(...continuação)
– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...
Chegámos rapidamente à Auto-Nampula, quatro ou cinco ruas acima, mesmo ao lado do Shoprite, um supermercado sul-africano limpo, moderno, com cores garridas e grandes balcões, que explora obscenamente tanto os clientes como os empregados e em frente ao qual os seguranças não nos deixaram estacionar, mesmo sendo por poucos minutos, como explicámos, porque perdiam visibilidade na rua para detectarem potenciais ladrões... Mas eu tenho fé e, perdoem-me os instintos demolidores, acredito que estes estabelecimentos serão os primeiros a serem saneados quando vier a revolução! Quer dizer, revolução é maneira de dizer... quando o desenvolvimento for sustentável e não esta exploração desenfreada que não cria riqueza nenhuma... Mas voltemos à questão da prótese dentária, que eu até nem gosto de discutir ideologias, sobretudo quando estou a meio de uma oportunidade única, que é contar uma história sobre uma prótese dentária num texto sobre Moçambique... Estávamos na Auto-Nampula. Fomos imediatamente atendidas pelo dono, de quem as Irmãs são clientes regulares.
– Mostre lá a placa, Irmã... Hum... [Ou foi impressão minha ou o senhor fez um ar levemente enojado?] Não me parece que seja possível. Com os nossos ferros de soldar vai ser pior a emenda que o soneto...
– Mas não pode sequer tentar? Assim como assim... partida já está ela.
– Não, há um latoeiro por aqui que é mais jeitoso para estes trabalhos assim pequenos...
– Um latoeiro? – As Irmãs já nem tinham ânimo para se escandalizarem... – Onde é que o podemos encontrar?
– Vou pedir para vos levarem lá. Eu levava-as pessoalmente, mas tenho muito trabalho e é preciso saber falar Macua...
– Tudo bem.
Chamou um empregado.
– Leva as Irmãs ao senhor que conserta as panelas aqui no bairro, como é que ele se chama? Lanceta, não é?
– Lagarto, patrão.
Seguimos o empregado africano para fora da oficina à procura do tal senhor Lagarto que saberia fazer soldaduras delicadas. O empregado não podia ter mais de 17 anos e tinha uma agilidade para saltar montes de entulho, aglomerados de lixo e poças de lama que nos fazia sentir ridículas de cada vez que enterrávamos os sapatos em mais um monte de qualquer-coisa-que-nem-quero-ver-o-que-é. As Irmãs, do mal o menos, ainda estavam de sandálias, mas eu tinha decidido ir à Catedral e ao Hospital Central de sapatinho de salto alto e calças de seda, que agora iam a rojar pela lama... É tão triste ser loira, benza-nos Deus... Mas paciência. Para trás é que eu já não voltava!
Seguíamos pelo meio das ruelas ladeadas por palhotas e algumas construções comerciais de cimento, algo toscas e com os nomes mais improváveis: a “Barbearia Alvalade XXI”, uma latrina que ostentava a pomposa informação de que se tratava de uma "Casa de Banho Pública Para Necessidades Maiores e Menores", a inevitável barraquinha de Coca-Cola... Algumas crianças que brincavam na rua paravam para nos dizer adeus ("Tatá, Irmãs!"), um pouco divertidas com o nosso ar espavorido.
– Começo a achar que isto não vale uma dentadura... Que raio de ideia a nossa! – desabafou a Irmã Conceição.
– Bem, mas já agora que aqui estamos...
Chegámos, por fim, ao "estabelecimento" do Sr. Lagarto, surpreendentemente um benfiquista ferrenho, cuja casa tinha emblemas do Benfica de vários tamanhos colados nas janelas e pintados nas paredes exteriores. Consertava algumas peças de metal à porta de casa e não deu pela nossa chegada.
– Ihali, papá? – Cumprimentámo-lo.
– Boa tarde, Irmãs.
O empregado da oficina falou com ele em Macua, após o que pediu para ver a prótese dentária. Examinou-a longamente sem dizer palavra e, por fim, disse qualquer coisa que não compreendemos ao empregado.
– Quanto pede pelo trabalho? – Perguntámos.
– Não, não está a botar preço. Está a dizer que há outra pessoa que pode fazer este trabalho muito melhor.
– O que é que faz essa pessoa?
– Arranja câmaras-de-ar de bicicletas.
(Suspiro... Um ligeiro elevar dos olhos para o céu... Bem, mas quem recorre a um latoeiro para consertar a placa também pode procurar um homem que conserta câmaras-de-ar de bicicletas, penso. As Irmãs, pelos vistos pensaram o mesmo.)
– E fica muito longe daqui?
– Não, é já ali.
(continua...)
Nota: Ao contrário do que dizem as más línguas, esta história teve mesmo um fim. Um pouco inesperado, é certo, mas a história não tem culpa disso. E a realidade também não tem a menor obrigação de ser previsível. De qualquer modo, desde o início que já estávamos a trabalhar no campo do improvável... Lamento mas este blog não possui livro de reclamações.
Oh for goodness' sake... Sapatinho de salto alto e calças de seda?! O Curry em dia de chuva n te ensinou melhor? ;)
ResponderEliminarBem, mas esta história é absolutamente genial. *
PS: vivesse eu em Moçambique e palavra q havia de fazer os possíveis para *só* cortar o cabelo na Barbearia Alvalade XXI!
Mr. McGeddes, muito obrigada pelo seu comentário elogioso do Sporting (parece que este ano os Sportinguistas desapareceram no éter, o que muito me desalenta...).
ResponderEliminarQuanto ao "sapatinho de salto alto", há uma coisa que posso alegar em meu favor. Como constatou no início do post, na altura corria o ano da graça de 2004. Sim (faça as contas), isto sucedeu antes de eu ter entrado para a Grande Escola! Hoje certamente que não sucederia, que o Hospital do Rego me ensinou melhor.
(Ufa...)
Beijinhos.
Hmm... ok, point taken :) Em todo o caso, e fazendo a piadinha com o teu célebre e mui louvável espírito de missão, diria q n deixou de ser uma ideia "peregrina" ;)
ResponderEliminarNevertheless, n tenho moral para acusar: se um dia te contar metade das ideias tontas q já tive ficas com material para um ano de blog... *
estou para aqui a rir-me à gargalhada, a casa em silencio e tudo a dormir, e o marido a reclamar "estas para ai a rir-te sozinha?" e eu nem lhe tentei explicar que não estou sozinha lol
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