segunda-feira, 31 de maio de 2010

[welcome to mozambique] as pontes




aqui falei disto, eu sei, mas vou falar outra vez, que regressar é a palavra de ordem.

Primeiro dia em Iapala, Nampula (Moçambique).

A Irmã Lurdes:
- Deves estar com vontade de começar a trabalhar, mas amanhã é dia de descanso e acho que deve ser bonito para ti ires à festa da Primeira Comunhão dos meninos da aldeia de Murralelo...

(Rica vida! Não há como chegar com dois dias de atraso, a um sábado e começar logo por descansar no domingo...)
– Ah, claro! Vai ser o meu curso rápido de inculturação... De qualquer maneira sem si para me orientar no hospital não faz sentido começar. E posso perfeitamente só começar na segunda-feira.

– Mas vai ser muito difícil ir de carro. Parece que a estrada está intransitável porque uma das pontes caiu com o temporal da semana passada. E tão cedo não vai ser reparada porque as pessoas estão todas muito ocupadas. Agora é o tempo de reconstruir as casas, que ficaram danificadas na estação das chuvas e é um trabalho muito duro.

– Mas todas as famílias estão a reconstruir as casas agora?

– Sim, todos os anos têm de reconstruir o telhado de capim e, de cinco em cinco anos, às vezes até menos, têm de construir uma nova casa, porque as paredes, como são feitas com tijolos de terra crua, ficam fragilizadas com as chuvas e as casas correm o risco de ruir.



– Quer dizer que nesta altura do ano não é possível empregar trabalhadores para as obras públicas?

– Como? Ah, não, as pontes não são obras públicas, que ideia... São os habitantes das aldeias que se organizam para as construir com bambus e troncos de árvore. Isto para eu e os padres podermos passar com os carros para irmos às celebrações, às campanhas de vacinação e para transportarmos doentes para o hospital.

– Só vocês é que passam por ali?

– Bem, às vezes ainda passam outros carros de comerciantes que vão comprar tabaco e algodão aos produtores.

– Mas são mesmo pontes artesanais? Só com troncos e bambu, mais nada?

– Sim, mas são bastante resistentes...

– Credo! Não podem ser assim tão resistentes, se uma caiu com uma trovoada da estação seca... Não tem medo de lá passar?

– Confesso que sim, sobretudo quando a ponte é nova ou quando o carro está muito carregado, nunca se sabe o que vai acontecer... Mas até agora nunca tivemos problemas. Há uma aldeia no fim da Missão onde não íamos nunca vacinar nem havia missa porque não tínhamos como lá chegar. Um dia recebemos um pedido do régulo para estendermos a campanha àquela aldeia, que eles haveriam de se encarregar de construir os acessos. O primeiro a ir lá foi o Padre, que na última ponte deixou o carro e foi a pé, carregado com os apetrechos todos da missa porque não teve coragem de passar na ponte com o carro. Estava a aldeia em peso a assistir e ficaram desconsolados porque tinha sido um esforço enorme para eles construir a ponte. Mas realmente aquela ponte assustava. É uma zona tão seca que nem os bambus chegam a crescer...

- Credo!

- No mês seguinte fui lá na campanha de vacinação, mas era impossível levar a arca das vacinas às costas e, sobretudo, assim não podia transportar os doentes para o hospital. Fiquei um bom bocado a pensar se havia de arriscar ou não, mas lá pensei “Que seja o que Deus quiser, é de certeza aqui e agora que Deus está comigo!” e lá passei, a ouvir os paus todos a estalar. Foi uma algazarra digna de se ver, toda a gente a fazer um alarido descomunal! O Padre não tinha passado, mas a Irmã tinha atravessado a ponte! Já era uma aldeia com Padres, Irmãs e Vacinas! Foi mesmo muito importante terem feito os acessos. Até já começámos a fazer uma escola comunitária!

– É impressionante!

– Mas às vezes as pontes de bambu são as que menos assustam. As de troncos é que metem mais impressão porque é preciso outra pessoa sair para nos ajudar a acertar as rodas sobre os troncos, porque senão as rodas podem cair nos intervalos e o carro fica encravado... Felizmente são raras...

– Ai, que isto vai de mal a pior! Acho que já não quero ir... A ponte que caiu era uma dessas?

– Era. Mas não te preocupes, que nunca nos aconteceu nada. Intimida, mas se tivermos cuidado corre bem.

– Como é que se chama a aldeia outra vez?

– Murralelo. O Sr. Padre já lá está e vai ter de dar uma volta grande para regressar, mas nós de carro não chegamos de certeza a tempo da missa... Só se não te importares de ir de comboio... Há uma estação por ali perto e podemos pedir ao maquinista que pare o mais perto possível da aldeia... Depois voltamos com o Sr. Padre.

– Claro que não me importo de ir de comboio. E também não me importo de voltar de comboio, se a Irmã depois tiver pressa de regressar.

– Não, não podemos voltar de comboio. Só há uma linha e um único comboio. Nalguns dias faz a viagem num sentido e nos outros dias regressa. Só que muitas vezes não é em dias certos porque há muitos atrasos quando o comboio fica retido por alguma razão, temos sempre de nos informar onde está o comboio e para onde vai quando queremos fazer uma viagem. Nunca é certo...

– Não acredito... Mas é fácil saber isso? Aqui a comunicação é tão difícil...

– Sim, é fácil porque a vida de metade das pessoas daqui gira em torno do comboio. Vais ver amanhã, até vai ser interessante para ti. É das informações que mais corre de boca em boca. Mas vamo-nos deitar que amanhã vamos ter um dia longo...

(continua...)

[a minha vida nunca daria uma série americana]

Lost em cento e vinte e um episódios... Isso, meus amigos, é só para quem tem alguma testosterona no cérebro. Infelizmente, para me perder é quase sempre uma questão de segundos...

[inspiração para um não-reencontro] et in arcadia superego

Que força estranha me impede de te ligar?

domingo, 30 de maio de 2010

[inspiração para um reencontro] et in arcadia id

Lady Croom - ... I can say with the poet: Et in Arcadia ego! Here I am in Arcadia!
Thomasina - Yes, mama, if you would have it so...
Lady Croom - Is she correcting my taste or my translation?

Tom Stoppard in Arcadia

[a minha vida dava um filme cigano]

Serviço de Urgência há duas semanas. Uma menina cigana com sinais meníngeos, febre elevadíssima, muito prostrada. Mãe cigana muito jovem e muito assustada. [Isto promete...] Explico-lhe, com muito cuidado, que temos de "tirar líquido da espinha" à menina para ver se é mesmo meningite.

- Mas isso dói, Senhora Doutora?
- É mais ou menos como fazer uma epidural. Quando teve a sua menina fez epidural?
- Sim.
- E não doeu muito, pois não?
- Não. É a mesma coisa?
- Sim, não se preocupe. O problema é que ela tem de ficar quieta e por isso temos de a agarrar. Ela vai ter medo.
- Está bem.

[Bem, isto se calhar é capaz de nem correr muito mal...] Levamos a menina para a sala de tratamentos com a jovem mãe assustada, a chorar num choro meio carpido, meio gemido, meio cantado [o que daria, bem contadinho, um choro e meio, mas escusam de reclamar, que isto é apenas um blogue, não é contabilidade]. Quando está tudo a postos convido-a a sair da sala porque é um procedimento "que faz muita impressão", mas ela recusa. Deixo-a ficar, sob o olhar reprovador do enfermeiro-chefe, que achava que seria melhor a mãe sair.

Durante a punção lombar a menina debate-se, tenta espernear e a mãe descontrola-se. Sob o olhar de "Eu bem avisei!" do enfermeiro-chefe, a jovem mãe grita, chora, arrepela os cabelos, chama-me nomes. Só não me agride porque estou resguardada entre dois enfermeiros e a marquesa. A punção, felizmente, corre sem problemas. [De onde se constata que se a situação bem prometia, melhor cumpriu, que a situação é uma situação cigana, pobrezinha mas honrada, ora essa.]

- Mas porque é que está tão aflita, mãe? Eu prometo-lhe que vamos cuidar bem da sua menina.
A mãe cai em si e começa a chorar mais controlada. [Obrigada, minha Nossa Senhora dos Aflitos, a ver se isto 'inda se compõe...]
- Também estou aqui sozinha... - desabafa - vou telefonar à minha mãe.
- Isso, vá chamar a sua mãe - respondo, solícita -, olhe que nós também sabemos que isto é dose, não deve passar por tudo sozinha...

[O olhar do enfermeiro-chefe, agora absolutamente furibundo, faz-me perceber que se calhar acabei de perder mais uma oportunidade para ficar calada...]

- Muito bem, Doutora! Agora, para além de termos uma menina com meningite para cuidar, vamos ter de pôr a polícia à porta para não deixar a família toda invadir o serviço.
- Mas, Sr. Enfermeiro, ela é tão jovem e estava tão desnorteada... Metia dó. [Bem... nada me garante que a mãe vai conseguir acalmá-la... Realmente em matéria de histeria, pior do que uma cigana, só mesmo uma família inteira de mulheres ciganas... O melhor é não dizer mais nada.]

