quinta-feira, 31 de maio de 2012

[em jeito de epílogo] a questão do preservativo...


As doenças, como sabemos, em Moçambique, tal como em muitas zonas de África, não têm causas, têm motivos. Há alguém, vivo ou morto, que é responsável pelas doenças, que mais não são do que o resultado de feitiços, invejas, maus-olhados, ofensas aos antepassados. Já os vírus, mosquitos, vectores, carraças não entram nesta concepção do mundo, em que as doenças são interpretadas como sintoma de mal-estar social.

Por tudo isto, não me espanta que surjam notícias de novas modas referindo que as meninas moçambicanas agora usam pulseiras feitas com as argolas dos preservativos femininos distribuidos gratuitamente nas escolas e postos de saúde... São lindas, dizem. E quanto mais se lavam mais brilhantes e encantadoras ficam! Segundo uma amiga que vive na Zambézia, estas pulseiras são também pequenas mensagens de código. Querem dizer aos rapazes que estão dispostas a ter relações sexuais.

Pela mesma razão que já não me surpreende que as redes mosquiteiras brancas, doadas pelas ONG às famílias, num esforço para tentar diminuir a mortalidade por malária... sejam usadas como véus de noivas nos casamentos. É, aliás, por esta razão que as redes mosquiteiras actualmente são de um azul-saloio de tal forma arrepiante que noiva nenhuma teria vontade de se casar com aquele trambolho na cabeça... Por isso, as pessoas preferem usá-las como redes de pesca.

Quem os poderá censurar? Como disse um dia Thomas Edison, waste is worse than loss!

[outras paragens] a lagoa azul de são tomé...





Os enormes embondeiros da lagoa azul...
(Lagoa Azul, São Tomé e Príncipe)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

[welcome to mozambique] gorongosa



Lindíssimo! Um dia hei-de ir à Gorongosa...

terça-feira, 29 de maio de 2012

[vozes brancas* #68] o pai vai deixar de viver aqui

Ontem, num intervalo entre duas consultas, recebi o telefonema da mãe de uma criança de três anos e meio. A Margarida é uma menina especial porque sobreviveu com uma garra impressionante a duas cirurgias cardíacas complexas, ambas com mil complicações, que iam dando conta das coronárias dos jovens pais e dos médicos e enfermeiras que cuidaram dela... É o bijou do hospital inteiro porque, mesmo quando esteve às portas da morte, teve sempre períodos em que abria os olhos e sorria para quem estivesse à sua frente e esticava os braços, como que a pedir "Tirem-me daqui, quero ir conhecer o mundo!" Apesar de todas as complicações, o cérebro não ficou com uma beliscadura! É uma princesa linda, viva, adora dançar, inventar histórias e jogos...

Os pais resistiram juntos à montanha russa emocional que foi ver a sua menina quase morrer por seis vezes e, por fim, vencer como uma guerreira. Mas a relação desgastou-se rápido e na última consulta já me tinha apercebido de que o casamento tinha os dias contados...

A mãe falava-me da sua preocupação por a menina estar mais agitada na escola, por vezes agressiva com os colegas, e perguntava-me, então, se deveria continuar a tentar esconder da filha a separação iminente ou se, pelo contrário, a deveria preparar para a saída do pai... Ao que eu respondia que talvez fosse mais sensato esperar que fosse a menina a fazer a pergunta, uma vez que ela provavelmente já se teria apercebido de que alguma coisa estaria diferente...

- Sim, doutora, ela já tem feito algumas perguntas...
- Tais como?
- Por exemplo, no outro dia perguntou-me: "Mãe, achas que o pai depois vai casar com uma madrasta que me vai dar maçãs com veneno?"
- Ah... então ela já percebeu tudo, escusa sequer de lhe dar a notícia. Ela está agitada porque está muito mais à frente e a antecipar o que se vai seguir.

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

domingo, 27 de maio de 2012

[casa do gaiato] de longe, a mais grandiosa instituição de moçambique


Foi aqui, em Boane, próximo da barragem dos Pequenos Libombos, que conheci Moçambique... Foram aqui os encantos de primeira vez em África.
Com o Padre Zé Maria, a Irmã Quitéria, a tia Cármen, a D. Virgínia e os meninos mais adoráveis que já tinha conhecido. Curiosamente, foi também o Lucas, o primeiro menino que aparece no vídeo, quem me adoptou inicialmente. Foi ele quem, na primeira tarde, me veio adornar a mesa-de-cabeceira com uma flor selvagem que crescia numa casca de coco, "para titia sentir o cheiro da terra antes de dormir".

