Na minha chegada ao Gilé (Zambézia) em 2008, já veterana nestas andanças do voluntariado, encontrei, no meio das meninas que viviam com as Irmãs e que dançavam para me receber, uma que de raspão me fez reparar nela porque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmo tempo estranhamente familiar... (os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam facies sindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meio da savana, portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momento estava demasiado ocupada a derreter-me toda e a babar-me com as danças e cânticos de boas-vindas e a surpreender-me com o alarido e a algazarra que trinta adolescentes conseguem fazer e a cumprimentar as meninas que já me conheciam do ano anterior e que insistiam em vir dar-me um beijinho...). Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras da mente.
Nessa tarde, depois de me instalar na casa das Irmãs, fui dar um passeio de reconhecimento e a Irmã Lurdes, a minha mamã africana, pediu a duas meninas para me fazerem companhia (não fosse eu perder-me... sim, eu confesso, em qualquer sítio por onde passe a minha quase completa ausência de sentido de orientação torna-se uma lenda... eu não devo ter um pingo de androgénios no cérebro, valha-me S. Cristóvão!).
Uma das meninas que me acompanhou era a mesma que me tinha chamado a atenção à chegada e, à segunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que ela tinha de especial: um pescoço largo com uma espécie de "asas", um tronco largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebi a ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza. Era de livro.
Aproveitei para meter conversa:
- Como te chamas?
- Artemisa, tia P.
- Que nome tão bonito. É o nome de uma planta de onde se extrai um remédio contra a malária, sabias?
- Sabia, sim, as Irmãs já me tinham dito.
- E em que classe estás na escola?
- Estou na décima primeira.
- Ah, muito bem. E quantos anos tens?
- Tenho vinte.
- Olha... e diz-me uma coisa, já és menstruada?
- Não, tia P. - o seu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tacto - Ainda não...
Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia animadamente a conversa sobre o dia-a-dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem.
Para qualquer adolescente ocidental um atraso no início menstruação pode ser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamento social! Não sendo menstruada não poderia participar no ritual de iniciação e, portanto, nunca viria a tomar parte em cerimónias tradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres - os mais importantes ritos das sociedades africanas - seria sempre tratada por todos como uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar e muito menos ter filhos ou adoptá-los porque nenhum homem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação. E a única condição que confere estatuto social a uma mulher africana é a maternidade. Sem apelo nem agravo esta menina estava condenada a ser infeliz...
No dia seguinte, depois de regressar do hospital sentei-me na varanda e, pelo canto do olho vi a Artemisa respirar fundo, como que a ganhar coragem para se aproximar.
- Tia P., posso conversar consigo?
- Sim, claro, com muito gosto.
- A tia P. ontem perguntou-me se eu já era menstruada. Como foi que adivinhou?
(Engoli em seco... ela tinha ido direita ao assunto...)
- Bem, eu sou médica, como tu sabes... Ontem reparei que ainda não tinhas o peito desenvolvido...
- Sim, mas não foi só isso. Podia ter só o peito pequeno e estava com uma blusa larga.
- Bem, sim, tens razão...
(Mas como é que eu poderia explicar, assim de chofre, a uma menina, nascida e criada no meio do mato, numa sociedade cheia de ritos, crenças e tabus que ela tinha uma doença genética?)
- Mas, tia P., a tia P. sabe por que é que eu ainda não sou mulher? Isto é feitiço ou é doença? Todas as pessoas me dizem que não sou mulher porque o meu pai se casou com uma esposa que não era Macua e por isso eu agora tenho uma doença tradicional... Ou então que é feitiço...
(Estava impressionada com a forma directa com que ela abordava um assunto que certamente a oprimia, lhe quebrava a auto-estima e a haveria de impedir de ser feliz. Ela devia ser uma mulher de armas! E parecia ter as ideias claras. Pelo menos tinha crítica sobre as crenças tradicionais...)
- Ao certo não sei, mas posso ter uma ideia, Artemisa...
Lá me enchi de coragem para explicar, da maneira mais simples e leve possível, os fundamentos da doença. Surpreendeu-me ao reconhecer de imediato os conceitos de "cromossomas" e "genes" percebendo perfeitamente o que eu lhe estava a querer transmitir. Mas a surpresa maior ainda estava para vir:
- Pois, tia P., no ano passado, na décima classe, aprendemos as doenças dos cromossomas e eu depois de estudar pensei que podia ter a Síndrome de "Túrner", mas não tinha quem me confirmasse...
Não podia acreditar... Uma jovem, nascida e criada no meio do mato, numa povoação em que o analfabetismo quase atinge os três dígitos, tinha feito o diagnóstico a si própria de uma doença genética! Os tempos vão mudar, Moçambique!
Todas as histórias têm um epílogo. E esta teve um final feliz. Claro que quando cheguei a Portugal não descansei enquanto não arranjei forma de enviar a medicação necessária para induzir uma puberdade artificial à minha menina-prodígio. Tive o cuidado de, na carta em que lhe explicava como tomaria as hormonas artificiais, escrever também que ela poderia menstruar mas seria quase impossível ter filhos. Mas ela respondeu-me, tempos depois, que isso já não seria problema de maior. Poderia sempre adoptar uma criança. Ou não se casar de todo. O importante era conquistar o lugar que a sociedade injustamente lhe negava pela sua doença. E, há alguns meses, recebi uma mensagem eufórica dela a dizer que já tinha cumprido ritual de iniciação!
Espero, do fundo do coração, que sejas feliz, Artemisa!
Querida Tia P.
ResponderEliminarAs minhas crianças estão em muito boas mãos! Não me canso de te ler e emociono-me sempre. Não pares, combinado?
Beijinhos
J., Mãe do D e da tua xará
Beijinhos e muito obrigada!
ResponderEliminarVolta sempre.
A Xará da minha Xará.
:) Gostei tanto deste cantinho, que já li quase tudo... è sempre bom encontrar pessoas com tudo dentro, parabéns por seres uma pessoa muito bonita.
ResponderEliminarGostei.
Já consegui ler tudo, és mesmo especial e ainda bem.. Ana Matos
ResponderEliminarfiquei tão emocionada com esta história. que diferença pode fazer na vida dessas meninas, meninos, mulheres... de todos. e que diferença faz um olhar atento e uma preocupação sincera. estou mesmo sem palavras.
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