O líquido sai límpido, como cristal de rocha. Um suspiro de júbilo de toda a equipa. A menina fica muito melhor depois da punção. Diz que a cabeça deixou de doer, quer deitar-se e adormece tranquilamente. É uma meningite viral!
Vou ter com a mãe e dou-lhe a boa notícia, que a filha ficou logo muito melhor e que a meningite afinal parece ser causada por um vírus. Uma longa explicação sobre o que é que isso quer dizer...

A mãe, felizmente, percebeu a explicação e acreditou em mim, porque dali a pouco veio uma enfermeira dar-me os parabéns por ter conseguido acalmar a mãe:
- Ouvi-a dizer ao telefone que a menina tinha uma "mingite" na cabeça, mas que era fraca e por isso não era preciso vir a família toda!

sábado, 29 de maio de 2010

[a riqueza de moçambique] a força que um sorriso pode ter!



Eu - Quantos filhos tem, papá?
Pai de um doente meu (grande ar de desalento) - Só tenho cinco, Irmã...
Eu (surpreendida) - E cinco não chegam?!
Pai do meu doente (ainda mais triste e um pouco mais surpreendido do que eu) - Oh, cinco é uma pobreza, Irmã... A nossa riqueza são os filhos!

Mesmo que não tenham nada com que lhes dar de comer, mais um filho é sempre bem vindo... E isto não é a visão romântica de um homem sensível que encontrei pontualmente enquanto trabalhava. Isto é uma frase repetida mil vezes em todo o lado. É a cultura de todo um povo!)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

[alhos e blogalhos] valha-me nossa senhora do google

Isto tem ficado divertido por aqui nos últimos dias... Desde que vos contei a história da placa, as pesquisas no google que cá têm vindo dar (a par com os horny bastards que continuam na sua senda em busca de mulatas selvagens) têm sido do tipo:

- Beijar com prótese dentária é possível? (Esta é fácil, meu amigo!)
- Placa dentária torta (Isso é desagradável, mas uma placa dentária partida é muito pior, ora leia só alguns posts abaixo...)
- Caiu-me a placa a meio do jantar poema (Errr... Posso tentar fazer um poema com isto, é uma questão de passar cá dentro de uma semaninha ou duas, que já deve estar pronto. O mote é profundo e poético. E "Caiu-me a placa a meio do jantar" é um verso decassílabo heróico. Tem tudo para correr bem. Ai não tem tempo para esperar? Tinha mesmo de ser ontem? Bem, então o que não tem remédio remediado está...)

Pronto, era isto.

[welcome to mozambique] andar na estrada

Fevereiro de 2006. Primeira ida ao Gilé, na Zambézia (Moçambique) com a minha amiga A., a melhor companheira de viagem que se pode ter. Ela era um GPS onde não podia haver GPS. Tinha um sentido de orientação absolutamente fenomenal*: mesmo sem estradas e sem caminhos visíveis, a A. tinha como referência os embondeiros, os troncos e as raízes do caminho para saber onde virar para determinada aldeia. E tudo isto sem pestanejar, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Durante a viagem tivemos um furo num pneu (imaginem só, duas gajas e um pneu no meio do mato!), mas a famosa afabilidade e solicitude do povo moçambicano mais uma vez entrou em acção. As primeiras pessoas a aparecer foram as mulheres que andavam por ali a cultivar a machamba, com os filhos amarrados às costas como uma segunda pele. Mas, chamados pelas respectivas, logo compareceram também vários cavalheiros que nos mudaram o pneu ainda mais rápido do que eu tratei dois dos filhos deles que estavam doentes. No final ainda agradeceram a pequena gratificação que lhes demos e a medicação dos meninos... É um país abençoado!

O problema é que, durante a trovoada do dia anterior, uma ponte tinha desabado, obrigando-nos a um desvio considerável. Assim, chegámos ao Gilé com várias horas de atraso e o depósito de gasóleo a menos de metade, preocupadas porque teríamos de encontrar um posto de abastecimento razoavelmente próximo e de confiança. Não é fácil, como sabe quem já lá passou. Por vezes os postos de abastecimento vendem gasóleo adulterado com água, que faz gripar o motor poucos quilómetros depois, arriscando-nos a ficar no meio da savana, onde não há aldeias, nem rede de telemóvel. E muito menos reboques...

Mas, assim que chegámos, a Irmã Lurdes descansou-nos:
- Não se preocupem. Aqui no Gilé há uma bomba de gasolina. E deve ter combustível quase de certeza, porque soubemos que chegou esta semana!

(Ai que nos valesse São Cristóvão, que tínhamos chegado a outro planeta...)

*Saibam os meus estimados leitores que a minha lendária ausência de sentido de orientação poderia tornar, por exemplo, o meu regresso a casa numa cidade estranha mais improvável do que o regresso de D. Sebastião, mas isso não transforma, a meus olhos, uma pessoa que sabe ver mapas num GPS nato. Eu sei reconhecer um génio da orientação quando o vejo, ok? Só para deixar as coisas bem claras. Cá por coisas...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

[as melhores do serviço de urgência] o que fazes quando estás com a telha?

Serviço de Urgência do meu hospital. Cinco da madrugada. O galo já cantou várias vezes. Felizmente ainda ninguém negou ninguém, até porque esta história não vem na bíblia e a Páscoa já lá vai... E sim, há galos no meu hospital. E pavões. E rolas. E gansos. E também havia, em tempos, uma águia que uma vez deu uma bicada a uma criança que a tentou alimentar, episódio que deu origem à tradicional advertência: "Podes ir ao jardim mas tem cuidado, não vás ver a águia. Há meninos que às vezes até ficam do Benfica...." Tempos depois, a águia foi saneada. Eram os tempos áureos de Alvalade... (E pronto, também o despontar do Instituto para a Conservação da Natureza.)

Mas onde íamos nós? Ah, pois, cinco da manhã. Um dos neurónios já foi dormir. O outro está a tentar trabalhar com muito cuidado para não acordar o cônjuge.

Várias colegas conversam alegremente, aproveitando a ausência temporária de doentes e a falta de crítica inerente às cinco da manhã, depois de vinte e uma horas de trabalho seguidas, com a perspectiva de ainda ter, com sorte, pelo menos mais quatro pela frente... Come-se chocolate (mais uma vez a falta de crítica a produzir os seus efeitos...). Tema de conversa: O que fazes num banco quando estás sozinha e com a neura?

Médica 1 - Eu vou conversar com os enfermeiros...
Médica 2 - Eu telefono para o meu irmão que está nos Estado Unidos.
Médica 3 - Eu telefono para a Saúde 24...
Médicas 1 e 2 - Para a Saúde 24?! Para quê?
Médica 1 - Para desabafar por estares com a telha?
Médica 3 - Não, para os desancar!

(Quanto a mim, sei que nunca o faria, mas uma vez ou outra juro que já tive ganas...)

[improbabilidades] tentar arranjar a placa em moçambique

À quarta é de vez. Enfim, o epílogo...

Já ali queria dizer mais cerca de 15 minutos a andar bem, ainda mais embrenhados pelo meio do bairro. Por fim:

– É aquele. – disse o empregado.
– Espero bem que aceite fazer o arranjo, senão fica assim mesmo, voltamos para casa, que já não tenho paciência. – decidiu a Irmã Conceição.

Entregámos a dentadura ao senhor das câmaras-de-ar de bicicletas, Castelo Branco de seu nome, que a examinou tão demoradamente como o anterior. Por fim, lá se decidiu a consertá-la. Dobrou-se sobre si próprio e começou a juntar com as mãos um montículo de terra lamacenta misturada com detritos indistinguíveis, em cujo topo (qual cereja em cima do bolo...) colocou a prótese dentária! Ai, valesse-nos Santa Rita de Cássia! Tanto tempo e tanto esforço para a placa no final acabar em cima de um monte de lama... O nosso ar horrorizado deve ter sido bastante expressivo, porque quando o homem levantou a cabeça tentou confortar-nos dizendo "Não preocupar, Irmãs." e mais uma frase que não compreendemos e que o empregado não achou necessário traduzir.

Em poucos minutos deu o trabalho por terminado e passou à fase do polimento, para o que foi buscar um pano de flanela, mais negro que um tição ardido, e começou a esfregar vigorosamente. Minutos depois:

– Já está. Experimentar, Irmã!
– Como?!
– Experimentar! Colocar nos dentes.
– Nem pensar, não vai a pôr na boca agora. – Adiantou-se a Irmã Conceição – Mas deixe cá ver como foi que ficou.

Contra todas as expectativas, a placa estava como nova! Lisa, brilhante, macia, sem uma rugosidade. Nem queríamos acreditar...

