorar… Mais tarde explicaram-me que o que eu perguntei, na realidade, foi: “Porque é que está a sofrer assim pela sua filha?” Seja como for, foi um engano providencial. [Já tive enganos piores, oh se já tive! Como o da vez em que, no pátio do hospital disse para um adolescente: “Anda, despacha-te!” e toda a gente desatou a rir porque o que eu lhe ordenei, de facto foi: “Pede-me em casamento!” Ninguém merece, pobre miúdo… O ar de pânico dele foi indescritível!] A vizinha repetiu novamente a frase que lhe vinha dizendo insistentemente, agora em tom meigo e abraçou-se a ela… “Só estamos aqui para ajudar.”

– Mas Irmã não me pode ajudar. Betinha tem doença trad’cional a voz da mãe metia dó, de tão triste.
– E que doença é essa, mamã?
– Tem cabeça grande – respondeu, desviando o olhar.
Ishh, mamã! Fala a verdade! Dor di cabeça tem cura, não é para deixar de trabalhar, não. Fala verdade – a vizinha repreendia-a mansamente.
– Tem dor de cabeça há quanto tempo? – perguntei de imediato.

De repente a minha mente médica estava em ação, ao mesmo tempo que fazia um esforço enorme para seguir a conversa que agora se desenrolava à minha frente, num ritmo muito mais rápido, com meias palavras e sons engolidos, em sotaque moçambicano cada vez mais cerrado e com termos e conceitos que me escapavam totalmente. O que seria “cabeça grande”? De que estariam elas para ali a falar? Sentia que estava prestes a perder a minha única oportunidade para convencer a mãe a deixar-me ver a Inês.

– Não, Irmã – respondeu a vizinha –, não é dor di cabeça assim dor di cabeça mesmo, é dor di cabeça trad’cional. Para curar cabeça grande tem de caçar gazela e fazer cerimónia. Mas está a mentir. Não é cabeça grande, não.
– Então, mamã? Olhe, eu sou médica em Portugal, às vezes aquilo que as pessoas pensam que é doença tradicional e que não tem cura, são doenças que têm cura lá. E posso mandar vir medicamentos de Portugal para tratar a menina.
– Não, Irmã, não é preciso… Betinha está gráv’da, não quer estudar mais.
Ishh, mamã! Fala a verdade! Grav’dez é bonito, não é vergonha não! E minina anda di cabeça coberta. Grav’dez não é para cobrir cabeça… Ah, e há um mês Betinha estava a lavar pano no poço, que eu vi. Ela esteve menstruada!

A mãe recomeçou a chorar e a partir daí não lhe conseguimos arrancar mais palavra nenhuma. Claramente a doença era algo que mexia de tal forma com ela e tão humilhante que mesmo tendo ali alguém disposto a ajudar desconseguia sequer dizer-lhe o nome… Não conseguia aceitar a doença da filha. Que desespero. O nosso e o dela. Acabou por voltar para dentro de casa e nunca mais abriu a porta, por mais que batêssemos. Acompanhámos a vizinha a casa.

– E ela não tem mais ninguém de família por aqui? Uma irmã, uma tia, um pai? Vivem só as duas? – perguntei. Recusava-me a dar-me por achada.
– Vivem com o pai. Os outros irmãos também estão fora a estudar.
– E o pai onde está? Porque não apareceu à porta?
– Ainda não chegou, acho.
– Boa noite, mamã, muito obrigada mesmo!
– Boa noite.

Fiquei sozinha com o Vicente. Ficámos a olhar um para o outro, desconsolados. Eu sabia que ia ser difícil, mas tinha tanta esperança… A dada altura parecia que a mãe nos ia dizer o que se passava, mas havia mesmo algo de terrível, de certeza. Seria SIDA? Uma psicose? Epilepsia? Malditos tabus! Malditos estigmas… Sobretudo porque todas estas doenças têm tratamento! Podem não ter cura, mas tratamento têm todas. E uma técnica de farmácia tinha obrigação de saber isso, caramba!

– Tia P., vamos outra vez para lá esperar o pai? Pode ser que o pai consiga falar. Os homens às vezes falam melhor porque não sofrem tanto com os filhos. São um pouco mais distantes porque estão menos envolvidos… E a mãe não pode decidir nada sobre a filha. Se o pai tiver dito que não se pode falar da doença, a mãe não pode falar. Mas o pai pode. E talvez dê autorização para tia P. ver a menina.
– Vicente… – eu estava espantada com a sensibilidade daquele menino – mas não tens de te levantar cedo amanhã?
– Sim, mas é só hoje. Não tem problema.

(continua...)

[occupy cartaxo!] the wall street corner


Esta noite, a minha quinta, na Rua do Canto do Muro, foi ocupada. Eu tenho uma teoria, foi o movimento Occupy the Wall Street Corner que chegou a Portugal! Chegou foi a menos de 1% do território, mas o que é que queriam?

