(ontinuando...)
Ao início da tarde fiz uma pausa para o almoço. Saí do hospital pela porta da frente e passei a uma distância próxima mas segura de um dos perus (a fêmea, percebi depois), que estava sozinha e voltada para o outro lado do alpendre. De repente, vi um objeto enorme cair sobre mim e só tive tempo de me desviar do “marido”, que estava empoleirado sobre o telhado da sala de esterilização e fez um voo picado sobre mim quando passei pelo “seu território”. Foi um susto valente e tentei enxotá-lo, naquela confusão de asas e penas esvoaçantes, mas ele estava de tal forma furioso, que achei por bem acelerar o passo e afastar-me rapidamente daquele cenário de bélico, antes que alguém se magoasse! Que bizarria... Um casal de perus ressabiados permanentemente estacionado à porta do hospital… Mas não haveria ninguém que os removesse dali?
Almocei à pressa e voltei o mais rápido que pude para junto do menino, que dormitava com uma respiração um pouco mais tranquila ao colo da mãe. Ao seu lado, junto da cama, havia uma cara nova. Era o avô materno, que tinha chegado da aldeia para ver o que se passava com o neto.
– Boa tarde.
– Boa tarde, irmã.
Assim que me viu, o menino agitou-se. Recomeçou a gemer. Voltei a dar-lhe soro. Sempre que eu parava ele gemia e reclamava por mais. A família voltou a sair da enfermaria, deixando-me com a mãe, que não arredava pé da cabeceira do filho. Pouco depois, o avô voltou para junto de nós. Pediu a palavra com um gesto e sentou-se.
– Irmã…
– Sim?
– Irmã, peço alta para esta criança.
– Como?!
– Irmã, estou a pidir alta do hospital. Queremos ir para casa.
– Mas a criança está muito doente, os senhores não a podem levar assim, ele vai morrer no caminho se se forem embora agora!
Calou-se, pensativo. Procurava outros argumentos.
– Irmã… não ficou mais família nenhuma em casa. Podemos ser roubados a qualquer momento. Temos de voltar ou então perdemos tudo.
– Mas o senhor pode voltar. O menino e os pais vão depois, quando ele estiver melhor.
– Mas irmã não vai curar o menino…
– Vou pelo menos tentar. Esta mamã é sua filha?
– É a minha filha, sim.
– Ela é testemunha de que ainda não saí do lado desta criança.
– Sim, eu sei.
– Eu estou a tentar tratá-lo!
Silêncio. Ganhava fôlego para novo argumento:
– Irmã, mas esta também é uma doença que vem da trad’ção. Irmã não vai conseguir curar o menino e ele vai morrer aqui.
Então era isso? A questão era morrer ali no hospital e não propriamente morrer… Tinha aprendido dias antes com a irmã Lurdes que na tradição macua, se as pessoas morressem num local distante de onde tinham nascido, os seus espíritos não encontrariam o caminho de volta e poderiam transformar-se em espíritos malignos, que atormentariam a família até ao fim dos seus dias.
– Papá, escute uma coisa: prometo-lhe que se o menino morrer eu vou levá-los a casa! Dou-lhe a minha palavra.
Pensou um pouco. Anuiu, por fim, com um gesto e saiu novamente para o pátio. Continuei a dar soro ao menino, enquanto as dejeções líquidas continuavam. A tia de vez em quando entrava para substituir os panos e as capulanas que serviam de fralda. Ofereci-me para levar os panos ao nosso empregado para ser ele a lavá-los. Estava em pânico que a família os fosse lavar ao rio e desencadeasse um surto de cólera por ali também. À cautela, de manhã tinha levado um frasco de lixívia para desinfetar as mãos dos familiares e a cama, mas todo o cuidado era pouco. Assentiram, com um esgar de surpresa, sem coragem de recusar. Quando a esmola é grande o santo desconfia...
(continua...)
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