O ameaçador casalinho de perus de Iapala...
(Iapala, Nampula)
(continuando...)
Acordei cedo, mas obriguei-me a ir primeiro tomar o pequeno-almoço. Já sabia que quando começasse a trabalhar não voltaria a parar até me virem buscar para o almoço…
Fui direita à Pediatria, passando ao largo dos perus que, naquele momento, perseguiam os primeiros doentes da manhã que chegavam à urgência. O menino estava na sua cama, rodeado pela família, que o olhava com o mesmo olhar que eu vira à família do menino de Murralelo. Como se velassem um cadáver. Era o único que ainda estava no berço. Todos os outros meninos, na capulana das respectivas mães, já cirandavam pelo pátio. O menino, tal como eu temia, estava pior. Cada vez mais desidratado e com a respiração superficial dos doentes em agonia. Os lençóis da cama estavam encharcados por aquele líquido sem cheiro que lhe saía do corpo. A diarreia tinha continuado e ele não tinha voltado a beber líquidos. O soro continuava intacto, no mesmo nível em que o tinha deixado. Mas controlei-me.
– Mamã, deu soro à criança?
– Está a negar…
– Posso dar eu?
Encolheu os ombros… Dei-lhe soro novamente. Abriu a boca sem dificuldade e bebeu tudo. Repeti o processo.
– Vê, mamã? Ele não nega!
Fiquei ali um bom bocado até serem 7 horas da manhã, tempo de ir receber as ocorrências e ouvir os “inventários”, sempre iguais, sem tirar nem pôr. O enfermeiro que tinha estado ao serviço durante a noite não mencionou qualquer ocorrência. Tudo normal. Medicação administrada. Doentes a evoluir como previsto. Respirei fundo, a ver se não perdia completamente a cabeça logo no segundo dia…
– O menino do berço 3 está com uma diarreia grave. Parece cólera. E a mãe, por qualquer razão, não lhe tem estado a dar soro.
– Se calhar não preparou soro como nós dissemos, doutora – respondeu o director.
– Sim, é verdade, não preparou. Mas quando vi que não tinha preparado, fui a casa e preparei eu própria e dei-o à mãe. Mas ela mesmo assim não lhe deu.
Olharam-me como quem pensa: “Mas onde é que esta estacionou a nave?”
– Ah, doutora, os doentes nunca fazem nada do que nós dizemos. É escusado.
– Mas porquê?
– São do povo. É esta a nossa cultura. Não compreendem o que é medicamento.
– Então é preciso ficar ali e ver se dão os medicamentos aos meninos.
– Doutora, não podemos estar sempre com o mesmo doente. Temos o hospital inteiro para cuidar. E os doentes nunca estão nas camas, são muito indisciplinados!
Em parte era verdade. Só havia um único enfermeiro por turno. Mas perceberia rapidamente que não estavam assim tão sobrecarregados com trabalho. Os enfermeiros passavam a maior parte do tempo sentados debaixo do cajueiro. Limitavam-se a distribuir a medicação à hora regulamentar, sentados na sua sala de trabalho, com os doentes em fila por ordem do número da cama. E se eu fizesse o que quer que fosse eles iam-se embora imediatamente: ora pois, se eu ia trabalhar, eles deixavam de ser necessários ali, como está bem de ver…
– Tudo bem, vamos trabalhar – disse o director.
– Sim, vamos – respondi –, mas depois da visita nas enfermarias não vou para a urgência. Ontem deixaram-me lá sozinha. Depois vou para a enfermaria de Pediatria cuidar do menino.
– Sim, doutora.
A meio da manhã voltei para a cabeceira do menino. Felizmente era o único doente verdadeiramente grave do hospital e podia dedicar-me a ele. Assim que me viu, a mãe pegou na seringa e fingiu que estava a dar soro ao filho. Mas era óbvio que não lhe tinha dado uma gota que fosse.
– Mas porque é que não lhe dá soro, mamã? Não vê que ele vai morrer se não lhe der?
Não respondeu. Peguei eu própria na seringa e continuei a dar-lhe soro. O resto da família saiu, deixando-nos às duas e ao menino ali… O director entrou na enfermaria ao fim da manhã, com um ar de gozo. Estava curioso de ver o que estaria eu a fazer ali há tanto tempo.
– Doutora, que está a fazer?
– Estou a dar soro ao menino.
– Isshhh… É escusado, doutora. A mamã não vai dar soro à criança.
– Por isso mesmo estou a dar eu.
– Mas menino já está muito grave. Vale a pena ir morrer a casa…
– Sr. Sousa! Temos de tentar.
– Está bem. Doutora é que sabe.
O menino, ainda agarrado à vida, continuava a abrir-me a boca para o soro e a beber como se não houvesse amanhã. Mas a diarreia não abrandava. Comecei a estranhar. Já estava a fazer 24 horas que tinha sido internado e que eu lhe tinha prescrito o antibiótico. Já era tempo de estar a melhorar… Mas enfim, mais tarde ou mais cedo o antibiótico começaria a fazer efeito e haveríamos de ganhar terreno naquela batalha contra a desidratação.
(continua...)
deixa-me adivinhar: ou não lhe deram o antibiotico, ou estavam a dar "remédio" do curandeiro, ou era caso de xipoco e então "não havia nada a fazer"?!?
ResponderEliminarBeijos da cidade das acácias.
Era tudo isso, minha querida... e mais alguma coisa!
ResponderEliminar(um) beijo de mulata