Se me pedissem uma só prova de que é possível crescer e que vale a pena investir em Moçambique, eu saberia o que responder.
(Boane, Moçambique)

[welcome to mozambique] a doença não tem causas, tem causadores!


JeitO, a marca de preservativos mais popular em Moçambique...
"Amor, você tem JeitO?"

Ainda sobre a questão do preservativo em Moçambique, volta e meia lembro-me desta notícia desconcertante em todos os aspectos, que transcrevo abaixo. Só não a apelido de inacreditável porque, infelizmente, sei bem demais que é verdade... Em Moçambique é frequente a crença de que quando uma fatalidade se abate sobre os pobres, a culpa é, invariavelmente dos ricos. Ou de invejosos. Ou de feiticeitos. Ou de alguma mulher idosa e viúva que possa servir de bode expiatório.

Por exemplo, na Zambézia, é recorrente, em alturas de seca, a população revoltar-se contra as autoridades e acusá-las de ter "amarrado a chuva no céu" para prejudicar toda a comunidade, fenómeno de que já sobejamente nos falou o Professor. A notícia do DN de que vos falo é esta:
«O arcebispo de Maputo, D. Francisco Chimoio, acusa os europeus de infectarem propositadamente preservativos com o vírus da sida "para acabar com o povo africano". As acusações estão a chocar o país onde, diariamente, cerca de 500 pessoas são infectadas com o VIH.
"Os preservativos não são seguros porque eu sei que há dois países europeus que estão a produzi-los com o vírus de propósito", afirmou o arcebispo. "Eles querem acabar com o povo africano. Querem colonizar tudo. Se não tivermos cuidado, estaremos liquidados dentro de um século", acrescentou, indicando que a melhor maneira de evitar o contágio da doença é a abstinência, não os preservativos. D. Francisco Chimoio, o líder da igreja católica em Moçambique, seguida por 17,5% da população, recusou nomear os países em causa, indicando ainda que os medicamentos anti-retrovirais também estão infectados.» (...)
E, mesmo assim, ao demonstrar que sabe que a sida é provocada por um vírus, D. Chimoio está ainda a anos-luz do nível cultural da esmagadora maioria dos moçambicanos... Não nos podemos esquecer de que em Moçambique as doenças não têm causas, têm causadores! Não há agentes infecciosos, há feiticeiros, antepassados, tabus quebrados... Neste sistema de crenças animistas, o preservativo é para os moçambicanos tão descabido como seria para nós colocar um guarda-chuva à porta de casa para evitar o cancro...

[o pior cego...] os brinquedos dos pobres fazem-se com lixo...





Recordemos algumas das fotos magistrais do André, um dos bloggers que mais admiro, autor do Tertúlia Africana, blogue que, parafraseando o Irmão Lúcia, é para ir de joelhos. Ou recordemos este post, publicado aqui há atrasado, no decurso da improvável rubrica Zambézia vs New York.

Este último brinquedo em particular é leve e salta como uma bola profissional, asseguro-vos. E é fabricado com sacos de plástico, câmaras-de-ar de bicicleta e... preservativos. Novinhos em folha. Em África, meus amigos, os brinquedos fazem-se com lixo ou com coisas que não servem para nada. Com canas, desperdícios de madeira, farrapos de tecido, restos de cordel... Os adultos nunca deixariam as crianças fabricar brinquedos com objectos que ainda pudessem ter alguma utilidade...

Que valor é, necessariamente, atribuído ao preservativo? Por adultos e crianças? Lixo. Lixo! Três vezes lixo! Sem apelo nem agravo. E adianta distribuir lixo gratuitamente, Valha-me Nossa Senhora de Souselas? O que podem, então, concluir o Ministério da Saúde de Moçambique, a OMS, as ONG e os decisores políticos?  O pior cego, meus amigos, é aquele que não quer ver...

sábado, 26 de maio de 2012

[são tomé e príncipe] tartarugas adoráveis...






 







Numa madrugada, depois da desova das tartarugas na praia, os embriões são transferidos "in ovo" para as incubadoras, onde permanecem dois meses... Depois, num fim de tarde absolutamente mágico, os ovos eclodem na pequena maternidade de plástico e, ao cair da noite, as pequenas tartarugas recém-nascidas são novamente postas na areia da praia e as ondas vêm buscá-las... Tudo o resto que se segue... depende da maré, que pode ser uma maré de sorte ou uma maré de azar, depende de Darwin e da selecção natural, do acaso e da garra de cada uma.
(São Tomé e Príncipe)
Fotos minhas e da F.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

[sns we can!] por uma medicina igualitária!

