quarta-feira, 23 de novembro de 2011

[à procura da inês] no hospital do anchilo





No hospital do Anchilo...
(Nampula)

(...continuando a história que começou aqui...)

Eu e o Vicente ficámos novamente a olhar um para o outro. Ambos com uma única ideia na mente: se alguém nos tivesse dito que podia salvar o nosso menino, qualquer de nós teria ido com ele até ao fim do mundo, se fosse preciso. Como é que aqueles pais desistiam assim de uma filha que adoravam e sempre tinha sido saudável? Não, não podia ser verdade… Eles não podiam ter desistido. E nós também não íamos desistir. O pai tinha dito que ela estava internada. Isso devia ser verdade… Mas onde estaria?

– Tia P., se é verdade que a menina está internada, só pode estar no Anchilo. É lá que todas as pessoas que trabalham na Saúde vão quando estão doentes. É o melhor hospital daqui.

No dia seguinte fui com o guarda, o Sr. Revenda, ao hospital do Anchilo. Mais uma vez o assunto da Inês queimava-me a língua, mas ao meu lado, o Sr. Revenda roncava o sono dos justos e eu mal tinha coragem de o acordar para lhe pedir indicações quando era mesmo preciso escolher o caminho...

Felizmente, a Irmã Maria, uma Irmã Comboniana e enfermeira do hospital, disponibilizou-se de imediato para me ouvir e ajudou-me a rever todos os processos das semanas anteriores. Descobrimos que a Inês tinha estado internada durante um mês inteiro numa das enfermarias de Medicina Interna. Mas o processo não tinha nada escrito. Nem sequer o motivo de admissão. A Irmã estava perplexa. Jurava-me a pés juntos que não a tinha visto nunca no período em que o processo dizia que tinha estado internada. Ela que controlava tudo. Absolutamente tudo. Quem entrava, quem saía, se a medicação estava a ser cumprida, se os doentes melhoravam ou pioravam, se as mamãs estavam a planear abandonar o hospital por os tratamentos se estarem a prolongar… Tudo! Eu já tinha ouvido falar dela. Era uma força da natureza, uma força de trabalho e competência. Não era possível a menina ter lá estado internada sem ela ter dado conta.

Fomos rever os registos da medicação e, de facto, lá estava o nome dela, com a referência de “cama extra”. Provavelmente os pais tinham pedido para a menina não ficar fisicamente internada e alguém ia ao hospital várias vezes por dia receber a medicação por ela. E deviam ter pedido especificamente para que a menina não fosse vista pela Irmã Maria, a profissional mais experiente de todo o hospital, porque pensaram que essa seria a única maneira de as Irmãs de Iapala não ficarem a saber da doença! Santo Deus, mas que maneira de agir mais arrevesada… Fomos ver que medicação correspondia àquela cama para ver se pelo menos chegávamos a um diagnóstico, mas segundo os registos, a menina tinha sido tratada com uma série de antibióticos, anti-fúngicos e anti-parasitários. Parecia que alguém tinha disparado em todas as direções sem saber rigorosamente nada do que estava a fazer. Pela medicação também não íamos a lado nenhum. A Irmã também não reconhecia a assinatura de quem a tinha administrado. Claramente tudo tinha sido feito para encobrir a menina e a sua doença tabu… Credo! Mas como é que era possível? Aquilo começava a parecer um romance policial de péssima qualidade. E havia uma vida à mistura! A vida e o futuro de uma menina, que lhe estavam a ser roubados de forma cruelmente injusta e injustificada por uma qualquer tradição… Se antes estava preocupada e compadecida pela família, agora estava genuinamente zangada.

– O que acha que posso fazer mais, Irmã?
– Não estou a ver, sinceramente… Se já foste falar com os pais e oferecer a tua ajuda e eles recusaram, então duvido que haja mais alguma coisa a fazer… Quando as pessoas não querem ser ajudadas é quase impossível alcançá-las. É assim em todo o mundo, não é só em Moçambique. E aqui a justiça não nos permite retirar a custódia da criança à família, como na Europa… Não há lei nenhuma que proteja as crianças dessa forma.
– Pois é, Irmã…
– Muitas vezes temos de aceitar que não podemos fazer mais nada pelas pessoas, por muito que nos custe. Lançamos uma semente. Podemos rezar para que dê fruto. Muitas vezes não podemos fazer mais. Mas pode ser que ainda caiam em si e te procurem…

Mas já eram 08:30 e dentro de meia hora ia começar o meu périplo na escolinha a ver as 150 crianças que me tinha proposto ver. Fazia por me esquecer disso, se não ainda me “dava a travadinha” e podia desistir à partida. Tinha de regressar rapidamente a Nampula. Não havia mais nada a fazer se não enviar outra mensagem à Irmã Lurdes e esperar que ela tivesse alguma ideia ou que as nossas investidas da noite anterior pudessem ter lançado alguma semente…

As consultas na escolinha decorreram sobre rodas, ao contrário das minhas expectativas. Sem problemas, sem choros, sem birras. Nunca tinha visto crianças como aquelas, disciplinadas, bem comportadas, com uma obediência sem reservas. E a alegria no final da consulta quando recebiam um balão era indescritível. Mas cheguei exausta ao fim da tarde. Faltavam-me ainda algumas compras para fazer, mas as Irmãs obrigaram-me a ficar a descansar e lanchar com elas. E tinham razão. Ainda não me tinha sentado como deve ser com elas em família…

(continua...)

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