sexta-feira, 30 de abril de 2010

[a vida é simples] ...ou pelo menos devia...


Esta ficou-me atravessada... A Igreja de Murrupula (Nampula), restaurada pelos Missionários de S. João Baptista, tinha originalmente sobre o altar uma pintura plena de significado religioso e histórico, resumindo numa parede as origens de um povo, os descobrimentos, a colonização, a guerra civil e os dias actuais, em íntima comunhão com a vida de Cristo.

No entanto, antes da inauguração, o Bispo de Nampula não aprovou a pintura, alegando que colocar factos históricos sobre o altar "não era litúrgico" (sic), pelo que os missionários se viram obrigados a pedir ao artista que a substituísse por outra, mais liturgicamente correcta, mas mais pobre em significado, mais vazia de sentimentos, menos inpiradora para o povo...

Não compreendo. Ainda se a sentença tivesse vindo de outra cabeça menos esclarecida, menos viajada... agora vinda de um homem que estudou História Universal e História de Arte, habituado a visitar igrejas em toda a Europa... como pode não aceitar a criatividade de um artista que tenta reinventar a vida de Cristo na voz do seu país?

quinta-feira, 29 de abril de 2010

[o rei vai nu] welcome to swaziland



Corria o ano da graça de 2003 (estou sempre a repetir-me, mas para quem só chegou agora, foi o meu ano dos encantos de primeira vez em África) e, depois de três semanas no meio da savana, na Casa do Gaiato, fui passar o fim-de-semana com uns amigos à Suazilândia, país minúsculo cuja distância entre fronteiras é mais ou menos equivalente à fila na A2 para Lisboa num dia de chuva (ok, ok, é um pouco maior... passa bastante mais que a segunda ponte do Feijó, vá...). Um país com contrastes violentos, montanhas lindíssimas, reservas naturais que são o paraíso do birdwatching, plantações de cana-de-açúcar a perder de vista e tradições inacreditáveis e anacrónicas que fazem as delícias dos amantes do National Geographic e o arrepio dos movimentos em defesa da dignidade da mulher. Por exemplo, todos os anos, mais de cinquenta mil virgens (!) vão em topless em romaria até ao palácio real oferecer uma cana-de-açúcar ao rei, numa cerimónia tradicional em que este escolhe uma delas como esposa - a poligamia, aliás, é aceite como natural e é regra em todo o país.

No final do primeiro dia fomos jantar ao Royal Swazi Sun Hotel e, à entrada, os meus amigos comentaram uns para os outros:
- Olha, está cá a família real.
Olhei para o lado e vi alguns homens de smoking, lado a lado com outros meio despidos, cobertos parcialmente com peles de animais, panos coloridos e com colares tradicionais ao pescoço. Choquei-me...
- Que horror, olhem como é que eles tratam os empregados, fazem-nos andar meio despidos como se fossem selvagens.

Os meus amigos olharam-me, boquiabertos, como quem tivesse acabado de perceber que eu era loira e, mesmo assim, não acreditava no que tinha acabado de ouvir...
- Mas os empregados são os que estão de smoking... a família real é que anda sempre despida. É o traje tradicional.

Sinceramente, acham-me capaz de ter adivinhado uma improbabilidade destas? Já só falta dizerem-me que o rei também vive numa palhota! Ah... Ai vive, é? Hum... Ok, pronto, é lá com ele. Estes Suazis são doidos!

[as melhores do serviço de urgência] veja lá se ainda lhe compra uma placa...

- Ó Doutora, o meu menino já anda há meses a babar-se e a colocar os dedos na boca, aflito das gengivas e nunca mais lhe nasce dentinho nenhum... Nós levamo-lo à praia, damos-lhe óleo de fígado de bacalhau e nada.

(Era um lactente de cinco meses!)

- Ah, não se preocupe, isso é normal. E com cinco meses nem sequer tem a dentição atrasada. Deixe cá ver... bem, ainda não há sinais de dentinhos a querer romper, mas mais mês menos mês já começam a nascer.

- Ó Doutora, mas isto é mesmo normal? Veja lá, se for preciso levo-o ao dentista!

(Tive mesmo de deixar cair o espéculo do otoscópio para esconder a cara porque só me apetecia sorrir às gargalhadas.)

[obsessão além-mar] também tu, cabaceira?