– Botar preço, papá.
– Vinte contos, Irmã. [Vinte mil meticais equivalia, na altura, a menos de 1 €.]
– Tome cem, papá. Muito obrigada e muita saúde!

O homem pegou no dinheiro e levou-o à testa: "Graças a Deus!", ouvimo-lo murmurar.
Felizes com o desfecho, voltámos à oficina para agradecer ao dono o favor que nos tinha feito e regressámos ao Hospital Central, mas o Estomatologista considerou que o trabalho estava perfeito e não havia mais nada a fazer. Só a desinfectou longamente com um ar levemente enojado... Mortas de fome e perdidas de riso voltámos para casa, onde nos aguardava o almoço em banho-maria e o jeep já carregado, pronto a seguir para Iapala...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

[momentos nicola] o glamour de paris

Interrompemos a emissão da história da placa para fazer o seguinte comunicado:

Um dia vou fazer uma revolução na Versailles!
Mas hoje ainda não foi o dia...

(Há um pequeno problema: como não tenho pelo menos dupla personalidade, não consigo fazer a revolução sozinha... Ideias?)

[improbabilidades] tentar arranjar a placa em moçambique

(...continuação)

– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...

Chegámos rapidamente à Auto-Nampula, quatro ou cinco ruas acima, mesmo ao lado do Shoprite, um supermercado sul-africano limpo, moderno, com cores garridas e grandes balcões, que explora obscenamente tanto os clientes como os empregados e em frente ao qual os seguranças não nos deixaram estacionar, mesmo sendo por poucos minutos, como explicámos, porque perdiam visibilidade na rua para detectarem potenciais ladrões... Mas eu tenho fé e, perdoem-me os instintos demolidores, acredito que estes estabelecimentos serão os primeiros a serem saneados quando vier a revolução! Quer dizer, revolução é maneira de dizer... quando o desenvolvimento for sustentável e não esta exploração desenfreada que não cria riqueza nenhuma... Mas voltemos à questão da prótese dentária, que eu até nem gosto de discutir ideologias, sobretudo quando estou a meio de uma oportunidade única, que é contar uma história sobre uma prótese dentária num texto sobre Moçambique... Estávamos na Auto-Nampula. Fomos imediatamente atendidas pelo dono, de quem as Irmãs são clientes regulares.

– Mostre lá a placa, Irmã... Hum... [Ou foi impressão minha ou o senhor fez um ar levemente enojado?] Não me parece que seja possível. Com os nossos ferros de soldar vai ser pior a emenda que o soneto...
– Mas não pode sequer tentar? Assim como assim... partida já está ela.
– Não, há um latoeiro por aqui que é mais jeitoso para estes trabalhos assim pequenos...
– Um latoeiro? – As Irmãs já nem tinham ânimo para se escandalizarem... – Onde é que o podemos encontrar?
– Vou pedir para vos levarem lá. Eu levava-as pessoalmente, mas tenho muito trabalho e é preciso saber falar Macua...
– Tudo bem.
Chamou um empregado.
– Leva as Irmãs ao senhor que conserta as panelas aqui no bairro, como é que ele se chama? Lanceta, não é?
– Lagarto, patrão.

Seguimos o empregado africano para fora da oficina à procura do tal senhor Lagarto que saberia fazer soldaduras delicadas. O empregado não podia ter mais de 17 anos e tinha uma agilidade para saltar montes de entulho, aglomerados de lixo e poças de lama que nos fazia sentir ridículas de cada vez que enterrávamos os sapatos em mais um monte de qualquer-coisa-que-nem-quero-ver-o-que-é. As Irmãs, do mal o menos, ainda estavam de sandálias, mas eu tinha decidido ir à Catedral e ao Hospital Central de sapatinho de salto alto e calças de seda, que agora iam a rojar pela lama... É tão triste ser loira, benza-nos Deus... Mas paciência. Para trás é que eu já não voltava!

Seguíamos pelo meio das ruelas ladeadas por palhotas e algumas construções comerciais de cimento, algo toscas e com os nomes mais improváveis: a “Barbearia Alvalade XXI”, uma latrina que ostentava a pomposa informação de que se tratava de uma "Casa de Banho Pública Para Necessidades Maiores e Menores", a inevitável barraquinha de Coca-Cola... Algumas crianças que brincavam na rua paravam para nos dizer adeus ("Tatá, Irmãs!"), um pouco divertidas com o nosso ar espavorido.







– Começo a achar que isto não vale uma dentadura... Que raio de ideia a nossa! – desabafou a Irmã Conceição.
– Bem, mas já agora que aqui estamos...

Chegámos, por fim, ao "estabelecimento" do Sr. Lagarto, surpreendentemente um benfiquista ferrenho, cuja casa tinha emblemas do Benfica de vários tamanhos colados nas janelas e pintados nas paredes exteriores. Consertava algumas peças de metal à porta de casa e não deu pela nossa chegada.

Ihali, papá? – Cumprimentámo-lo.
– Boa tarde, Irmãs.

O empregado da oficina falou com ele em Macua, após o que pediu para ver a prótese dentária. Examinou-a longamente sem dizer palavra e, por fim, disse qualquer coisa que não compreendemos ao empregado.

– Quanto pede pelo trabalho? – Perguntámos.
– Não, não está a botar preço. Está a dizer que há outra pessoa que pode fazer este trabalho muito melhor.
– O que é que faz essa pessoa?
– Arranja câmaras-de-ar de bicicletas.

(Suspiro... Um ligeiro elevar dos olhos para o céu... Bem, mas quem recorre a um latoeiro para consertar a placa também pode procurar um homem que conserta câmaras-de-ar de bicicletas, penso. As Irmãs, pelos vistos pensaram o mesmo.)
– E fica muito longe daqui?
– Não, é já ali.

(continua...)

Nota: Ao contrário do que dizem as más línguas, esta história teve mesmo um fim. Um pouco inesperado, é certo, mas a história não tem culpa disso. E a realidade também não tem a menor obrigação de ser previsível. De qualquer modo, desde o início que já estávamos a trabalhar no campo do improvável... Lamento mas este blog não possui livro de reclamações.

terça-feira, 25 de maio de 2010

[improbabilidades] tentar arranjar a placa em moçambique

Contextualizando: Agosto de 2004, segunda vez em África. Uma médica loira acabada de chegar a Nampula, ainda mal refeita de uma experiência surreal no aeroporto de Maputo... No dia da partida para uma missão em Iapala, no meio do mato.

– Às nove da manhã temos missa na Catedral – tinha-me dito a Irmã Conceição – mas depois tenho de ir tratar de um problema… e nem sei como é que o vamos resolver...
– Então?
– Uma das nossas Irmãs partiu a placa...
– A placa?
– Sim, ai, como é que se diz... a prótese dentária.
– Que aborrecido, realmente... Mas e não se pode arranjar?
– É esse o problema. Aqui, infelizmente, não há dentistas. Há um consultório de Estomatologia no Hospital Central, mas a única coisa que lá fazem é arrancar dentes. Não fazem implantes, nem próteses, nem sequer colocam chumbos.
– Mas porquê? Não têm conhecimentos para isso? Ou é por falta de equipamento?
– As duas coisas, penso eu. Que raio de país para se partir uma placa... Nesta terra, se uma pessoa precisa de qualquer coisa que implique algum savoir-faire é uma desgraça! Isto até parece anedota, andarmos aqui tão preocupadas com uma placa.
– O que é que pensa fazer então, Irmã?
– Bem, vamos lá ao consultório de Estomatologia. Partida já ela está. Pode ser que até a consigam consertar, ou pelo menos arranjar uma solução provisória. De outra forma não há mesmo outra solução senão ela ir a Maputo ou à África do Sul para fazer outra. E sabe Deus como é que vai ficar...
– Mas o Estomatologista não saberá mesmo consertá-la? Pode ser que até saiba...
– Duvido. Mas é o nosso único recurso. Quer vir connosco ao Hospital Central? Se calhar gostava de o ficar a conhecer.
– Claro! Adorava conhecer o Hospital! Para fazer turismo hospitalar estou sempre pronta!
– Então vamos, vá arranjar-se que já está quase na hora da missa.

Da Catedral ao Hospital Central de Nampula é um pulinho de carro. É um edifício notável com cinco andares, mas as condições actuais, por muito boas que já tenham sido, são deploráveis. O cheiro é nauseabundo. Uma mistura de cheiro a corpos (não há água canalizada para os doentes se lavarem), dejectos, sangue e comida, com o cheiro ácido da cetrimida, utilizada como desinfectante. Mas, dado o adiantado da hora, já não fomos visitar nada no hospital e dirigimo-nos de imediato ao consultório de Estomatologia. Tratava-se de um consultório privado, mas nem por isso tinha melhores condições...

