Voltei ao hospital,
empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido à
intimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
Dirigi-me à enfermaria da Pediatria, que já tinha a porta fechada. Os
familiares dormiam cá fora, deitados sob o alpendre, as mulheres cobertas com
capulanas, os homens cobertos com mantas ou sem nada. Passei cuidadosamente
entre as pessoas, tentando não acordar ninguém, mas percebi que não dormiam.
Estavam apenas deitados porque não havia luz e portanto não havia mais nada que
fazer. Na enfermaria, deitadas nos berços, sob as redes mosquiteiras abertas,
as crianças dormiam, embaladas pelo doce cantar de duas ou três mamãs, a várias
vozes. Sempre a várias vozes! Parece que não há outra maneira de cantar nesta
terra se não da forma mais bonita e harmoniosa que existe… Não compreendo o que
dizem. Semanas mais tarde haveria de aprender a música e trauteá-la para uma
das irmãs moçambicanas, que me traduziu esta música tradicional macua que as
mamãs cantam para adormecer os filhos:
“Quero
agradecer-te por teres nascido
dorme,
meu amor, fica tranquilo
porque
enquanto estiveres a dormir
eu
fico aqui a repetir o teu nome.”
Que poema lindo! A mãe do
meu menino já dormia, recostada na cama do filho. Detive-me um pouco a
observá-lo. O menino dormia também, mas tinha a respiração acelerada de quem
tem uma desidratação grave e está em sofrimento, prestes a entrar em choque… A mãe acordou sobressaltada com a minha presença, parecia
assustada por me ver ali.
– Como está a criança?
– Ainda*…
Olhei para o chão. Ao lado
da cama, o soro que tinha preparado estava praticamente intacto! A mãe não lho
tinha dado! Não percebia o que se passava, palavra… Resolvi jogar ao ataque,
com o meu ar paternal-zangado nº 45:
– Mamã, tem de dar soro ao
menino, senão ele vai morrer!
– Menino não quer… Tem dor
di barriga – agora, que já tinha um
pouco mais de confiança em mim, começava a responder às minhas perguntas.
Afinal entendia Português. E falava um bocadinho…
– Tem de insistir! Ele
morre se não lhe der!
– É custoso… – articulou
com dificuldade.
Peguei eu própria no soro
e na seringa que tinha dado à mãe e acordei o menino. Tomou tudo o que lhe dei
num ápice. Gemeu a seguir, voltando-se para mim, e teve nova dejecção
diarreica. Ofereci-lhe mais soro e abriu a boca de imediato. Não tive
dificuldade nenhuma em dar-lhe mais de meio litro quase de seguida. De cada vez
que eu fazia uma pausa, com medo que ele vomitasse, recomeçava a gemer. A mãe
chorava em silêncio, como se estivesse a assistir, impotente, ao sacrifício do
seu filho. Nem eu nem ela compreendíamos as razões de cada uma… Ela não
percebia a razão da minha zanga, eu não percebia como é que ela, tendo soro à
disposição, não o dava ao filho e o deixava morrer nos braços! As outras mães
tinham acordado e olhavam-nos surpreendidas, em silêncio. A família do menino
tinha entrado e olhava-me também, com um ar impenetrável, sem dizer palavra.
Mas o que é que se estava a passar? Ao cabo de uma hora, o menino tinha bebido
quase três quartos do soro e chorava com mais vigor.
– Se calhar quer peito,
mamã. Ponha-o à mama…
A mãe não se moveu.
Coloquei-o eu própria ao peito da mãe e mamou com alguma força, adormecendo em
seguida. A mãe chorava, sempre em silêncio. Eu continuava sem perceber o que
quer que fosse. Fui a casa preparar mais soro e entreguei-o à mãe.
– Sempre que o menino acordar tem de lhe dar!
– Sim, irmã.
O pai, pela primeira vez
dirigiu-me a palavra:
– Obrigado!
– De nada, papá. Até
amanhã, boa noite.
Fui-me deitar, preocupada
e completamente desconcertada com o que tinha acabado de acontecer. O que teria
aquela mãe? Mil e uma hipóteses absurdas me passavam pela cabeça. Acabei por
adormecer de exaustão.
* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".
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