A meio da tarde, o avô entrou novamente na enfermaria. Pediu novamente a palavra e sentou-se.
– Sim, papá?
– Vai continuar a dar “choro” à criança?
– Sim, claro. Até ele ficar melhor.
– Isshhh… – abanava a cabeça em desaprovação.
– O que foi, papá?
– Isshhh… criança sofre – lamentava-se tristemente.
– Papá, o seu neto é muito bonito. E tem muita vontade de viver! Ele está a lutar muito para continuar vivo no meio desta doença. Não há outra maneira de tratar o menino a não ser com soro!
– Sim, irmã. Mas criança sofre com “choro”!
– O soro é muito importante. Ele está a perder muitos líquidos, temos de lhe dar a mesma quantidade que está a perder – eu tentava explicar o melhor que conseguia. Pausadamente. Procurando palavras simples. Mas será que isto não é intuitivo? Será que não se consegue perceber estes conceitos sem se ter estudado Fisiologia?
– Mas criança sofre… Não tem outro tratamento? Quinino?
– Não, quinino é para a malária. Menino tem diarreia.
– Mas não tem quinino de diarreia?
– Não, papá. Remédio de diarreia é soro mesmo.
– Isshh… criança sofre…
– Sim, está a sofrer, é verdade, mas vai morrer se não lhe dermos soro.
– Irmã, mas irmã não vê que quando lhe dá “choro”, a criança sofre e tem mais diarreia?
– Como?!
Foi então que me ocorreu uma ideia. Absolutamente improvável, mas plausível. Pouco tempo antes, ainda em Lisboa, tinha lido uma notícia no jornal que relatava que vários voluntários da Cruz Vermelha tinham sido mortos numa aldeia no norte de Moçambique, acusados de propagar a cólera quando estavam a distribuir cloro pela população para desinfetar a água. Um sociólogo, chamado a comentar o assunto, falava da importância das crenças e da linguagem. Ele aconselhava as pessoas a falar em lixívia porque, segundo a sua opinião, o que motivara aqueles crimes tinha sido em parte a confusão fonética entre “cólera” e “cloro”. A notícia parecera-me absurda, mas enfim… tudo era possível… E agora o avô dizia insistentemente a palavra “choro” e não “soro”… seria possível? Resolvi fazer a experiência.
– Mas papá, isto é “soro”, não é “choro”! Isto é medicamento. É remédio.
Pareceu surpreendido.
– Af’nal? Soro é o quê?
– É remédio para a diarreia. Remédio líquido.
– Ah… mas menino chora quando toma. E tem mais diarreia.
– Mas diarreia não vai parar se ele deixar de beber, não é o soro que lhe está a provocar a diarreia. E ele chora porque quer mais! Ora pergunte-lhe se quer esta água.
Arrisquei demasiado. Deixar assim a decisão de um tratamento nas mãos de uma criança de dois anos... Por sorte, ele respondeu que sim à pergunta. A face do ancião iluminou-se. De repente tinha compreendido tudo, e o que eu dizia fazia sentido. Eu também finalmente compreendia um pouco melhor a atitude da mãe. Abracei-a. Pobre mamã… Ela tinha-me visto fazer mal ao seu menino durante horas seguidas e chorara em silêncio a dor que era assistir, impotente, ao menino a sofrer às minhas mãos… Pedi ao avô para lhe explicar o que eu dissera, mas fez-se desentendido. Voltou para o pátio e vi-o falar com os restantes homens da família. Aquilo era um assunto “importante”, era preciso analisar a questão e deliberar em conformidade. Era um assunto de homens! As mulheres só tinham de cuidar das crianças e do resto da família.
(continua...)
É isto....é isto....
ResponderEliminarVocê vai conseguir...
O menino e o avô vão ajudá-la!
Maria Tereza
Xi....é preciso saber como lidar , não deve ser facil mesmo.
ResponderEliminarDesejo que tudo corra bem e esse menino em breve esteja curado
Conte... conte mais e depressa!
ResponderEliminarótimo blog, parabéns...
ResponderEliminarLembro-me demasiado bem desse episódio do cloro.Em África a semântica é muito importante assim como a crença.
ResponderEliminarLembro-me da senhora que cozinhava para mim na Guiné ter um cachorrito que, pobre bicho, tratava mal. Um dia falei com ela e perguntei-lhe se sabia o que era reencarnação e disse-me que o cão podia ser o avó dela ( eu sei é ardiloso). No ano seguinte quando voltei lá estava o animal, razoavelmente alimentado, sem feridas e sem sinais de maus tratos.
Em Outubro passarei duas semanas em Nampula. Talvez possamos conversar .