[as melhores do serviço de urgência] lapsos improváveis...


A propósito do adolescente que há duas semanas recorreu ao serviço de urgência do meu hospital por ter acidentalmente engolido uma escova de dentes de 19 cm [valha-nos Adão engasgado e o seu caroço de maçã], lembrei-me do dia em que no primeiro ano de Medicina, uma colega minha, perante uma radiografia parecida com esta, fez o seguinte comentário: "Credo, há cada um! Mas como é que o homem engoliu aquilo?"
Pronto era só isto... Obrigada e boa tarde.

[outras paragens] eu queria viver numa cascata...






A cascata de Bombaim, e o Cau, o meu guia em São Tomé, que resolveu lanchar uma mui saudável e nutritiva cana-de-açucar. Dos meus maravilhosos momentos mergulhada naquelas águas não há, felizmente, testemunhos fotográficos...
(São Tomé e Príncipe)

terça-feira, 22 de maio de 2012

[outras palavras] "é leão?" "nada, é moçambicano mêmo!"




Os elefantes da Gorongosa, a cuidar da sua beleza com pó di terra...
Fotos daqui

(continuando...)

Uma outra noite, a caminho de uma espera aos elefantes que andavam a dizimar as machambas, atravessando uma aldeia - seriam umas 4 horas da madrugada -, veio ao nosso encontro um homem armado de catana. Era o chefe da povoação que pedia ajuda para perseguir um leão que pelas 20 horas tinha emboscado um rapaz à porta da palhota (julgo que era seu filho…). Não consigo descrever a expressão de angústia no rosto daquele homem e nem a impressão sentida. África dá-nos a provar todas as sensações, mesmo as do horror. O corpo do rapaz foi recuperado ao amanhecer, mas do leão não ouve notícias, perdeu-se na imensidão da mata cerrada.

Os rastos que víamos provavam haver vários leões. Atacavam onde calhava, num raio de muitos quilómetros e nada dizia ser apenas um, vicioso. Nunca foram ao isco da carcaça do elefante, que seria tentador havendo pouca caça-grossa, salvo bastantes facocheros, os elefantes e algum gado, sobretudo cabras, em que não tocavam. Atacavam sobretudo mulheres e crianças, ou isoladas ou as últimas de um grupo, de tal modo que por vezes nem davam por isso a não ser quando notavam a falta! Estando as aldeias muito dispersas, poder-se-ia pensar que seriam leões oportunistas tornados caçadores de homens pela fome e que criaram este hábito pela facilidade em achar esta presa de substituição, ou então...

Numa daquelas soberbas madrugadas, ao lusco-fusco avermelhado, sereno, fresco e húmido, quando mais se sente o cheiro do mato e da terra, ao nascer do Sol, o Manel Carona parou o carro e foi "atrás da moita", levado por uma necessidade menos poética mas imperiosa... o velho Arruéque saltou para cima da caixa da carrinha com a .375 e postou-se atento, comentando entre dentes a falta de cuidado do "patrão Manéle”.

Aproveitei estarmos sózinho e achando que podia abordar o assunto, pois o avaliador e sabido caçador-pisteiro, seco e franzino, que a despeito de ter menos um palmo de altura sempre parecia olhar por cima de mim, já devia ter percebido que o respeitava e às suas crenças. De forma monossilábica, no escasso português que comungávamos, trocámos então algumas palavras:

kharamu*, Arruéque?"
Ele de olhos semi-cerrados e impassível, sem me olhar directamente:

"Nada! É moçambicano mêmo."
"E não pode fazer nada, uma cerimónia?"
"Hum!” [Sim] e depois em tom de impotência conformada, “Eles não acredita..."
"Vão na escola e julgam que sabem tudo, não é? Mas as coisas que acontecem no mato não aprende na escola, não é?"

Luziram os seus estranhos olhos amarelados de velho leão, e numa espécie de sorriso de dentes incrivelmente gastos: "Sim!"

A verdade é que aquilo que desdenhamos sentados a uma mesa de café, ali naquele local e naquele ambiente tendo já ouvido "cantar o leão" ao dormir no mato, dito pela boca daquele homem faz outro sentido... aliás é por isso mesmo que há muito deixei de frequentar cafés!


* Kharamu - "Leão" em macua.
Kharamu - O Leão Ruge em Moçambiquein Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
(A propósito d'A Confissão da Leoa de Mia Couto)

[instantes] porque a vida é todos os dias!