[pequenas vocações] vai ser psiquiatra

É oficial. O livro preferido do meu sobrinho é o DSM-IV. Eu já lhe tentei trocar as voltas, esconder o livro, colocá-lo ao lado de outros cheios de desenhos apelativos com animaizinhos e carrinhos, arrumá-lo na estante ao lado de outros com lombadas azuis muito parecidas, mas ele não se deixa enganar. Decidiu, sem apelo nem agravo, que o DSM-IV é que é o livro ideal para fazer de pista de aterragem para os seus aviõezinhos e de plataforma de lançamento para os carrinhos de corrida. Cada um é para o que nasce!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

[coisas que guardei] sem que isso faça de mim ocd

Perfeito, perfeito era o local ter ficado marcado por algo, ainda que subtil (uma folha de papel muito importante, uma pena de pavão ideal para o meu colar preferido ou mesmo que até um dos gatos não se importasse de ter ficado por ali a assinalar o local e fosse preciso alimentá-lo), que nos desse uma desculpa para nos obrigar a voltar ao ponto de despedida.

[welcome to mozambique] improbabilidades



Improvável é ir à prisão do Gilé (Zambézia) visitar os presos, bater à porta e ser um dos presos a abrir e convidar-nos para entrar... Welcome to Mozambique!

- Mas, Senhor Guarda, são os presos que abrem a porta? Eles não fogem?
- Não. - com um sorriso - Eles são bonzinhos... E saem todos os dias connosco para ir trabalhar na nossa machamba.
- Mas nunca tentaram fugir?
- Uma vez, sim, mas foram pela estrada e apanhámo-los logo a dois quilómetros daqui...
(Ele há coisas que se eu não tivesse visto não acreditava...)

[inspiração para uma despedida] não vamos tentar compreender mais nada

- Nada é simples. Asseguro-lhe que nada é simples. Sou professora de ballet há 30 anos e nada é simples...

Diálogo final de Hable con Ella de Pedro Almodóvar.

terça-feira, 27 de abril de 2010

[diferenças] as ovelhas negras do rebanho



Não é fácil crescer sendo albino em parte nenhuma do mundo. As crianças correm sérios riscos de sofrer queimaduras solares graves, tumores malignos da pele, cataratas, retinopatia e o diabo a quatro (ou a sete, se preferirem, que um diabo nunca vem só e quatro diabos muito menos)... Em Moçambique, no entanto, ser albino é ser um alvo fácil.

Caso sejam protegidos pelas famílias, o melhor que lhes pode acontecer é serem apenas vítimas de discriminação e ser alvo das superstições mais cruéis. Alguns dizem que ter nascido albino é feitiço, outros pensam que se trata de pessoas vindas do outro mundo, outros chegam a pensar que são filhos do diabo e que os albinos não morrem, desaparecem. Em Angola, há alguns anos, um curandeiro muito respeitado chegou a dizer a vários dirigentes políticos que eles estavam imunes à SIDA, devendo apenas ter alguns cuidados básicos de higiene, como não ter relações sexuais com albinas*. É claro que metade deles estão agora infectados com o vírus...

As mães das crianças albinas que vi no hospital tinham, invariavelmente, um olhar assustado e triste e baixavam os olhos quando as outras mães com crianças normais as olhavam de frente descaradamente. Como se o facto de os filhos terem nascido albinos fosse a prova material de algum tabu quebrado por elas (tinham certamente cometido algum pecado inenarrável que agora estava à vista de todos). Da minha parte tinha sempre o cuidado de lhes oferecer protector solar, perguntar se a família se tinha desfeito após o nascimento da criança (e por demasiadas vezes tinha mesmo) e de pedir o apoio das Irmãs para a mãe e para a criança caso o pai as tivesse abandonado.

Mas, pior ainda, se as famílias não os protegerem, os albinos podem tornar-se bodes expiatórios das catástrofes naturais e das suspeitas de feitiços. Volta e meia nos jornais lêem-se as notícias de atrocidades cometidas sobre os albinos, vítimas de linchamento, geralmente por acusações de feitiçaria. Paradoxalmente (ou, se calhar na mesma linha de raciocínio, não entendo muito bem), alguns órgãos internos dos albinos são considerados como tendo poderes mágicos para a realização de feitiços, pelo que são muitas vezes também vítimas de rapto para tráfico de órgãos.