[ser fashion no mato] tanta roupa e nada para vestir...





Capulanas e o costureiro da vila...
(Fotos da net)

(Repost. Porque sim...)

E se de repente, no meio da savana, a atacar o vírus do armário vazio, vulgarmente designado por "ai-que-não-tenho-nada-para-vestir-que-me-fique-bem"? E se essa sensação não for devidamente saneada e evoluir para um "ai-que-gostava-tanto-de-ter-uns-trapinhos-iguais-aos-da-Dona-Marilinda-que-lhe-assentam-tão-bem-e-ela-até-tem-um-corpo-parecido-com-o-meu"? Pois... isto do voluntariado, da frugalidade e do em-roma-sê-romano é muito bonito e na esmagadora maioria dos dias funcionava, mas consigo recordar-me nitidamente de uma ocasião em que a loira que há em mim soltou as garras, rasgou a minha fina capulana de força de vontade e saltou cá de dentro.

E então aconteceu. Foi no Gilé, Zambézia. No meio do mato. Sentia-me despida, totalmente sem graça e nem na loja do Sr. Pompisk deveria haver algo que me pudesse valer naquele momento de angústia feminina. Saí do hospital à hora de almoço. Era cedo. Nesse dia tinha, miraculosamente, havido menos movimento. Fui até ao mercado com uma vaga esperança de encontrar algo de que gostasse.

Qual não foi o meu espanto quando dei de caras com várias mamãs do hospital, que tinham tido a mesma ideia que eu (nada de extraordinário haveria nisto, não fosse dar-se o caso de estarem internadas...). Sorri-lhes ao de leve, sem saber se as havia de cumprimentar ou dar-lhes um raspanete por terem saído do hospital... De qualquer modo não era nada que me espantasse desde o dia em que tinha encontrado ao meu lado na missa um senhor que estava internado com uma pneumonia. (Como a hora da medicação só era duas horas depois, tinha aproveitado para ir rezar...) E, bem disposta, comprei o que havia para comprar: capulanas, what else? Eram lindas - as mais bonitas que tenho, aliás -, e no dia seguinte fui trabalhar de alma lavada, com planos para mandar fazer um vestido com uma delas.

Quando apareci de capulana no hospital no dia seguinte, ouvi alguns risos e um coro de vozes brancas a dizer qualquer coisa em macua que não percebi. Voltei-me para as crianças e perguntei-lhes de que se riam. Respondeu-me uma das mais velhas:

- Estão a rir porque não sabiam que Doutora também é mulher!

(Lindo, pensei, para estas crianças só é mulher quem usa capulana! E até me ir embora tive sempre esta desculpa fantástica para comprar mais capulanas e andar sempre vestida com panos coloridos. Para não confundir as crianças...)

[welcome to mozambique] cenas de todos os dias...




Uma ponte inacreditável de tão perigosa e crianças e adultos que tomam banho e lavam roupa e loiça no rio em baixo...
(Molócuè, Zambézia)

domingo, 20 de novembro de 2011

[welcome to mozambique] gorongosa


Mais uma razão para ir à Gorongosa! E um dia hei-de ir...

[à procura da inês] no bairro de napipine...





Nampula, instantes da cidade...

(...continuando a história que começou aqui...)

As Irmãs tentaram demover-me de ir procurar a mãe da Inês a casa dela. “Podemos oferecer a nossa ajuda. Se as pessoas quiserem ser ajudadas acabam por vir…” Era verdade. Dolorosamente verdade.

Eu também sentia que ia ser intrusiva. Que me estava a aventurar por um mundo que não conhecia e que tinha todas as hipóteses contra mim nestas circunstâncias. Que provavelmente estava a agir de uma forma absolutamente desadequada. Mas tinha esperança de que se me conseguisse encontrar com a mãe e fazê-la olhar-me de frente, ela haveria de perceber, no fundo dos meus olhos, que eu estava a falar verdade e que a queria mesmo ajudar… Ou seria só uma fantasia minha? Será que a expressão do olhar tem a capacidade de vencer barreiras culturais e desconfianças com séculos de existência? Não seria só eu a confrontar-me, a lançar-me um desafio e a querer perceber até onde ia a minha própria capacidade de comunicar? E sem me colocar de todo em causa. É que ia estar numa posição em que se vencesse, isso seria mérito do meu olhar franco e se falhasse teria as desculpas perfeitas: precisamente as tais barreiras culturais e desconfianças com séculos de existência… Naquele momento vacilei a sério.