Lavar a roupa no rio... um gesto do quotidiano de quase todas as famílias...
(São Tomé e Príncipe)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

[vozes brancas* #67] os pitéus dos antípodas...

Hoje na consulta de uma menina de quatro anos, com uma asma de difícil controlo, uma rinite alérgica e hemorragia nasal recorrente... Os pais, jornalistas que correm mundo em filmagens sobre vida selvagem, acabados de chegar da Austrália e com o jet lag estampado a negro debaixo dos olhos, vinham preocupados porque a filha tinha sangrado do nariz várias vezes na sua ausência.

- E então, como estás hoje, Madalena?
- Estou boa!
- E tens-te portado bem?
- Sim... mas, os pais dizem que não, que eu estou sempre a portar-me mal.
- E com que é que os pais ralham? O que é que tu fazes?
- Ah, é que eu tenho muitos "australia pitéus" e depois sangro do nariz...
- Muitos quê, querida?
- Muitos "australia pitéus".
- Mas o que é isso, é para comer?
- Não, eu não como! - gritou.

Os pais, quase adormecidos, recostados nas cadeiras da consulta, assistiam à conversa sem interferir...

- Está bem, querida, mas o que é que veio da Austrália?
- Não, vêm do nariz! - com um ar de "Dah, esta não entende nada!"
- O que é que a Madalena tem no nariz? - pergunto por fim aos pais.
- Tem "macacos" no nariz, nós chamamos-lhes Austrolapitecos... está sempre com o dedo no nariz, e achamos que é por isso que ela sangra!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[outras paragens] um país de sonho...


Guiné-Bissau. Natureza, vida selvagem, biodiversidade e esperança!

[são tomé e príncipe] a força que um sorriso pode ter!



Segundo o meu guia, esta foi a mulher mais bonita que encontrámos em todo o dia e fez-me fotografá-la! Ela não se fez rogada e a pose é digna do tapete vermelho de Hollywood... Tivesse esta mulher nascido no sítio certo e família certa!
(São Tomé e Príncipe)

[outras palavras] os leões e a tradição...




Leões da Gorongosa...
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)


(continuando...)

Lembro-me a propósito desta acção e influência do sobrenatural e da superstição, de uma peça que anos atrás via constantemente na TV Moçambicana a propósito das eleições, em que um feiticeiro trajado a rigor, deitava búzios e exclamava admirado: -"Eh! Não sei quem vai ganhar!". Logo aparecia um jovem, sorridente e moderno, que comentava: -"Pois não! O voto é secreto!".

Alguns dias depois desta conversa, juntámo-nos aos caçadores de três aldeias para dar batida a uma leoa que rondara um povoado. Andámos toda a manhã, metidos num mato baixo que porém nos cobria, cerradíssimo e inçado de espinheiras. Eu, o Carona e o Arruéque armados de carabinas, os restantes de arcos, flechas e as suas machadinhas. Confesso que ao ver-me rodeado de arqueiros silenciosos que estudavam o solo, deslizando pela mata fechada, tive um arrepio, uma espécie de déjà vu, como se saltasse para dentro das páginas de um livro de aventuras da minha juventude. Não sei bem explicar, mas, quantos de nós já vivemos tal e tão magnífica sensação e privilégio?

A pista da leoa era difícil de seguir e progredíamos pouco. Ora se perdia num espesso tapete de folhas, ora reaparecia na areia uns metros à frente. O Arruéque e algum mais sabedor tinham de se aplicar para poderem achar rasto num terreno seco e duro, tapado de erva seca e folhas, onde a pata almofadada do felino pouco vestígio deixava. As paragens eram frequentes e reuniam-se confabulando em surdina. Até que numa paragem, o Arruéque que tinha estado sempre calado, só trocando curtas impressões com o patrão, tomou a palavra. Ele é muito respeitado, tanto como pisteiro e caçador como por ser uma espécie de padre-feiticeiro ou coisa parecida, o que nunca consegui apurar muito bem por serem muito reservados nestes seus assuntos. As suas palavras fizeram silêncio e provocaram uma breve reunião numa clareira. Os três chefes das aldeias falaram cada um por sua vez e os outros ouviram apenas, acenado com as cabeças como é costume. Logo se desmobilizou a companhia e a caçada terminou.