Fomos recebidas por um Estomatologista indiano, um velhote de olhar afável, mas que usava dois incisivos de ouro, faiscantes, que lhe davam um aspecto tenebroso quando sorria e uns óculos de aros de tartaruga, cujas hastes tinham aspecto de estarem presas com fita adesiva já a desfazer-se desde o tempo colonial. Articulava mal o Português, falando com a boca muito fechada, apesar de nos afirmar que já estava em Moçambique há mais de 30 anos. Tal como a Irmã previa, informou-nos de que não dispunha de equipamento para consertar a prótese dentária. Mas que talvez a pudessem soldar na oficina em frente ao mercado.

– Na oficina em frente ao mercado? Qual oficina?
– Aquela... garagem, balbuciou com óbvia dificuldade.
– Não conheço nenhuma oficina de próteses dentárias na cidade...
– Não, não é oficina de próteses, é garagem mesmo... de carro.
– A garagem?! Mas como é que eles nos podem arranjar a prótese?
– Eles têm ferro de soldar pequeno. Vão lá, soldam e eu depois acabo de consertar.

As Irmãs estavam estarrecidas! Mas uma vez que não havia mesmo outra hipótese... Saímos do Hospital já dispostas a tentar a sorte na mecânica de automóveis, eis senão quando, a meio do caminho, a Irmã Conceição teve uma ideia brilhante:

– O técnico de informática! Ele esteve lá em casa ontem e andou a soldar algumas peças no nosso fax novo.
– Ah, realmente! Ele deve estar mais habituado a trabalhos delicados de pequenas peças do que os mecânicos de automóveis.

Mais reconfortadas com a ideia, lá nos dirigimos para a loja de informática, a Nampula Digital. No entanto, azar dos azares, o técnico informou-nos, desolado, que o ferro de soldar se tinha partido nesse dia.

– Nem sei quando é que vou conseguir mandar vir outro da África do Sul. O meu fornecedor só vem cá no próximo mês e quase de certeza que só aí é que lho vou poder encomendar. Já tentei contactá-lo, mas deve andar em entregas.

– Mas não tem telemóvel? Como é que ele recebe as encomendas?
– Recebe-as pessoalmente. É que na maior parte das estradas não há rede...
– O que é que nos aconselha, então?
– Acho que é melhor irem à garagem mesmo.
Lá entrámos outra vez no carro.
– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...

(continua...)

[welcome to mozambique] a ilha













Ah... a Ilha de Moçambique... De todas as vezes que lá fui, foi sempre depois de semanas de trabalho árduo no hospital, depois de ter visto muito mais sofrimento do que achava possível. No final, a Ilha foi sempre a paisagem que me aclarou a vista, me fez levantar a cabeça e me disfarçou o sabor das lágrimas num sopro de vento, sol e sal...

[as melhores do serviço de urgência] mickey mouse

Um tributo ao meu amigo JC, no seu infelizmente extinto Desabafos de um Médico:

A Anilde, uma linda menina negra de 4 anos, caíu. Fez uma ferida no meio da testa, não muito grande, e foi assim com os seus pais à Urgência. Depois de a convencer que não lhe ia "coser a cabeça" com uma agulha e que os "adesivos" não custava nada, coloquei as luvas.

Pergunta da praxe:
- Então quem é que tem umas luvas iguais às minhas, assim branquinhas?
- ...
- Dou-te uma pista: tem orelhas muito grandes e pretas!
- Ah! É a minha tia Felicidade!

Resolvido o problema, na fase das despedidas, fez uma cara triste e perguntou entredentes se eu não lhe ia pesar o coração. Disse-lhe que tinha a certeza que era muito grande e pesado. Vá-se lá entender.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

[improbabilidades médicas] sua eminência, o papa

(Post a propósito da gaffe do Sr. Eng. Pinto de Sousa)

Certa vez, estava eu no final de uma palestra sobre a lepra em Moçambique numa conferência realizada pela ONG com que vou colaborando, quando de repente vejo um senhor a ser transportado quase arrastado para fora da sala e alguém que gritava, aflito:
- Sra. Doutora, Sra. Doutora, precisamos de ajuda!
Saí da sala a correr e vi que se tratava de um senhor já de certa idade, que envergava uma camisa clerical. E estava extremamente pálido, com ar que quem ia perder a consciência em segundos. Disse para os homens que o levavam:
- Deitem-no no chão, agora!
Salto para cima do senhor (salvo seja), pego-lhe no pulso e começo os primeiros passos do Suporte Básico de Vida:
- Senhor Padre, Senhor Padre, sente-se bem? Está a ouvir-me?
Nisto, um outro senhor por detrás de mim toca-me nos ombros e repreende-me:
- Ó Doutora, não é Padre, é Bispo!

(Valha-me São Vito, que nunca sei lidar com neuróticos...)

[não rima, mas são decassílabos] a pequena corrupção

- Ó paizinho, mas eu não sou de Alcântara...
- Não é de Alcântara? Não é de Alcântara naturaliza-se!

Beatriz Costa e António Silva

domingo, 23 de maio de 2010

[inspiração para um reencontro]

Desculpa, fugiu-me um beijo... Tinha intenção de o guardar, mas habitualmente não guardo muitas coisas. Só coisas que valham a pena.

E beijos... não são para guardar! (De outro modo seria OCD, no mínimo... ou então antipática, vá...)

[improbabilidades] recriação histórica

Já vos contei que tive uma aluna que era pasteleira em Aljubarrota? E por acaso não se dava nada bem com os colegas espanhóis do Erasmus... mas acho que não era por razões históricas. Acho que era por qualquer história do coração e as discussões, felizmente, nunca me constaram que metessem a pá do forno. Havia, quando muito, uns zunzuns sobre a batedeira e o rolo da massa...

sábado, 22 de maio de 2010

[lendas e tradições] beijo de mulata


Há por todo o país uma bela e pequena flor que cresce na orla marítima e parece ter particular apetência por se desenvolver nas muralhas dos velhos monumentos portugueses. Vejo-a nas paredes da fortaleza de Maputo, no adro da catedral, nas torres do forte da Ilha de Moçambique.

Leona – filha de pai de Viseu e mãe da tribo Iao no Niassa – diz-me o seu nome. Chama-se a flor ‘beijo de mulata’. E esclarece-me que não é uma flor – são almas. As almas de milhares de crianças mulatas que nunca conheceram o seu pai português – e que, depois de mortas, o buscam ainda na forma de flor que se agarra às memórias do império. Escalam as paredes para, tentando chegar ao céu, se juntarem enfim ao pai.

Com a devida vénia a este senhor, que nos delicia com as suas caminhadas.

[nomes que dizem tudo #9] maktub

No Serviço de Urgência observei hoje um menino chamado Manuel* Arranhado, que tinha um eczema atópico familiar e estava cheio de lesões de coceira...

* Primeiro nome obviamente fictício.

[welcome to mozambique] os rituais de iniciação

(continuação)

Durante a iniciação, as meninas aprendem também a tatuar as partes do corpo que ficarão recobertas pelas roupas, o ventre, o peito e as coxas, com pequenos cortes na pele formando padrões elaborados em que colocam pó de carvão vegetal e que depois formam cicatrizes muito pretas com relevo. Durante algumas semanas juntam-se quatro ou cinco amigas e vão para as margens do rio, longe dos olhares de estranhos, onde se submetem lentamente a estas operações de tortura, intervaladas por longos banhos refrescantes e massagens de relaxamento para aliviar a tensão dos músculos que se retesaram pela dor. À semelhança do que me aconteceu com as danças, só muito tempo depois de as ter visto largamente na maternidade, enquanto assistia aos partos, é que me apercebi de que também as tatuagens são tabu na sociedade macua e que as mulheres as utilizam como um trunfo major para a sedução.

Mas o principal objectivo do ritual de iniciação é a instrução das meninas sobre as práticas sexuais, sobre como namorar, as regras de convivência com os homens, os ritos e tabus do namoro e matrimónio e a importância de gerar filhos. É com modelos anatómicos e role-play que aprendem a mecânica do acto sexual e com canções que aprendem e interiorizam todos estes ritos e regras ao longo dos dias da iniciação. Existem múltiplas canções cuja frase principal é “a nossa riqueza são os filhos” e quase todas as canções que aprendem falam deste tema ou da importância das práticas sexuais na vida de um casal. As meninas são muitas vezes encorajadas a ir rapidamente colocar em prática os novos ensinamentos. E, entre os macuas, ter filhos fora de uma relação estável ou do matrimónio não é de todo malvisto (aliás, uma mulher que já gerou filhos será, aos olhos de um homem, mais apetecível como esposa do que uma que não têm a certeza de que será fértil…).