Mas a minha intuição dizia-me que se não fosse pessoalmente ter com ela, a mãe nunca viria por sua própria iniciativa a tempo de me encontrar. E já tinha combinado com o Vicente. E sobretudo não queria desiludir a Irmã Lurdes. Ela estava à espera da sua menina e tinha-me confiado essa missão. Com que cara chegaria a Iapala dizendo que só tinha mandado uma mensagem à mãe e não tinha feito mais nada por ela?

Chegámos a Napipine já passava das 21:00. Deixámos o carro quase à entrada do bairro porque as ruas, à medida que nos embrenhávamos mais para o coração do casario, quase desapareciam. Não era possível seguir com o carro por ruas tão estreitas, com casas quase pegadas umas às outras sem qualquer planeamento, sem ordenamento de qualquer espécie e cheias de lama e lixo nos entremeios. Seguimos a pé pelas ruas labirínticas, quase desertas. Nunca tinha entrado antes num bairro periférico. Acabava de me aperceber de que só tinha andado pelo centro, onde as casas eram de pedra e cal, embora muitas estivessem degradadas e descuidadas, algumas com vidros partidos, pintura a cair, buracos nas paredes e lixo por todo o lado, mas onde pelo menos havia uma sensação de urbanidade. Ali, pelo contrário, a maioria das casas eram de matope e telhado de capim. Algumas com chapa de zinco e paredes de cimento, mas nenhuma com casa de banho ou saneamento básico. Muitas casas não tinham janelas ou qualquer outra abertura para além da porta, já fechada àquela hora…

Lama e água corriam pelas ruas estreitíssimas e havia muito poucos candeeiros de rua. Mal conseguia acreditar que aquele era o local onde viviam muitas das pessoas com quem me tinha cruzado nessa manhã na cidade. Onde viviam pessoas que tinham tirado cursos e estavam empregadas há muitos anos… Como era possível viver com a família inteira em dez metros quadrados, sem acesso a água potável, sem meios de fazer despejos de forma condigna, e continuar a ser gente? A pobreza no mato pode ser triste, mas nas cidades consegue ser desumana…

À porta de algumas casas viam-se ainda pessoas a tomar a última refeição do dia, que cozinhavam num pequeno fogareiro a carvão, ouviam-se restos de conversa à volta da pequena chama, criada em família, que servira para aconchegar as barrigas e os ânimos, percebia-se a moleza de quem já lutava contra o sono mas teria de vencer a inércia e fazer um último esforço para estender as esteiras, despir e deitar os filhos mais novos, arrumar a loiça para lavar no dia seguinte no poço ao fundo da rua. Terrível, a monótona dureza do dia-a-dia.

Não fiz qualquer comentário. Tentei lutar contra o choque que sentia. Ali, naquele bairro, havia certamente pessoas de valor, pessoas que lutavam para que os filhos tivessem um futuro melhor, casais que se amavam, famílias que se construíam, pessoas que procuravam levar uma vida honesta e ajudavam a família e os amigos. Também ali, quis acreditar, era possível ser-se feliz, houvesse harmonia e saúde… As pessoas olhavam-nos e comentavam em macua à nossa passagem, mas nem eu nem o Vicente, cuja língua materna era o changana, os compreendíamos. Certamente estariam a especular sobre o motivo daquela visita…

A família do colega do Vicente era, felizmente, uma das famílias tardias, que se tinha demorado no jantar, depois do anoitecer e ainda estavam à porta de casa. Indicaram-nos sem dificuldade a casa da mãe da Inês. Sabiam, de facto, que algo se passava com a família e que a mãe tinha deixado de trabalhar. Ainda não passavam dificuldades, mas era certamente uma questão de tempo. Estavam preocupados com eles, de tal forma que a mãe do colega se ofereceu para ir connosco falar com ela.

A casa era quase ali ao lado. Tinha portas e janelas, que já estavam fechadas e não se via qualquer luz no interior. Hesitei, mas a mãe do colega do Vicente bateu à porta, convicta. Esperámos um pouco. Nada. Bateu novamente. Nada. Não estariam em casa? Que sim, que estavam de certeza, pois se tinha visto a mãe passar… Após alguns minutos, a porta abriu-se e uma mulher, de seus trinta e poucos anos, emagrecida e despenteada, semi-despida abriu a porta, estremunhada. Não me deu tempo sequer de explicar ao que vinha ou de lhe mostrar a capulana que trazia para a Inês, não me deu tempo sequer de a olhar nos olhos, como tinha imaginado. Assim que me viu, percebeu que eu só podia vir de parte das Irmãs, as únicas pessoas brancas que conhecia, e fez menção de fechar a porta. Não tinha contado com isso. Nem me tinha passado pela cabeça que ela compreendesse de imediato o que é que eu fazia ali. Que ingenuidade a minha…
 
(continua...)

[welcome to mozambique] a caminho...


Fora da cidade, no caminho para Nacala...
(Nampula)

[à procura da inês] vamos, vicente, vamos até lá...

