terça-feira, 1 de maio de 2012

[iapala] uma noite absolutamente desconcertante...

(continuando...)

Voltei ao hospital, empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido à intimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
  
Dirigi-me à enfermaria da Pediatria, que já tinha a porta fechada. Os familiares dormiam cá fora, deitados sob o alpendre, as mulheres cobertas com capulanas, os homens cobertos com mantas ou sem nada. Passei cuidadosamente entre as pessoas, tentando não acordar ninguém, mas percebi que não dormiam. Estavam apenas deitados porque não havia luz e portanto não havia mais nada que fazer. Na enfermaria, deitadas nos berços, sob as redes mosquiteiras abertas, as crianças dormiam, embaladas pelo doce cantar de duas ou três mamãs, a várias vozes. Sempre a várias vozes! Parece que não há outra maneira de cantar nesta terra se não da forma mais bonita e harmoniosa que existe… Não compreendo o que dizem. Semanas mais tarde haveria de aprender a música e trauteá-la para uma das irmãs moçambicanas, que me traduziu esta música tradicional macua que as mamãs cantam para adormecer os filhos:

“Quero agradecer-te por teres nascido
dorme, meu amor, fica tranquilo
porque enquanto estiveres a dormir
eu fico aqui a repetir o teu nome.”

Que poema lindo! A mãe do meu menino já dormia, recostada na cama do filho. Detive-me um pouco a observá-lo. O menino dormia também, mas tinha a respiração acelerada de quem tem uma desidratação grave e está em sofrimento, prestes a entrar em choque… A mãe acordou sobressaltada com a minha presença, parecia assustada por me ver ali.
– Como está a criança?
– Ainda*…

Olhei para o chão. Ao lado da cama, o soro que tinha preparado estava praticamente intacto! A mãe não lho tinha dado! Não percebia o que se passava, palavra… Resolvi jogar ao ataque, com o meu ar paternal-zangado nº 45:
– Mamã, tem de dar soro ao menino, senão ele vai morrer!
– Menino não quer… Tem dor di barriga – agora, que já tinha um pouco mais de confiança em mim, começava a responder às minhas perguntas. Afinal entendia Português. E falava um bocadinho…
– Tem de insistir! Ele morre se não lhe der!
– É custoso… – articulou com dificuldade.
Peguei eu própria no soro e na seringa que tinha dado à mãe e acordei o menino. Tomou tudo o que lhe dei num ápice. Gemeu a seguir, voltando-se para mim, e teve nova dejecção diarreica. Ofereci-lhe mais soro e abriu a boca de imediato. Não tive dificuldade nenhuma em dar-lhe mais de meio litro quase de seguida. De cada vez que eu fazia uma pausa, com medo que ele vomitasse, recomeçava a gemer. A mãe chorava em silêncio, como se estivesse a assistir, impotente, ao sacrifício do seu filho. Nem eu nem ela compreendíamos as razões de cada uma… Ela não percebia a razão da minha zanga, eu não percebia como é que ela, tendo soro à disposição, não o dava ao filho e o deixava morrer nos braços! As outras mães tinham acordado e olhavam-nos surpreendidas, em silêncio. A família do menino tinha entrado e olhava-me também, com um ar impenetrável, sem dizer palavra. Mas o que é que se estava a passar? Ao cabo de uma hora, o menino tinha bebido quase três quartos do soro e chorava com mais vigor.
– Se calhar quer peito, mamã. Ponha-o à mama…

A mãe não se moveu. Coloquei-o eu própria ao peito da mãe e mamou com alguma força, adormecendo em seguida. A mãe chorava, sempre em silêncio. Eu continuava sem perceber o que quer que fosse. Fui a casa preparar mais soro e entreguei-o à mãe. 

– Sempre que o menino acordar tem de lhe dar!
– Sim, irmã.
O pai, pela primeira vez dirigiu-me a palavra:
– Obrigado!
– De nada, papá. Até amanhã, boa noite.
Fui-me deitar, preocupada e completamente desconcertada com o que tinha acabado de acontecer. O que teria aquela mãe? Mil e uma hipóteses absurdas me passavam pela cabeça. Acabei por adormecer de exaustão.

* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".

(continua...)

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