No regresso perguntei ao nosso companheiro e fiscal, representante da administração que nos acompanhava, o que se passara: Ele explicou-me que o Arruéque perguntara aos caçadores se eles tinham a certeza de que perseguiam uma leoa ou se seria uma das suas avós! Os chefes haviam decidido interromper a caçada e iriam discutir o assunto em sede própria, e longe de nós por suposto. Assim terminou aquela caçada ao leão.

(continua...)

domingo, 20 de maio de 2012

[outras palavras] leões, elefantes e antepassados




Fotos de uma visita à Gorongosa nos anos 60 (por Jorge Ribeiro Lume)
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)


(continuando...)

Ora eu já vinha dando apoio ao projecto de instalação da empresa de safaris havia dois anos e tinha contratado caçar com a Negomano Safaris, mas combinara antes disso com o Manuel Carona, caçador profissional e sócio-gerente, que entre a partida e vinda de outros clientes iríamos passar uns dias com as nossas mulheres em Pangane, uma povoação na praia a Norte de Pemba, onde alugamos uma casa, por sinal a única de cimento, que era posto comercial de um chinês. A aldeia era habitada maioritariamente por pescadores que se dedicavam a secar o peixe. Existia mesmo uma curiosa e rudimentar estrutura frigorífica mantida por gerador para armazenar lagosta e onde era proibida a entrada não autorizada (com letreiro e tudo!). Para lá seguiram o Unimog, equipamento e pessoal necessários para a estadia. Além de mergulhar e pescar, de visitar o lindíssimo litoral e as numerosas ilhas, iria acompanhar o Manel, a quem havia sido solicitado apoio às populações, procedendo ao abate selectivo dos animais que faziam perigar vidas humanas e colheitas.

Por cerca de duas semanas percorremos a região, as lagoas, rios, matas e numerosos povoados, contactando de perto uma gente absolutamente isolada que nos festejava e sobretudo às duas senhoras brancas (coisa rara) com entusiasmo, regressada a um quase selvagismo, porém amável, inteirando-me do seu viver e da dura realidade de uma África já contaminada pela coca-cola, a mais terrível e implacável arma da colonização jamais inventada! Umas vezes rompendo ou abrindo caminho por força e graça do Unimog para chegar a aldeias recônditas, outras vezes eram os próprios aldeãos que, à catanada, reabriam picadas esquecidas para que pudéssemos ir até junto deles! Nesta fase, pela necessidade de rapidez, das distâncias e dispersão pelo mato, usávamos sobretudo o Unimog mas não nos poupámos a uma ou outra caminhada, das de sol a sol.

Os elefantes, numerosos e descontrolados eram a maior queixa e receio pela consequente fome que provocavam, destruindo e comendo colheitas no campo ou já nos eirados e celeiros rudimentares de cana, mesmo atacando e matando alguns camponeses que tentavam espantá-los. Mas o grande tema de conversa em breve passou a ser o dos leões devoradores-de-homens!

Recordei que na "Ronda de África", Henrique Galvão falava destas feras e também de práticas de canibalismo a coberto da actuação dos leões. Muitos outros autores referem estas seitas secretas, cujo objectivo era o consumo de carne humana, como os homens-leopardo, os homens-crocodilo e os homens-leão em diversos pontos de África, consoante nos grandes rios, florestas ou savana, quando homens simulam o ataque destas feras para ocultar as suas actividades e assim se cria a lenda de que possuem o poder de se transformar em animais e retomar a forma humana. Pallejá relata mesmo a história de um "leão" que só comia gente da mesma família, causou desconfianças e conduziu à descoberta de um destes casos! Vai mais longe ao recordar que os macondes haviam sido antropófagos. O próprio Galvão narra um caso que investigou, em que duas mulheres e dois homens, usando peles e garras de leão, encenavam e disfarçavam os seus crimes, comendo as vítimas, inclusive fotografou-os em simulação e com detalhe, fotos essas que ilustram a sua obra e depois reunido esse e outros casos, deram origem a um dos seus mais divulgados títulos, e talvez dos mais controversos: “Antropófagos”, de 1947 - Diário de Notícias.

Numa tarde quente em fim de jornada, descansando e comendo à sombra de uma árvore falei disto ao Carona e a conversa alargou-se a um moço que era nosso guia. O Carona perguntou ao seu pisteiro-chefe, o velho Arruéque, celebrante de cerimónias mistas de Islão e animismo, se tinha algum conhecimento disto. O velho fez-se desentendido mas o outro rapaz, parecendo saber alguma coisa falou-nos num muito mau e limitado português, de homens-leão, espíritos da floresta que castigavam os homens maus e os que faziam mal à floresta ou uns aos outros. Eram leões-fantasmas, antepassados que tomavam esta forma para avisar ou punir... enfim coisas que podiam servir muito bem a diversos fins, explorando a crendice e superstição de pessoas simples. Ouvi atentamente e contei o que sabia destas e outras lendas, sempre de forma séria. O Arruéque, que eu vigiava disfarçadamente, não perdeu pitada mas sem se desarmar ou manifestar.