(...continuando a história que começou aqui...)


Falei-lhe da minha preocupação com a Inês, a filha da técnica de farmácia do centro de saúde onde ele estava a estagiar. Da forma como o técnico, colega dela, me tinha evitado, de como me tinha dito que ela já não ia trabalhar há algum tempo, da confusão sobre o nome e as minhas dúvidas de que seriam a mesma pessoa, já que segundo o colega da farmácia, a menina se chamava Betinha e não Inês.


– Ah, tia P., isso foi coisa que também me custou a compreender ao início aqui em Nampula, porque nós na Casa do Gaiato não tínhamos esse hábito.
– Que hábito?
– As crianças macuas não são tratadas pelo nome de registo. São tratadas pelo “nome de casa”. E Betinha não pode ser nome de registo.
– E achas que Betinha pode ser Inês? Não é Elisabete?


Franziu o sobrolho.
– Porquê Elisabete? Pode ser qualquer nome… O nome de casa do meu companheiro de quarto, por exemplo, é Motorista e o nome de registo é Ozias.
– Ah, pronto. Então pode ser a mesma menina. Eu na realidade suspeitava que seria isso, porque o resto da história parecia-me que batia certo…
– Mas agora que tia P. fala, lembro-me que há duas semanas a técnica da farmácia estava lá. Vi-a chorar no gabinete do director.
– E estava a chorar porquê?
– Estava a dizer que a menina estava com uma doença que não tinha cura e que tinha de deixar de trabalhar. Não percebi bem, mas penso que depois acrescentou que não podia mais estar a conviver com outras pessoas. E nunca mais a vi…
– E que doença tinha?
– Não sei, o Director não disse. Mas deve ser uma doença muito má, para o Director não dizer… Ou então não sabem.
– Mas porque é que o colega dela da farmácia não me disse isto?
– Ele não conhece tia P… Não sabe com que intenção tia P. queria saber.
– Mas eu disse-lhe que queria saber se ela precisava de alguma coisa para a menina regressar a Iapala para estudar.
– Precisamente por isso. Ele pensa que a mãe quer esconder a menina ou a doença. Ou então que a doença não tem mesmo cura e não há nada a fazer.
– Mas eu queria mesmo ajudar a menina… E disse-lhe que sou médica em Portugal.
– Eu sei, tia P.
– Então? Talvez eu possa curar a menina!
– Não sei, tia P. Para a mãe deixar de trabalhar e ter de se afastar é porque é uma doença tradicional. E isso tia P. não pode curar…
– Vicente, por favor!


E ia acrescentar: “Também tu?”, mas arrependi-me a tempo. Afinal de contas não conhecia a cultura assim tão bem e não tinha maneira de desmontar este argumento. Só ia criar mais uma barreira entre mim e ele. E já tinha compreendido que por mais formação científica ou por maior convivência com a cultura ocidental que alguém tivesse, o leite que se bebeu em pequenino é que prevalece sempre no fundo da mente…
– O que é que achas que eu posso fazer? Eu quero mesmo ajudar a menina...
– Acho que vai ser muito difícil. A mãe sente-se humilhada pela doença, de certeza.
– Mas acho que devo tentar na mesma. Tu sabes onde é que ela mora?
– Em Napipine, precisamente não sei, mas sei que vive perto dos pais de um colega meu.
– Pois. É a mesma pessoa, de certeza, a Irmã Lurdes também me disse que ela vivia em Napipine! Vais lá comigo hoje?
– Hoje? Tão tarde?
– Sim, não tenho muito tempo. Não vou ficar muito tempo em Nampula. Onde vives?
– Na escola, na residência de estudantes.
– Vais agora para lá?
– Sim, vou jantar.
– Eu também vou jantar agora com as Irmãs. Depois vou buscar-te à escola e vamos a Napipine os dois. Pode ser que ela aceite falar comigo se tu estiveres por ali. Pode ser? Fazes isso por mim e pela Inês?
– Sim, tia P.
– Então vá, até logo.
– Até logo.


As Irmãs tentaram demover-me de ir procurar a mãe da Inês a casa dela. Que provavelmente uma mensagem minha bastaria. “Podemos oferecer a nossa ajuda. Se as pessoas quiserem ser ajudadas acabam por vir… Elas sabem que a nossa porta está sempre aberta. E pode ser contraproducente invadir assim o espaço das pessoas. Não podemos ser mães de toda a gente e levá-las nas palminhas. Por muito que nos custe, não é assim que as ajudamos.” Era verdade. Dolorosamente verdade. Estas frases caíram-me mesmo em cheio na consciência que tenho de mim própria. Sentia também que ia ser intrusiva. Que me estava a aventurar por um mundo que não conhecia e que tinha todas as hipóteses contra mim nestas circunstâncias.
 
(continua...)