Serviço de Urgência há duas semanas. Uma menina cigana com sinais meníngeos, febre elevadíssima, muito prostrada. Mãe cigana muito jovem e muito assustada. [Isto promete...] Explico-lhe, com muito cuidado, que temos de "tirar líquido da espinha" à menina para ver se é mesmo meningite.
- Mas isso dói, Senhora Doutora?
- É mais ou menos como fazer uma epidural. Quando teve a sua menina fez epidural?
- Sim.
- E não doeu muito, pois não?
- Não. É a mesma coisa?
- Sim, não se preocupe. O problema é que ela tem de ficar quieta e por isso temos de a agarrar. Ela vai ter medo.
- Está bem.
[Bem, isto se calhar é capaz de nem correr muito mal...] Levamos a menina para a sala de tratamentos com a jovem mãe assustada, a chorar num choro meio carpido, meio gemido, meio cantado [o que daria, bem contadinho, um choro e meio, mas escusam de reclamar, que isto é apenas um blogue, não é contabilidade]. Quando está tudo a postos convido-a a sair da sala porque é um procedimento "que faz muita impressão", mas ela recusa. Deixo-a ficar, sob o olhar reprovador do enfermeiro-chefe, que achava que seria melhor a mãe sair.
Durante a punção lombar a menina debate-se, tenta espernear e a mãe descontrola-se. Sob o olhar de "Eu bem avisei!" do enfermeiro-chefe, a jovem mãe grita, chora, arrepela os cabelos, chama-me nomes. Só não me agride porque estou resguardada entre dois enfermeiros e a marquesa. A punção, felizmente, corre sem problemas. [De onde se constata que se a situação bem prometia, melhor cumpriu, que a situação é uma situação cigana, pobrezinha mas honrada, ora essa.]
- Mas porque é que está tão aflita, mãe? Eu prometo-lhe que vamos cuidar bem da sua menina.
A mãe cai em si e começa a chorar mais controlada. [Obrigada, minha Nossa Senhora dos Aflitos, a ver se isto 'inda se compõe...]
- Também estou aqui sozinha... - desabafa - vou telefonar à minha mãe.
- Isso, vá chamar a sua mãe - respondo, solícita -, olhe que nós também sabemos que isto é dose, não deve passar por tudo sozinha...
[O olhar do enfermeiro-chefe, agora absolutamente furibundo, faz-me perceber que se calhar acabei de perder mais uma oportunidade para ficar calada...]
- Muito bem, Doutora! Agora, para além de termos uma menina com meningite para cuidar, vamos ter de pôr a polícia à porta para não deixar a família toda invadir o serviço.
- Mas, Sr. Enfermeiro, ela é tão jovem e estava tão desnorteada... Metia dó. [Bem... nada me garante que a mãe vai conseguir acalmá-la... Realmente em matéria de histeria, pior do que uma cigana, só mesmo uma família inteira de mulheres ciganas... O melhor é não dizer mais nada.]
O líquido sai límpido, como cristal de rocha. Um suspiro de júbilo de toda a equipa. A menina fica muito melhor depois da punção. Diz que a cabeça deixou de doer, quer deitar-se e adormece tranquilamente. É uma meningite viral!
Vou ter com a mãe e dou-lhe a boa notícia, que a filha ficou logo muito melhor e que a meningite afinal parece ser causada por um vírus. Uma longa explicação sobre o que é que isso quer dizer...
A mãe, felizmente, percebeu a explicação e acreditou em mim, porque dali a pouco veio uma enfermeira dar-me os parabéns por ter conseguido acalmar a mãe:
- Ouvi-a dizer ao telefone que a menina tinha uma "mingite" na cabeça, mas que era fraca e por isso não era preciso vir a família toda!
Gosto desta escrita corrida e cristalina. É como ser levada pela corrente de um rio, nunca para, mas que por vezes tem quedas de água que o fazem aumentar a velocidade e a adrenalina sobe a pique.
ResponderEliminaropa morri a rir! lindo!!!
ResponderEliminarC.L
Bolas! Eu sabia que isto tinha algo mais antes do desfecho que havias contado!
ResponderEliminarBeijinho
Sim, duas ou três peripécias mais... Não tão divertidas como as tuas histórias, mas ainda assim...
ResponderEliminarBoa tarde dou os parabens,pelo post gostava de ter assim essa queda para a escrita como tu tens.
ResponderEliminarSobre os medicos,tinha um medico meu amigo(já falecido)que dizia,que quando o medico salva,a familia dizia que era milagre da nossa senhora,quando o paciente morria,tinha sido o filho da puta do médico.
ps:peço desculpa pela linguagem,mas a melhor homenagem que se pode fazer a alguem desaparecido,é não alterar a história.