Daí que quando estive na Zambézia tenha ficado por demais agradada por ver albinos frequentar a escola, passear tranquilamente na rua, brincar com outras crianças. E vi muitos adolescentes quase adultos. Vivos. Todos vivos e bem tratados. É pela forma como as pessoas lidam com a diferença que se conhece a qualidade de uma sociedade.

* Valha-me Nossa Senhora do google se, depois dos sportinguistas, dos benfiquistas e dos voyeristas, agora são os fetichistas que me invadem o blog.

[momentos nicola]


Um dia vou dormir na praia como se a noite não viesse nunca, como se o sol não queimasse, como se amanhã não fosse vir. (Hoje foi o dia.)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

[a riqueza de moçambique]






Grande é a poesia, a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças.
F. Pessoa
(Isso e brincar na rua o dia todo como se não houvesse amanhã...)



domingo, 25 de abril de 2010

[momentos nicola]



Um dia vou ver de novo o sol nascer sobre o Índico.

[nomes que dizem tudo #8] adivinhem o nome do pai...

Um dos últimos meninos que observei em Iapala chamava-se... tchanannn... "Parabéns António" (atentem no número 61 da imagem acima que não me deixa mentir). Era filho da D. Aida e, obviamente, do Sr. António. Nasceu no dia de aniversário do pai.

sábado, 24 de abril de 2010

[nomes que dizem tudo #7] mas que ninguém pronuncie, por favor

Hemerdulino?! Mas isto não acaba, minha Santa Eufrásia? Não passam 24 horas num serviço de urgência que não dê de caras com uma criança com um nome improvável. Por favor, senhores! Querem que reproduza aqui a lista dos nomes autorizados para se inspirarem? O nome é importante, caramba!

(Há tempos um colega meu também se recusou a ser padrinho de uma Cálida Brisa do Carreiro* alegando que era nome de vento quente...)

* Apelido fictício mas semanticamente equivalente.

[e porque a vida é simples] e a música também é para os leigos

E porque muita gente se queixa que os termos musicais são herméticos e não são imediatamente compreensíveis por amadores resolvi aproveitar este espaço para construir um pequeno glossário que alguns poderão achar completamente básico mas que talvez ajude uma ou outra pessoa a tocar de forma mais esclarecida algumas peças musicais.

- A cappella – Vamos tentar sem piano!
- Accellerando – Despachem-se, o maestro saltou uma página!
- Accopiato – Foi copiado!
- Acidente – Foi sem querer…
- Ad libitum – É como virar frangos…
- Adagio ma non troppo – Um iogurte apenas.
- Adagio molto – Um litro de iogurte.
- Afinado – Pelo menos vamos tentar começar na mesma nota…
- Al fine – Do inglês: Tudo bem.
- Allargando – Toquem devagar que o maestro está perdido…
- Appoggiatura – Desculpem, saltou-me um dedo…
- A prima vista – Para quem acredita no amor…
- A solo – No chão.
- A tempo – Mesmo em cima da hora.
- Baixo implícito – Um baixo que se insinua.
- Bocca chiusa – Como em “Tens a boca suja”.
- Bisbigliando – Meter o nariz, bisbilhotar.
- Brioso – Jogador do Académica.
- Brunette – Morena selvagem (valha-me Nossa Senhora do Google se com isto vêm cá parar mais horny bastards).
- Canon – Melhor que uma Sony (não confundir com Maria), mas pior que uma Nikon.
- Coloratura – Um desenho para colorir.
- Contratempo – Percalço, revés.
- Croma – Mais um elemento da caderneta.
- Da capo – Do princípio, mas desta vez sem erros!
- Dissonante – Nunca desafinado, ora essa!
- Flat – Sem ondas, como em “O mar hoje está flat.”
- Forte – Com algum excesso de peso.
- Fortissimo – Obeso.
- Gustoso – Saboroso.
- Harmonia – Quando atinamos com o acorde…
- Homofonia – Como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Improvvisando – Não sei muito bem como era…
- Incalzando – “My shoes were killing me…”
- Legato – Herança.
- Mancando – Coxeando.
- Meno mosso – Homens, cantem mais baixo!
- Monofónico – Sem piadinha nenhuma…
- Ouvido absoluto – Sim, tenho a certeza de que foi aquilo que ele tocou!
- Órgão – Parte vital de um músico.
- Parafonia – Como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Più mosso – Homens, cantem mais alto!
- Pizzicato – Uma com queijo, sem tomate.
- PochettinoO marido da outra senhora.
- Polifonia – Ou como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Precipitando – Está a chover.
- Presto – Como em “Eu não presto”.
- Prima Donna – A Diva.
- Prima volta – A prima já vem.
- Recitativo – Não encontro a música, mas estou à procura…
- Semicroma – Menos croma que a outra…
- Silenzio – Calem-se!
- Simile – Do inglês: Sorriam!
- Síncope – Colapso.
- Soprano – Aquele que sopra…
- Sotto voce – Só vozes, mas muito baixinho…
- Tardo - … mas não falho!
- Tónico – Tudo o que puder ser tomado com Gin.
- Traste – Velhaco, desonesto. Nota do autor: Esta qualificação pode ter gradações subtis, sempre definidas segundo o critério da maestrina, como primeiro traste, segundo traste… Já segundo os critérios das Divas, quanto mais trastes melhor.
- Tremolo – Um pouco nervoso.
- Triângulo – De comum acordo ou, como diria mais uma vez o Bispo de Lichinga…
- Trio – Um a mais!
- Uníssono – Vai ser desta que começamos na mesma nota!
- Variação – Desculpem, enganei-me outra vez…