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco

(continua...)

sábado, 19 de maio de 2012

[são tomé e príncipe] na roça com os tachos









A Roça São João, gerida por João Carlos Silva, o cozinheiro do programa "Na Roça com os Tachos", grande embaixador da cultura Santomense. Um almoço inesquecível... Na verdade eu sou uma fácil (as meninas do Técnico quase que me podiam acusar de dumping): é preciso bem pouco para me fazer feliz!
(Roça São João, São Tomé e Príncipe)

[outras palavras] as batidas ao leão


Foto de leão da Gorongosa... Daqui.


(continuando...)

Algumas destas aldeias e vilas remotas, perdidas no mato, têm vindo a ser flageladas pelos leões. As pessoas só se deslocam em grupos e de dia, as casas têm altas cercas, e há mesmo aldeias abandonadas pelos habitantes que se concentram nas sedes, como pude constatar.

Nos meses anteriores à nossa passagem por Mocímboa, haviam os leões morto 47 pessoas confirmadas, segundo relato e informação das autoridades, que recebiam estas queixas. E os elefantes ainda eram piores, pois comendo e destruindo as lavras semi-abandonadas pelos seus cultivadores, refugiados nas aldeias maiores pelo medo ao leão, ameaçavam provocar a fome nesta região. Foi nesse sentido que solicitaram ao meu amigo Manuel Carona que os localizasse e abatesse! A carne seria da população e o marfim recolhido pelo serviço da fauna, numa medida de gestão de super-abundância.

Durante as nossas deambulações na região, atrás dos elefantes, começaram, a partir de certa altura, a contar-nos episódios com leões! Víamos as suas pegadas em volta das habitações, seguimo-los no mato e contactámos directamente com a morte de um rapaz, naquilo que pode ser viver, realmente, no mato.

No último dia em que fomos tentar perseguir um leão agressor, tendo saído de noite, regressámos à casa na praia ao fim da manhã, frustrados, cansados e aborrecidos pelo insucesso e dificuldade da empresa num mato muito cerrado com chão seco, duro e cheio de folhas, onde o leão não deixa rasto. A melhor prática era a visita regular e de madrugada às carcaças dalgum elefante abatido, donde todavia não comiam senão os macondes, (os macuas islamizados não comem elefante) mesmo depois de esta já estar bem "maturada", com oito dias de exposição e larvas aos metros cúbicos, cujo cheiro se sentia a 300 metros.

- "Maconde come tudo o que não lhe dá os bons dias”, dizem os macuas!

No caminho, por razões alimentares e para júbilo do Sverenga, um caçador local, fiz com a .458 um doble aos facocheros que sendo muito abundantes também causam prejuízos nas culturas, por sinal um deles bem bom de dentes! Quando chegámos a casa, encontrámos ali um jovem casal europeu no melhor estilo “eco-hippie-ONG”, típicamente ataviados de lenços e camisas largas indianas, sandálias e mochila, ela de farta cabeleira crespa apanhada, cheia de missangas, búzios e ornamentos como uma selvagem urbana, e ele de cabelo e barba curtos mais os fatais óculos redondos de armação em metal. Não percebemos quem eram ou de onde vinham mas andavam a passeio segundo diziam. Ela falava em francês, ele num português com sotaque abrasileirado. Após confirmarem que os poderíamos albergar e alimentar, a rapariga, pálida, reprovadora e julgo que não vegetariana porque depois e talvez por caída na realidade de onde estavam e não haver por ali restaurante nem supermercado fez-se ao bife dos facos, inquiriu imediatamente com a desfaçatez de quem se julga dono do mundo, porque é que “estávamos a matar animais”? O Manel Carona, com pouca paciência, resumiu o que se estava a passar. A jovem trocou imediatamente o ar seguro de missionária convicta por uma expressão de pânico, e perante confirmação das pessoas que ali se encontravam, declarou decidida ao companheiro que acabava ali o passeio e não abandonaria as paredes do pátio nos dois dias em que ficariam à espera da boleia de regresso. Nós, os "maus", partimos naquela tarde para Montepuez.

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco