Agosto de 2006. Iapala depois de jantar.
À porta do hospital está um homem com uma criança que aparenta uns oito ou nove anos, pai e filho sentados no chão, com o menino reclinado sobre o tronco do pai, entre as suas pernas abertas – cuidado habitualmente dedicado aos doentes e sinal inequívoco da sua preocupação pelo filho. Ao lado uma bicicleta e um cesto com roupa e comida. Nestes dias já aprendi a descortinar estes pequenos sinais: vêm de longe... Assim, a esta hora, para além dos cuidados médicos, é necessário providenciar-lhes também o jantar e uma cama para dormirem. Abaixo-me para os cumprimentar, tal como aprendi com a Irmã Lurdes, sinal de boa educação nesta cultura – cumprimentá-los de pé teria sido provavelmente interpretado como rudeza ou arrogância da minha parte – e só então os convido para entrar.
- Ihali, Irmã? – cumprimenta-me o pai.
Já nem sequer tento desfazer o engano. Não há maneira de convencer as pessoas de que não sou religiosa e não me devem tratar por Irmã. De qualquer modo acho que não acreditariam em mim, se já tenho mais de vinte anos e não tenho filhos...
O menino parece ter-me compreendido e põe-se de pé rapidamente, encarando-me de frente com um olhar vivo e intenso, algo extremamente raro que me surpreende, já que as crianças habitualmente desviam o olhar envergonhado quando as observo. Desta vez, então, fiquei cativada à primeira vista! É um menino adorável. Para além disso, posso apreciar que tem bom estado geral, uma aparência razoavelmente cuidada para os padrões daqui, sobretudo considerando que deve estar em viagem há algum tempo. E não parece de todo estar doente...
Ao que me dizem, estão de viagem, sempre de bicicleta, há mais de dois dias e no mapa consigo encontrar o nome da aldeia de onde vêm: fica a cerca de 100 km daqui e não há sequer estradas nessa direcção por onde possa passar um jeep! Ao longo da conversa o menino continua a surpreender-me com uma inteligência e vivacidade invulgares e um domínio da Língua Portuguesa nada comum para uma criança que viveu toda a vida numa aldeia isolada. O motivo da consulta, pelo que consegui perceber, é uma dor intensa na perna, embora objectivamente não consiga descortinar qualquer lesão.
Nos meus primeiros dias em Iapala costumava surpreender-me com o cuidado extremo que os pais dedicavam aos filhos, já que em Portugal as famílias numerosas que vivem abaixo do limiar de pobreza são geralmente famílias disfuncionais e as crianças demasiadas vezes vítimas de maus tratos e negligência. Mas aqui os pais de família têm os filhos como a sua primeira preocupação, falam deles como a sua riqueza mais estimada, tal e qual como se fossem o filho único de um casal europeu. Mas mesmo assim, há qualquer coisa aqui que não bate certo... Uma dor que não impede a marcha nem as actividades normais parece-me muito pouco para o esforço de uma viagem tão grande e arriscada.
O pai tem bastante mais dificuldade no domínio da língua e parece ansioso, tentando explicar-me qualquer coisa de preocupante no estado de saúde do filho, mas que não compreendo. Já virei o miúdo dos pés à cabeça e a única coisa que consegui objectivar é que se encontra subfebril e um pouco inquieto, a roçar o agitado. Mas mais provavelmente se trata de malária do que outra coisa qualquer mais grave.
Não entendo... Só se estão de viagem para qualquer sítio e passaram por aqui para poderem dormir abrigados e tomar uma refeição quente. É uma hipótese que me parece muito mais plausível. De qualquer forma, geralmente sobra um pouco de comida e temos duas camas vagas no quarto do isolamento que se podem perfeitamente ocupar por uma noite. E quem é que os poderá censurar? Mais vale que durmam aqui do que ao relento no mato, onde há tantos perigos, e não comer depois de uma viagem tão extenuante deve ser horrível.
Em poucas linhas a nota de entrada fica feita: amanhã se fará o teste para ver se o menino de facto tem malária e vou falar com um servente para lhes providenciar a acomodação. Agora a dúvida: perante uma suspeita tão ténue de malária não complicada devo tratar já ou não? Decido-me a não tratar sem fazer o teste primeiro. Vou-lhe dar apenas um paracetamol para lhe aliviar a dor na perna e baixar a temperatura... Regresso então com o comprimido e um copo de água mas, quando o entrego ao menino, este dá um grito apavorado... Gelei.
(continua...)
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