E, já agora que estou com as mãos na massa, aproveito para perguntar a quem conseguiu ler este post até ao fim, que sentido terá gastar rios de dinheiro nas campanhas de prevenção do VIH com cartazes de rua e folhetos dirigidos a escolas e centros de saúde, se as principais educadoras sexuais, que são as mulheres que realizam os rituais de iniciação não forem visadas? Não seriam antes estas mulheres quem interessava “agarrar” e cativar para, a par das manobras de sedução, ensinarem também as meninas a proteger-se? Não é fácil falar com elas, eu sei, não é fácil que elas aceitem o que sai fora dos ritos tradicionais, mas nas aldeias perdidas no meio da savana, onde a SIDA grassa como a cólera, esta é mesmo a única maneira de travar o flagelo…

sexta-feira, 21 de maio de 2010

[welcome to mozambique] hips don't lie



As mulheres macuas*, de entre as mulheres moçambicanas, são conhecidas por serem as mais bonitas, as mais vistosas e, acrescenta quem sabe, também as mais fogosas... Diz também quem sabe, que os segredos das mulheres macuas se transmitem de mães para filhas, de irmãs para irmãs, mas que os maiores segredos são transmitidos durante o ritual de iniciação, que marca a passagem da puberdade para a idade adulta. É sobretudo durante os dias da iniciação que as meninas aspirantes a mulheres aprendem as técnicas fundamentais da arte de agradar a um homem.

Após a primeira menstruação, instruídas pelas irmãs mais velhas ou pelas primas, podem começar a aprender a dançar uma dança que até então lhes estava interdita e que nenhuma mulher poderia dançar em frente a outra não iniciada (e que, com muita pena minha, tem um nome absolutamente impronunciável, de outro modo faria agora aqui um brilharete), em que bamboleiam as ancas** num movimento ao mesmo tempo enérgico e sensual.

Uma vez, quando ainda não sabia que a dança era interdita, pedi às meninas que viviam no lar das Irmãs para dançarem para mim. Escusado será dizer que elas tiveram uma enorme relutância em dançar, por medo da minha reacção, já que as Irmãs habitualmente não aprovavam aquelas danças por as considerarem “perigosas” e tinham medo que algum homem as visse dançar e se fosse meter com elas (mas, por vezes as próprias Irmãs africanas, nas noites mais animadas dançavam dentro de casa entre a galhofa geral - desde que, obviamente, não estivessem homens por perto...). Assim, nessa tarde gramei com danças de igreja durante horas a fio, até que uma delas, com mais vontade de dançar, ou talvez compadecida do meu tédio, teve a ideia de ir para trás da casa e lá se decidiram a dançar a dança interdita à minha frente.

(continua...)



* A etnia que habita as províncias mais a norte de Moçambique.
** Para os leitores brasileiros: em Portugal e em Moçambique a palavra “anca” é perfeitamente normal e nada ofensiva.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

[welcome to mozambique] bela é a mulher que o mussiro esconde







Próximo da orla costeira de Nampula, cresce uma árvore de cujo tronco se extrai uma pasta branca, o mussiro, utilizada pelas mulheres para preparar uma máscara facial de relaxamento, que evita as rugas, refresca e amacia a pele e que, depois de seca no rosto, lhes retira parte da expressão, conferindo-lhes um fácies levemente enigmático, que as torna mais atraentes para os homens (apesar de nunca ter ouvido ninguém dizer isto, não consigo deixar de fazer um paralelismo com a máscara das geishas orientais).

A primeira visão é desconcertante, mas depois entranha-se e passa a fazer parte dos momentos brilhantes da paisagem humana, tal como a infinita paciência das mães a pentear as filhas na ombreira das portas ao fim da tarde.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

[welcome to mozambique] o baptismo de voo




Cheguei pela primeira vez a Nampula no dia 5 de Agosto, dia de Nossa Senhora de África, em vez do dia 4 de Agosto, como tinha planeado. Mais de 24 horas de atraso porque em Maputo não consegui apanhar o avião à primeira. Não sei se me compreendem. Eu sou loira, começa tudo aí...

Já não era a minha primeira vez em África, mas das vezes anteriores tinha sempre tido acompanhantes, motoristas, amigos para me ajudar e não tinha entrado completamente na dinâmica do país... Confiava nas coisas que sempre dei como garantidas e nunca na minha vida tinha colocado em causa. Por exemplo, pensem comigo: se estiverem várias pessoas numa fila para um balcão, podemos acreditar que essas pessoas querem ser atendidas, certo? Concretizando, se essa fila for a fila do check-in cujo balcão ostenta o número do nosso voo, por exemplo - isto é só um "supônhamos" - e estiverem várias pessoas com malas nessa mesma fila, poderemos assumir que essas pessoas estão para embarcar connosco no nosso voo. Ou não? Não sei quanto a vocês, mas foi isso que eu assumi. Coloquei-me na fila e aguardei pela minha vez. Erro crasso!

Os estimados leitores com alguma experiência de aeroportos em África talvez estejam agora a sorrir - está-se mesmo a ver por que é que ela perdeu o avião! Pois é... Só algum tempo depois de estar naquela fila é que me apercebi que:

a) o empregado do balcão que estava a falar com a primeira pessoa da fila não a estava a atender (estavam apenas a conversar);
b) a fila em que eu estava não avançava e não iria avançar de todo porque as pessoas à minha frente não tinham bilhete (estavam na fila há vários dias)*;
c) já todos os passageiros do meu voo tinham feito o check-in várias horas antes, não fosse acontecer-lhes o que me veio a acontecer a mim;
d) os empregados do balcão tinham decidido, à hora em que o voo estava quase completo (duas horas antes do embarque), que eu já não viria e tinham vendido o meu bilhete a outra pessoa (possivelmente ao primeiro da mesma fila onde eu então me encontrava);
e) o meu voo já estava completo, fechado e pronto para partir com meia hora de antecedência.

Não entrei em pânico. Nem me preocupei. No fundo eu já ia avisada: que esperasse de tudo, que não esperasse bons serviços, que não esperasse mesmo quaisquer serviços, que não me surpreendesse com nada. Que em África tudo acontece, mas geralmente tudo se resolve também.

Quando fui reclamar ao balcão do check-in, os senhores olharam-me com indiferença e nem se dignaram a responder-me. Fui a um balcão da companhia: Que não era nada com eles. Tinham-me chamado e eu não estava, portanto tinham vendido o meu bilhete.

Seria então altura para entrar em pânico? Não, isso seria mais um erro crasso. Irritei-me! Fui reclamar, desta vez em voz mais alta e mais grossa, a um terceiro balcão e lembro-me de ver a senhora empalidecer quando utilizei a palavra "overbooking".

- Venha outra vez amanhã, disse simplemente.
- Ok.

No dia seguinte passei à frente de tudo e de todos, dirigi-me directamente ao balcão do check-in e a senhora com quem eu tinha falado no dia anterior lá descobriu um lugar vago em classe executiva no vôo Maputo-Pemba dessa tarde, com escala no meu destino... Quanto a mim, foi a primeira e última vez que me coloquei numa fila sem saber com toda a certeza o que se passava do lado do balcão!

*E perguntam vocês: Mas se não tinham bilhete, o que estavam as pessoas e as malas a fazer naquela fila de embarque? Pois... Isso já tem a ver com a cultura de um povo. Por acaso até tenho uma teoria. A minha teoria é que na verdade eles provavelmente não estavam ali a fazer nada. Nem seria ali que iriam arranjar bilhete, mas no balcão da companhia. Eles estavam ali apenas... à espera. Foram esperar para ali porque seria dali que iriam partir. É isto.

[we're off to see the wizard] the wonderful wizard of moz

Quando, antes de cada missão, eu dizia que ia partir em voluntariado para um local tão remoto que se demorava três dias a chegar, algumas pessoas olhavam para mim incrédulas do meu entusiasmo - e às vezes da minha sanidade mental... Mas há casos muito mais flagrantes do que o meu. Em 2008 no Gilé conheci o Emílio, colega de Medicina Interna, que dez anos antes tinha deixado a família em Espanha para ir de férias por três meses e ficou à primeira!

[nomes que dizem tudo #9] amor a dobrar

Dois gémeos, filhos de mãe Queniana e pai Catalão (internados no meu hospital, claro, where else?). Ela chama-se Blessing e ele Godswill...

(Fui só eu que fiquei derretida e acho que Blessing é um nome com uma sonoridade linda para uma menina? Não que o pusesse a uma filha, mas neste caso uma vez que já está...)

terça-feira, 18 de maio de 2010

[vozes brancas* #13] poesia em estado puro

Hoje numa consulta de rotina com uma menina de 4 anos:

Mãe (babadíssima) - Bárbara, diz lá à Doutora P. aquilo que disseste ontem à mãe sobre o teu desenho.
Bárbara (um pouco envergonhada) - Esta noite tirei o sol e as nuvens do céu!

Fiquei sem palavras e a babar-me, se possível, ainda mais que a mãe...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[vozes brancas* #12] e a arte de rua

Esta tarde na consulta com um menino de dois anos (já a mostrar sinais de alguma impaciência):

Menino (enquanto brincava com o telemóvel da mãe) - Mãe, cucurruu...
Mãe - Sim, filho, já vamos.
Eu (escrevendo um atestado) - Que querido, quer ir ver as pombinhas?
Mãe - Sim, doutora, ele quer ir dar milho aos pombos.
Eu (distraída, escrevendo mais uma declaração) - Que amor...
Menino - Mãe, o au...
Mãe - Sim, filho, já vamos ver as estátuas.
Eu (passando uma receita) - ...
Menino (com voz cada vez mais impaciente) - Mãe, mãe, o au...
Mãe (também impaciente) - Sim, filho, já vamos, as estátuas não fogem...
Eu - Mas ele está a dizer "au"... é a estátua de algum cão?
Mãe - Não Doutora, é que ele gosta de ir ver as estátuas do Rossio, que são enormes e, quando olha para elas diz: "Uau!"

