Sempre que um doente tem alta, vemos partir com ele um cortejo de familiares que estavam por ali, acantonados nas imediações, acompanhando-o pelo tempo que fosse necessário, à espera das melhoras...
(Gilé, Zambézia)
(...continuando a história que começou aqui...)
– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de os respeitar. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.
– Outra religião? Mas os pais da Inês são católicos… ou não?
– Sim, são católicos. E praticantes. Mas isto é uma outra dimensão da espiritualidade. Uma outra dimensão que nós não temos. E que nem sequer compreendemos totalmente. Para os entendermos temos de perceber que cada família tem a sua religião. Cada família tem a sua história, os seus mortos e os seus ancestrais. Eles têm um Deus, que chamam de Muluku e a quem rezam na missa e em casa. Mas Deus para eles está muito longe. Nesta cultura quem os protege dos problemas do dia a dia não é Deus. Por mais que as tentemos fazer acreditar que sim, que Deus é amor e que vela por eles.
– Então porque é que rezam?
– Não sei muito bem, mas penso que rezam pela mesma razão que os meninos vão à escola. Porque têm esperança que um dia, num futuro longínquo, isso lhes vá trazer uma vida melhor. Mas para as coisas do dia a dia não contam com Deus.
– Então?
– Há intermediários entre Deus e as pessoas, que são os antepassados, os mortos da família. Cada família tem os seus antepassados. E por isso, cada família tem uma maneira de ver Muluku que é diferente das outras porque é influenciada pelo carácter dos seus defuntos e pela história da família. E por isso também compreendem que outras famílias tenham ideias diferentes e uma visão diferente do mundo. Acaba por ser uma espiritualidade muito tolerante nas diferenças e há muito respeito entre as pessoas…
– Isso é bonito…
– É muito bonito. É uma espiritualidade muito intensa e que dá um sentido muito forte de família e de união. Um sentido de continuidade e coerência entre as famílias. Nunca viu uma pessoa sozinha no hospital, pois não? Estão sempre muitas pessoas de família a acompanhá-la na doença.
– Sim, é verdade, nunca estão sozinhos. Estão sempre irmãos, tios, pais…
– Sim. Quando acompanham a família na doença, ou nos ritos de passagem, ou nos funerais, isso não é só solidariedade, não é só porque é correcto e é importante para o outro. Também é, claro, não duvido que o fazem porque é importante para o outro e porque querem estar presentes, mas é também uma manifestação da espiritualidade deste povo. São valores muito bonitos.
– Sim, é verdade, chega a ser comovente…
– Mas não é fácil aceitar que essa mesma espiritualidade tenha tantos mitos e tantos tabus que os impedem de viver a sua vida e andar para a frente.
– Pois… é isso mesmo… O tio da Inês estava mesmo convencido de que ela está doente porque eles não cumpriram bem o rito do funeral do tio mais novo, que morreu há poucos meses. Parece que faltava um dia para acabar quando uma tempestade destruiu a casa onde estavam e eles tiveram de se vir embora…
– Meus Deus, que desgraça… que sofrimento… e o que tem a menina?
– Acho que tem psoríase. Mas ainda não a vi, não tenho a certeza…
– Ai, credo, que doença para se ter aqui. Mas olhe que se calhar não a vai conseguir tratar… Aqui não há muitos medicamentos.
– Nem nas farmácias privadas?
– É uma doença rara. Duvido que tenham alguma coisa, mas pode sempre tentar…
Um murro no estômago. Mas será que não ia conseguir tratar a minha menina? Será que ia faltar à minha promessa e deixar que uma menina inteligente e cheia de potencial terminasse a sua vida assim humilhada?
Nem me estava a reconhecer naquelas preocupações… Para onde é que estava a ir a minha confiança, Santo Deus? Tudo o que tinha corrido mal nestes dois dias estava mesmo a influenciar-me e a deitar-me abaixo…
Tentei tranquilizar-me: no fundo ainda nada estava perdido. Dadas as circunstâncias até estava tudo a correr bastante bem. Tinha conseguido chegar a Nampula de carro sozinha, mesmo furando pineu pelo caminho, tinha tratado duas crianças quase mortas de desidratação e malária, conseguido fazer todas as compras, encontrar a Inês e compreender o que estava por detrás da sua ausência e da reclusão da família e ainda tinha começado a ver as crianças da escolinha. E, por milagre, o Vicente caíra-me do céu! Como é que eu me atrevia a perder a segurança se nada tinha corrido verdadeiramente mal? Lá porque tudo tinha sido difícil e delicado… Lá porque não me tinha tudo vindo parar às mãos de bandeja, como de costume em Moçambique, não queria dizer que não estivesse tudo bem. Sim, isto já devia ser o cansaço a falar… Estavam a ser muitas emoções ao mesmo tempo.
(continua...)
De facto e apesar da barreira cultural houve boas surpresas e acontecimentos felizes! Essas crianças que trataste podem voltar a sorrir :)
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