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[if you love me, shaw me] o esqueleto e o armário

If you can't get rid of the skeleton in your closet, you'd best teach it to dance.

George Bernard Shaw

(Seria outra alternativa, mas resolvi acabar o curso de Medicina...)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

[o esqueleto e o armário] a propósito do casamento gay

Dizem que todas as pessoas têm um esqueleto no armário. E eu que, à excepção de um ou outro pormenor, não sou excepção para nada, também já tive o meu. Foi no primeiro ano da faculdade. Chamava-se Cristóvão, trocadilho da co-autoria do meu irmão e de uma fantástica reserva de Dão num jantar de família generosamente regado, em que o pobre esqueleto passou a ser apelidado de Cristóvão Sem Lombo. Utilizei-me dele, não para qualquer prazer mórbido, como certamente gostariam muitos dos senhores que cá vêm parar através de pesquisas na web*, mas para estudar Anatomia I.

E foi já em Julho, mês que, segundo o regente da Cadeira, seria sempre no dia seguinte, que descobri que não estava a viver com um esqueleto... mas com uma esqueleta! Não havia dúvidas. Depois de lidos todos os tratados de Anatomia (um Rouvière, dois Rouvières, três Rouvières e um Testut), aquele ilíaco e aqueles ossos da face já não enganavam uma estudante de Medicina que desde Outubro estudava como se amanhã fosse vir mesmo... (E por acaso veio.)

E foi então que me vi a braços com a embaraçosa tarefa de revelar à minha tradicional e conservadora família que o esqueleto, a quem todos chamavam D. Cristóvão, iria sair do armário para se chamar Rosa (nome romântico também da autoria do meu irmão, que quando me via passar com os ossos para o escritório me perguntava: "Senhora, que levais no regaço?", ao que eu respondia "São rosas, senhor, são rosas...").

Para minha surpresa, a minha família reagiu com naturalidade (e até com alguma indiferença) à notícia, sugerindo apenas que no ano seguinte ele saísse de vez do meu armário.

Moral da História: Se o esqueleto que tens no armário te embaraça, podes sempre despachá-lo para um colega mais novo.

* Por mais que eu reze à Nossa Senhora do google.

[o fio da navalha] fuga de cérebros

Ela tinha um cérebro tão activo que só conseguia descansar em silêncio absoluto e com tampões de silicone nos ouvidos. Para o marido aquele cérebro imparável era uma dor de cabeça. Para os colegas mais velhos ela era um génio. Os colegas mais novos, porém, que nunca a conseguiam acordar durante a noite, nem mesmo com o telemóvel da reanimação, cochichavam que aquele cérebro era genial e, portanto, durante a noite fugia certamente para Silicon Valley.

domingo, 16 de maio de 2010

[momentos nicola] o senhor que mexia em oslo

Um dia vou celebrar o título no estrangeiro! Há tempos foi o dia...



Disclaimer: Eu juro que sou Sportinguista, mas não resisto a uma celebração deste calibre. Mexia, só tu!

[a vida é simples] enjoy modern art


Picasso, 1943, Cabeça de Touro (construída a partir de um selim e de um guiador de bicicleta).

Meus amigos, a arte moderna é dolorosamente simples... e quando sentirem que não entendem alguma coisa respirem fundo e lembrem-se de mim: "A arte é para os leigos"!

Mas aqui vai uma dica para os que continuam a insistir que não compreendem: Se a obra estiver pregada na parede é um quadro. Se conseguirmos andar em torno dela é uma escultura. Se não for uma coisa nem outra, é uma "instalação". Nunca falha!

[vozes brancas* #11] todas as crianças são místicas

Uma aluna de catequese da minha mãe, na preparação para a Primeira Comunhão:
- Professora, há uma coisa que eu ainda não entendi. Quando diz que vamos comungar o corpo de Cristo... que parte do corpo é que vamos comungar?

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sábado, 15 de maio de 2010

[circularidades de uma pediatra loira] a minha vida dava um filme cigano


Há alguns anos, era eu uns anos mais nova (com a devida vénia aos soldados gozões que imortalizaram o Marquês de la Palice), quando uma noite, estando de urgência no meu hospital, uma colega me veio chamar porque estava a ver um menino de etnia cigana e suspeitava que ele podia ter uma displasia ectodérmica (tinha dois anos, ainda não tinha dentinho nenhum - e, ao contrário da outra mãe, esta nunca o tinha pensado em levar ao dentista - tinha muito pouco cabelo, não transpirava e tinha infecções respiratórias umas atrás das outras).

A mãe, como qualquer cigana que se preze, estava apenas preocupada com as "inginas" e com o "gómitos" e completamente a leste do quadro global. Expliquei-lhe que lhe ia marcar uma consulta para esclarecermos melhor o que se passava, mas a mãe começou de imediato a desvalorizar a situação. E que tinha de ir todos os dias com o marido para a venda e que não ia ter tempo, que até já uma vez tinha andado lá no hospital nas consultas com o irmão mais velho porque "era atrasado" e que até o "tinham posto a dormir para fazer uma sornância" e nunca se tinha descoberto nada. Que não, que não ia, que ela não era pessoa para acreditar em médicos e andar em hospitais a perder tempo.

Lá me enchi de paciência e expliquei à mãe que a consulta era para ver se o menino deixava de ter tantas vezes falta de ar, para perceber se ele transpirava ou não porque se não transpirasse de todo podia ter um golpe de calor - e até podia ter convulsões - e para esclarecer por que é que ainda não tinham nascido os dentinhos ao menino. Isto, pelo menos, é o que eu me recordo de ter dito. Como se a mãe tivesse ficado razoavelmente convencida, marquei a consulta para a semana seguinte.

Na segunda-feira, chego de manhã ao hospital e deparo-me com um acampamento de ciganos por todo o jardim, as carrinhas nas traseiras do hospital, fogões de ar livre estrategicamente montados mesmo em frente ao reservatório de gases medicinais e vários grupos dispersos, sentados aqui e ali como quem espera alguma notícia importante e pensei: "Deve estar algum ciganito muito doente internado por aí em alguma enfermaria..." E fui trabalhar.
Ao início da tarde deixei a enfermaria e fui para o pavilhão das consultas. De súbito, reconheci os pais do menino que eu tinha mandado vir à minha consulta, notei que estavam numa posição de destaque no grupo, que pareciam tensos e que cochicharam qualquer coisa para um homem mais velho, após o que todos se voltaram na minha direcção... E foi mais ou menos assim que percebi que aquele ajuntamento étnico estava à espera... da minha pessoa. E preparavam-se para me seguir para dentro do pavilhão.

Engoli em seco e lá fiz das tripas coração, dirigi-me à mãe, cumprimentei-a e perguntei-lhe quem era o sogro. Este apresentou-se de imediato e convidei-o para entrar como acompanhante dos pais. Para meu alívio, ele fez o que se espera de um chefe de família: voltou-se para a multidão e ordenou-lhes que esperassem, que ele ia ali a uma consulta com o neto e já vinha.

Lá entrámos, comigo intrigadíssima por aquele aparato todo, com a mãe e o pai a desfazerem-se em lágrimas e com o avô com um ar muito circunspecto. "Isto promete...", pensei. Já na consulta, depois de algumas perguntas, fiquei a saber que a mãe tinha percebido que eu lhe tinha dito que o menino não teria dentes.

- Como?! - exclamei para mim mesma. Mas verdade verdadinha é que, embora eu não me lembrasse de lhe ter dito isso, lá que existia essa possibilidade, existia... E então, ó valesse-me Nosso Senhor dos Aflitos, como é que eu ia descalçar aquela bota assim sem mais nem menos? Lá peguei no telefone e expliquei à técnica de radiologia que precisava de uma ortopantomografia urgente. Que sabia que não era um exame para se pedir àquela hora, que sabia que era preciso marcar com antecedência, que sabia que só excepcionalmente se fazia a uma criança de dois anos, mas que compreendesse que era uma absoluta emergência médica... A técnica, estupefacta e desconfiada, mas compadecida da minha voz aflita, lá anuiu num "Venha lá, então." como quem diz "Olhe que se continua a preocupar-se tanto com os meninos vai morrer cedo."

Meia hora depois, naquele hospital havia mais uma família aliviada, mais uma médica histericamente feliz (embora por razões ligeiramente diversas), mais uma técnica de radiologia a pensar "Estas pediatras d'agora são loucas!", menos um ajuntamento étnico - que dispersou em menos de um ai. E mais uma consulta começou tranquilamente...

[tularémia] este blog não possui livro de reclamações

Depois de várias graciosas reclamações a propósito deste post, depois de vários pedidos de esclarecimento e até de uma troca de impropérios entre duas pessoas que se sentiram visadas (valha-me São Vito, que não sei como lidar com delírios de referência), gostaria que esclarecer que o vocábulo composto "francesinha tularense":

a) não se refere a uma galdéria qualquer de origem francesa nem mesmo à soberba iguaria gastronómica nortenha com o mesmo nome;
b) se refere, obviamente, ao agente da tularémia, Francisella tularensis, tal como o indicam as referências "lebre mal passada" e "adenomegália cervical", não sei onde foram buscar essas ideias lúbricas, ó valha-me Deus;
c) constitui uma incorrecção do ponto de vista científico;
d) não tem qualquer sentido do ponto de vista semântico;
e) é irrepreensível do ponto de vista sintáctico, mas isso não interessa muito...

Pronto, já disse.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

[momentos nicola] luanda, depois do glamour da côte d'azur


Um dia vou morar numa casa Louis Vuitton.


Hoje é o dia!

Com a devida vénia ao Sr. Pitigrili, que hoje melhorou substancialmente o meu dia.

[et in arcadia ego] um milagre




Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar... Depois de me despedir do pai e do menino vêm chamar-me para ir ver uma mulher que tem um recém-nascido de poucos dias ao colo. É o neto. A mãe está doente e teve de ser transportada para a cidade, sem possibilidade de cuidar da criança, uma situação extremamente delicada.

- Moxeleliwa*, Irmã? – cumprimenta-me.
Começo a achar piada a que me tratem por Irmã... E de facto, entre ser Irmã ou ter uma qualquer doença grave que me torne uma mulher estéril, penso que ser Irmã é mais bem cotado por estas bandas...

A avó, ansiosa, só fala Macua e não a compreendo, mas o enfermeiro diz-me que me pede leite em pó para dar à criança. As Irmãs têm leite para lactentes no armazém, mas o problema é a água... É praticamente impossível conseguir água potável nas aldeias que rodeiam a Missão e portanto oferecer-lhe o leite é uma irresponsabilidade da minha parte e poderá mesmo equivaler a uma condenação da criança a sucumbir a uma gastroenterite. Os adultos já estão habituados e praticamente imunes às bactérias e parasitas mais corriqueiros, mas os recém-nascidos são muito frágeis.

– Onde vive?
A sua aldeia fica a 50 km daqui. Já passei por lá com a Irmã Lurdes na campanha de vacinação e sei que não tem uma fonte de água potável, pelo que as pessoas vão buscar a água que bebem ao rio – que na estação seca quase não passa de vários charcos de água parada a céu aberto – lavam-se no rio e é também nele que fazem os despejos. E está fora de questão ferver a água para preparar o leite, já que a pouca lenha que as famílias conseguem arranjar mal dá para cozinhar.

Ponho o problema à Irmã Lurdes, que me diz para a levar à D. Catarina, uma das parteiras do hospital. Exponho-lhe a situação, após o que se levanta seriamente, sem uma palavra. Deve talvez ir tentar encontrar uma ama de leite entre as várias mamãs que acabaram de ter filhos, penso. Mas, para meu assombro, regressa pouco depois com um preparado de ervas que fricciona no peito da mulher e dá-lhe a comer uma espécie de leguminosa crua (penso que se chama feijão jugo) e que ela ingere sem um protesto, enquanto a D. Catarina lhe estimula o peito. Não sei porquê sinto-me nitidamente a mais neste momento, há qualquer coisa que não compreendo e onde sinto que não pertenço... Retiro-me, pois, no momento em que a D. Catarina lhe coloca o bebé ao peito.

Quando regresso, ao fim da tarde, o bebé já começou a mamar um pouco e a avó parece animada. Dias depois, contaram-me que lá tinha estado também uma curandeira, que tinha feito uma "lavagem tradicional" ao peito da avó...

Perguntei depois à D. Catarina como conseguira tal coisa, ao que ela respondeu, muito simplesmente:

– Não fui eu, foi o bebé. São os filhos que fazem o leite das mães!

É incrível! Não que eu não soubesse esta lição da Fisiologia, mas ver resumido tão simplesmente e em forma de adágio aquilo que eu tinha aprendido com mecanismos complicados de glândulas, hormonas e feedbacks negativos deixou-me completamente atarantada... E mais ninguém parece surpreendido com este autêntico milagre! Tempos depois, já de regresso a casa, viria a descobrir que este fenómeno de realeitamento materno, que me pareceu tão exótico e culturalmente estranho, não é assim tão raro e é actualmente alvo de vários estudos. Eu só falo por mim, mas há tanto a aprender com África...

* O sol brilhou bem para si hoje?

quinta-feira, 13 de maio de 2010

[não será coincidência a mais?] assim do tipo "lógico"...

A minha recepcionista hoje:
- Isto anda sempre tudo ao contrário... Quando a Doutora chega cedo os doentes nunca cá estão, mas quando chega tarde já cá estão sempre dois ou três...

[inspiração para um reencontro] i'm not miserable but i love les miserables

And remember the truth that once was spoken... to love another person is to see the face of God!

Les Miserables

[valha-me santo ambrósio] hoje o que me apetecia...

mesmo, mesmo... era uma saladinha de espargos...


[et in iapala ego] da cólera e da raiva de não poder fazer nada

(continuação)

O olhar do pai diz-me finalmente que era isto que estava há pouco a tentar comunicar-me: o filho tem pavor da água há alguns dias e não consegue engolir... Da porta, a Irmã Lurdes, que tinha acabado de chegar para me obrigar a ir descansar, ainda assistiu à cena e olha-me consternada. Também ela acabou de compreender que o menino tem raiva e sendo assim não há qualquer hipótese de cura... Está tudo finalmente explicado, a dor na perna, a ansiedade do pai, a viagem extenuante numa tentativa desesperada de salvar este filho tão especial, o brilho quase selvagem no olhar do menino, a agitação, a febre...

– O menino foi mordido por um cão?
O pai nega, ansiosamente... Para além de não conseguir engolir, também está agitado e às vezes agressivo, diz. Examinando melhor o local para onde o menino aponta, realmente compreendo que não pode ter sido um cão a fazer uma cicatriz de mordedura tão pequena.

– Que bicho lhe mordeu?, pergunto, compreendendo subitamente a verdadeira origem desta expressão popular.
O pai responde que nenhum, nenhum bicho, é isso que o intriga – pela conversa, agora com a Irmã Lurdes a traduzir, percebo que ele conhece os sintomas da raiva e tem essa suspeita no filho. Teve uma pequena ferida há algum tempo na perna, mas nem sequer ligou importância.

– Costuma dormir ao relento?, pergunto.
Um ligeiro aceno de anuimento. Só pode ter sido um morcego... Nem posso acreditar... E pensar que, se não fosse este pequeno incidente com o copo de água, o diagnóstico desta doença terrível haveria de se me escapar por entre as unhas!
O que será que o pai espera de nós? Será que não sabe que a raiva nesta fase já não tem cura e tem esperança de que façamos algo, ou pretende só a confirmação do diagnóstico? Mas mais vale esperar pela manhã para ter essa conversa tão delicada. Pai e filho devem estar exaustos... A Irmã Lurdes, já habituada aos muitos casos de raiva que aparecem por ano, desfaz o comprimido, coloca-o numa colher e senta-se ao lado do menino:

– Se eu te tapar os olhos, achas que consegues tomar o remédio para passar a dor? Vais sentir-te melhor...
Com os olhos vendados para não ver a água que o apavora e lhe provoca espasmos intensos na garganta, a muito custo, consegue engolir o comprimido desfeito e algumas colheres de água...

Não consegui dormir quase nada esta noite. Nem eu nem as Irmãs. Não nos podemos oferecer para cuidar do menino no Hospital porque o prognóstico é fatal a breve trecho e os mortos não podem ser enterrados longe do local onde nasceram. E não havendo estradas para aquela zona também não podemos ir levar o menino a casa... Mas de manhã o pai é categórico: quer ser ele próprio a cuidar do filho e levá-lo para casa o mais rápido possível para lhe poder dar algum descanso no final da vida e levá-lo a despedir-se dos seus... Enfim, provavelmente a razão é outra... Certamente o que vai fazer é procurar o auxílio de algum curandeiro... Fuga em frente. Mas não o censuro... quem resistiria a esta aliteração? Apesar de tudo, aceitou de bom grado o transporte de jeep até onde a estrada termina, e mais os analgésicos e sedativos. Emocionou-me a aceitação e a compostura daquele pai de família, mantendo o pragmatismo e o cuidado com o filho, em circunstâncias tão terríveis e tão revoltantes.

Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

[et in iapala ego]


Agosto de 2006. Iapala depois de jantar.

À porta do hospital está um homem com uma criança que aparenta uns oito ou nove anos, pai e filho sentados no chão, com o menino reclinado sobre o tronco do pai, entre as suas pernas abertas – cuidado habitualmente dedicado aos doentes e sinal inequívoco da sua preocupação pelo filho. Ao lado uma bicicleta e um cesto com roupa e comida. Nestes dias já aprendi a descortinar estes pequenos sinais: vêm de longe... Assim, a esta hora, para além dos cuidados médicos, é necessário providenciar-lhes também o jantar e uma cama para dormirem. Abaixo-me para os cumprimentar, tal como aprendi com a Irmã Lurdes, sinal de boa educação nesta cultura – cumprimentá-los de pé teria sido provavelmente interpretado como rudeza ou arrogância da minha parte – e só então os convido para entrar.

- Ihali, Irmã? – cumprimenta-me o pai.
Já nem sequer tento desfazer o engano. Não há maneira de convencer as pessoas de que não sou religiosa e não me devem tratar por Irmã. De qualquer modo acho que não acreditariam em mim, se já tenho mais de vinte anos e não tenho filhos...

O menino parece ter-me compreendido e põe-se de pé rapidamente, encarando-me de frente com um olhar vivo e intenso, algo extremamente raro que me surpreende, já que as crianças habitualmente desviam o olhar envergonhado quando as observo. Desta vez, então, fiquei cativada à primeira vista! É um menino adorável. Para além disso, posso apreciar que tem bom estado geral, uma aparência razoavelmente cuidada para os padrões daqui, sobretudo considerando que deve estar em viagem há algum tempo. E não parece de todo estar doente...

Ao que me dizem, estão de viagem, sempre de bicicleta, há mais de dois dias e no mapa consigo encontrar o nome da aldeia de onde vêm: fica a cerca de 100 km daqui e não há sequer estradas nessa direcção por onde possa passar um jeep! Ao longo da conversa o menino continua a surpreender-me com uma inteligência e vivacidade invulgares e um domínio da Língua Portuguesa nada comum para uma criança que viveu toda a vida numa aldeia isolada. O motivo da consulta, pelo que consegui perceber, é uma dor intensa na perna, embora objectivamente não consiga descortinar qualquer lesão.

Nos meus primeiros dias em Iapala costumava surpreender-me com o cuidado extremo que os pais dedicavam aos filhos, já que em Portugal as famílias numerosas que vivem abaixo do limiar de pobreza são geralmente famílias disfuncionais e as crianças demasiadas vezes vítimas de maus tratos e negligência. Mas aqui os pais de família têm os filhos como a sua primeira preocupação, falam deles como a sua riqueza mais estimada, tal e qual como se fossem o filho único de um casal europeu. Mas mesmo assim, há qualquer coisa aqui que não bate certo... Uma dor que não impede a marcha nem as actividades normais parece-me muito pouco para o esforço de uma viagem tão grande e arriscada.

O pai tem bastante mais dificuldade no domínio da língua e parece ansioso, tentando explicar-me qualquer coisa de preocupante no estado de saúde do filho, mas que não compreendo. Já virei o miúdo dos pés à cabeça e a única coisa que consegui objectivar é que se encontra subfebril e um pouco inquieto, a roçar o agitado. Mas mais provavelmente se trata de malária do que outra coisa qualquer mais grave.

Não entendo... Só se estão de viagem para qualquer sítio e passaram por aqui para poderem dormir abrigados e tomar uma refeição quente. É uma hipótese que me parece muito mais plausível. De qualquer forma, geralmente sobra um pouco de comida e temos duas camas vagas no quarto do isolamento que se podem perfeitamente ocupar por uma noite. E quem é que os poderá censurar? Mais vale que durmam aqui do que ao relento no mato, onde há tantos perigos, e não comer depois de uma viagem tão extenuante deve ser horrível.

Em poucas linhas a nota de entrada fica feita: amanhã se fará o teste para ver se o menino de facto tem malária e vou falar com um servente para lhes providenciar a acomodação. Agora a dúvida: perante uma suspeita tão ténue de malária não complicada devo tratar já ou não? Decido-me a não tratar sem fazer o teste primeiro. Vou-lhe dar apenas um paracetamol para lhe aliviar a dor na perna e baixar a temperatura... Regresso então com o comprimido e um copo de água mas, quando o entrego ao menino, este dá um grito apavorado... Gelei.

(continua...)

terça-feira, 11 de maio de 2010

[urologices] antónio lobo antunes

A propósito, não resisto a reproduzir esta conversa de consultório. Doente com retenção urinária aguda e Urologista sénior muito conceituado (USMC):

USMC (voz afável e empática) - Boa tarde, então o que o traz por cá?
Doente (voz sofrida, um pouco sumida) - Sr. Doutor... eu não mijo.
USMC (voz de barítono ligeiramente agastado) - Não mija como? Claro que mija!
Doente (voz ainda sumida, mas que se revela ser de tenor) - Não, Sr. Doutor, eu não mijo...
USM (voz de barítono, uma quarta abaixo) - Ai mija, mija!
Doente (voz de tenor, agora a roçar o dó de peito) - Não, Sr. Doutor, é verdade. Eu não mijo há dois dias!
USMC (voz de barítono, uma quarta abaixo e três decibéis acima) - Mija sim, que lhe digo eu!
E foi então que o doente se desurinou e o problema ficou resolvido.

Moral da história: Quando as pessoas de noventa quilos dizem determinadas coisas, as pessoas de cinquenta calam-se!

António Lobo Antunes citado de memória, depois da elevação do PSA (ver posta de pescada abaixo).

[a angústia de escrever] urologices

Eugénio de Andrade faz-me muita falta. Ele sofria horrores a escrever. Demorava às vezes um mês para fazer um poema de três ou cinco versos, sobretudo no fim da vida, quando a poesia dele se tornou mais densa. Antes tinha imensa inveja dos poetas. Pensava que aquilo se fazia como quem mija: a gente sentava-se e aquilo saía.

António Lobo Antunes (antes da elevação do PSA*)

*Prostate-specific antigen.

[aviso] ignore este aviso





Estou prestes a explodir... Não sei se aguento muito mais as saudades do país onde os embondeiros nascem com as raízes para cima, cumprindo um castigo milenar de Muluku, o deus dos antepassados, onde o sol rompe de manhã vindo das águas mornas do Índico e se põe ao fim da tarde sobre a savana... a terra onde posso chorar mais perto do céu a perda do meu filho adoptivo. É que eu quando choro, choro sempre com o corpo todo e quando tomo uma decisão vou junta com ela. Se um dia destes me for embora já sabem para onde fui...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

[what happened in barajas...] stayed in barajas

Segundo acto: Um vulcão milenar e incontinente, um primeiro encerramento de espaço aéreo que nos passou totalmente ao lado, a reabertura do mesmo espaço aéreo na única janela de oportunidade em que poderíamos regressar (mas como eu sempre digo, vale sempre mais um just in time do que um near miss...), um vôo miraculoso cuja natureza divina nos passou totalmente ao lado, um desvio na rota de que mal nos apercebemos e cujo motivo nos passou totalmente ao lado, um cancelamento de vôo que nos fez finalmente entrar na realidade a dois mil quilómetros do ponto de partida, uma reportagem televisiva enquanto dormitávamos acantonados no chão do aeroporto de Barajas e que servirá de justificação a apresentar no emprego se passar em Portugal, um autocarro alternativo várias horas depois, descobrir que ao nosso lado ia uma excursão de alentejanos, vários deles membros de um coro e com a convicção de que tinham boa voz (infelizmente não tinham...), a redescoberta da proverbial capacidade dos médicos de dormir nas condições mais adversas, a oportuna reabertura do espaço aéreo já a meio da viagem.

[what happened in nice...] stayed in nice

Don't ask... These were the remains of Côte d'Azur...

Primeiro Acto: Uma leve sensação de corpo estranho, quatro dioptrias que se tornaram visíveis, a mesma frase repetida até à náusea de duas em duas horas, que incluía as palavras colírio, cipro e uma hipotética ida ao serviço de urgência, uma empregada de limpeza hiperactiva, uma lebre ligeiramente mal passada, uma intrigante adenomegália cervical que se revelou afinal uma francesinha tularense, uma barra de sabão fino de Marselha, uma écharpe de penas amarelas (entre o kitsch e o provocante), um gin sem água tónica, uma medalha de prata em Brinholas, um expresso para oriente à beira-mar, uma tribuna improvisada para a fórmula 1 de Monte-Carlo, a demanda por um jardim exótico, a suspeita de que o jardim afinal não existia, a construção de uma demanda pessoal que incluía o Santo Graal, um troglodita da Capadócia e o mesmo jardim exótico, um concurso adolescente, duas equipas improváveis, uma vitória por uns esmagadores 3-1, um desastrado lapso linguístico que gerou a confusão entre um oxímoro e um parasita intestinal, várias extravagâncias culinárias, a promessa irregularmente cumprida de não regressar no dia seguinte.