[e porque a vida é simples] e a arte é para os leigos

Não compreendo as pessoas que dizem que não entendem a música contemporânea. Para mim é tudo muito simples: quando a música começa calamo-nos. Quando a música pára batemos palmas. No final do espectáculo levantamo-nos e, se estivermos na Gulbenkian batemos palmas e gritamos "Bravo", se estivermos na Aula Magna, no CCB, na Casa da Música ou equivalente, gritamos como se estivéssemos a fazer um alarido africano.

Vá, parem com essas lamúrias em dó de mim, que já não se usam.

[inspiração para uma despedida] queimar a ponte cá dentro do peito

We cross our bridges when we come to them and burn them behind us, with nothing to show for our progress except a memory of the smell of smoke, and a presumption that once our eyes watered.

Tom Stoppard in Rosencrantz and Guildenstern are Dead

[vozes brancas* #10] grande é a poesia, a bondade e as danças

Há anos atrás, durante um jantar de família uma prima perguntou-me onde seria o meu estágio seguinte. Respondi que na semana seguinte iria para o Egas [Moniz]. Nesse momento vejo a filha dela, salvo erro então com três anos, abrir muito os olhos, com um ar maravilhado:
- Vais para o Egas?! ... e o Becas?

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[vozes brancas* #9] os mistérios da ressurreição

Na Consulta da semana passada duas irmãs, uma de oito e outra de seis anos contavam-me das férias da Páscoa, de como se tinham fartado de brincar, de comer grandes ovos Kinder e de como tinham sido obrigadas pela avó a ir à missa durante três dias seguidos. E pergunta a mais nova:
- Mas Jesus agora está vivo ou está morto?
- Agora está vivo - responde a mais velha - mas para o ano já morre outra vez...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

[nomes que dizem tudo #6] mas que ninguém pronuncia...

(Contextualizando: Em Cabo Verde, tal como em muitos países africanos, as crianças recebem um nome com que são registadas à nascença e que se torna o seu nome oficial mas, a par desse nome, existe o "nome de casa" pelo qual são sempre tratadas pela família e amigos. Habitualmente não respondem de imediato pelo nome oficial e só o utilizam para assinar papéis e em situações afins.)

Ora, certa vez, nos cuidados intensivos do meu hospital estava internada uma menina natural de Cabo Verde cujo nome era Sony e a quem a mãe chamava de Maria. E diariamente era isto: Maria para cá, Maria para lá e, quando alguém lhe chamava Sony, a mãe insistia que ela gostava mesmo era de ser tratada por Maria, nome que tinha um grande significado na família e no qual tinha muito gosto. Nisto pergunta uma colega minha, chegada no dia anterior e com pouca vocação para mediadora cultural (cada um, hélas, é para o que nasce):

- Mas oiça, mãe, se gostava tanto de Maria, por que é que lhe chamou Nokia?

Isto tem dias muito divertidos... Mas a propósito, acho que podíamos ter aprendido qualquer coisa sobre isto nas aulas de Antropologia, em vez das especificidades da dinâmica interpessoal das vendedeiras ambulantes do Martim Moniz... E mais não digo.

[agradecimento público] em nome do meu mentor espiritual

Queria aqui agradecer publicamente ao Zyrtec [marca registada] por me ter tornado o último banco de 24 horas possível. E também à minha senhoria por o ter tornado necessário.
Um grande bem-hajam.

(Variações lúdicas de Victor Borge)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

[encantos de primeira vez em áfrica] querer voltar


Eu sempre tinha ouvido – e não acreditava – que África tem o dom do apelo, que quem a conhece quer sempre voltar... E a verdade é que África fica, África chama. África inflama! É lugar-comum nestas ocasiões falar-se romanticamente em feitiço ou em qualquer outra coisa de racional ou irracional, mas equivalente a feitiço. O feitiço de África... E eu, que sou uma mulher simples, sem quaisquer aspirações ao Nobel ou ao Prémio-Camões-pela-obra-de-uma-vida, não tenho a menor pretensão de fugir a lugares-comuns. Aliás, acredito piamente que foi o que aconteceu comigo...

Se alguma vez pensei que a minha experiência poderia ser uma aventura do tipo seen it, done it... got the t-shirt! estava muito enganada. Por acaso não tinha pensado, mas isso é totalmente irrelevante para o ponto de vista que estou a defender. E o desfecho teria sido exactamente o mesmo: a paixão é algo de mágico, fatal e inevitável.

Os meses que se seguiram à primeira estadia passei-os com uma saudade que me dilacerava e com uma sensação de perda que mal conseguia exprimir... Um ano depois decretei: Não, acabou-se! Não ia passar mais um ano naquela lamúria em dó de mim. Quando, por intermédio de um missionário amigo da minha família, entrei em contacto com as Irmãs de S. João Baptista em Moçambique e me disseram que me poderiam receber na Missão de Iapala (a 180 km de Nampula) para trabalhar no Centro de Saúde, foi como se tivesse ganho novamente a vida que me tinha escapado...

[as melhores do serviço de urgência]

- A sua filha sempre foi assim pequenina?
- Sim, Doutora, sempre.
- Mas nunca se tentou investigar por que é que ela é assim tão pequena?
- Não, Doutora, nunca... mas olhe, já viu o meu marido? Parece uma pochete...

(Sometimes paternity is not just a matter of opinion...)

E acrescenta um amigo meu: Ainda bem que já não estamos nos anos 80, de outro modo o senhor ter-se-ia arriscado a ser apelidado de "mariconera"...

[welcome to mozambique] os recados



A minha primeira estadia em Iapala começou mal. Cheguei com dois dias de atraso, preocupada porque podiam estar aflitos à minha espera mas, apesar de não haver telefone ou telemóvel em Iapala, já tinham conseguido avisá-los de que eu só chegaria depois.

Não tinha sido fácil… Enviar uma qualquer mensagem para Iapala era um projecto altamente planeado, que envolvia uma estratégia complexa, que era necessário seguir à risca. O processo iniciava-se com um tempo variável de antecedência, à noite depois do telejornal, altura em que se viam as previsões do tempo para os dias seguintes e se ponderava qual o dia mais propício, no qual as ondas de rádio poderiam vencer os 180 quilómetros barreiras, com saltos de obstáculos electromagnéticos, por cima de montes, montanhas, colinas e através de alguma trovoada fora de tempo na estação seca.

Felizmente que as ondas de rádio são uma invenção de países laicos e civilizados e não temem os deuses africanos e os seus maus-olhados, nem se desunham para cumprir os ritos sem os quais qualquer outro veículo de comunicação africano se atreveria a atravessar a sua própria terra. Já viram como seria se as ondas electromagnéticas tivessem de cumprir um ritual de três dias só para atravessar o monte Iapala, envolto em tantos mistérios e tabus...

Ora, pois, escolhido o dia, era necessário começar bem cedo a tentar telefonar para o último posto de telefone, que haveria de comunicar com o último posto de rádio, para além do qual não havia mais ondas aventureiras, nem postos receptores e onde o que alguma vez aconteceu de mais parecido com um choque tecnológico foi a colisão de uma carripana contra o gerador municipal, o mesmo que habitualmente fornecia toda a electricidade da localidade durante três horas por noite, das sete e picos às dez em ponto.

Começava, então o penoso trabalho de tentar negociar com o operador da tal última estação de rádio a transmissão do recado (telegráfico e simplificado ao máximo, não fosse distorcer-se a meio do caminho), ao condutor do chapa que partiria nesse dia para Iapala.
- Eu depois vou aí agradecer-lhe pessoalmente! - prometíamos, no meio de interferências de ruído branco - Diga, por favor, ao motorista do chapa que transmita à Irmã Lurdes o nosso recado. Quando ele lá chegar, ela também lhe vai dar uma boa pagela [gratificação].

Claro que com tantos intermediários pelo meio, todos se poderiam desculpar uns com os outros e exigir uma recompensa por um serviço que não tinham prestado. Por isso era tão importante escolher bem a data da comunicação de acordo com o estado do tempo, porque com chuva ninguém se põe a caminho para fazer favores a ninguém. Lá nisso... todos diferentes, todos iguais! E, com um pouco de sorte, muitas promessas e várias penhoras de honra depois, lá seguiam, o recado, a sorte e as várias promessas, a bordo do ubíquo e famosíssimo meio de transporte moçambicano rumo ao reino de Iapala. E contra todas as expectativas, vinte horas depois, o recado "Afinal chegamos no sábado. Irmã Conceição." chegou.

[os suicidas do costume] se pudéssemos voávamos


Esquece os caminhos e trata de avançar. Percamos o rumo! Eu sei que chegamos sempre onde é preciso. E na hora certa.

terça-feira, 20 de abril de 2010

[nomes que dizem tudo #5] ou bem... deixem lá...

É oficial. O google também o confirma. NINGUÉM se chama Heclisfonia. Ninguém mesmo, ouviram, pais da menina Heclisfonia? Em que é que estavam a pensar, valha-me Santa Eufrásia?

[inspiração para uma despedida] a vida é mais simples do que isso

Podias ter entendido o que esperava de ti. Até há pouco ainda estavas a tempo. Nunca precisei de palavras bonitas, de histórias de vida empolgantes, de projectos luminosos. Nunca precisei de noites inteiras sem dormir, de nasceres do sol em locais exóticos, de longas caminhadas orquestradas pela chuva, de sombras vadias à beira-mar. Só precisava que tivesses mantido aquele olhar limpo e a transparência do teu rosto...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

[metam xanax na água da torneira]

Calma, senhores, calma! Lembrem-se que Pompeia foi muito pior e na altura ainda ninguém precisava de ir a uma reunião urgente na Noruega nem entrava de urgência nos intensivos a três mil quilómetros no dia seguinte. Qualquer sociedade organizada tem um plano B. Até mesmo uma sociedade desorganizada, mas minimamente criativa, inventa um plano D e desenrasca-se. Aproveitem, por exemplo, para não fazer nada.
(Para o J. e a quem mais servir a carapuça).

[uma loira em áfrica] vamos às compras



E se de repente, no meio da savana, a assaltar o vírus do armário vazio, vulgarmente designado por "ai que não tenho nada para vestir hoje"? E se essa doença não fica devidamente tratada e evolui para "ai que gostava tanto de ter uns trapinhos iguais aos da Maria Francisca, que lhe ficam tão bem"? Pois... isto do voluntariado e do em-roma-sê-romano é muito bonito e na esmagadora maioria dos dias funcionava, mas consigo recordar-me nitidamente de uma ocasião em que a loira que há em mim saltou cá de dentro.

E então aconteceu. Foi no Gilé, Zambézia. No meio do mato. Abril de 2008. Saí do hospital à hora de almoço e fui às compras ao mercado. Qual não foi o meu espanto quando dei de caras com várias mamãs do hospital, que tinham tido a mesma ideia que eu (nada de extraordinário haveria nisto, não fosse dar-se o caso de estarem internadas...). Sorri-lhes vagamente, sem saber se as havia de cumprimentar ou dar-lhes um raspanete por terem saído do hospital... E comprei o que havia para comprar: capulanas. Felizmente eram bonitas (as mais bonitas que tenho, aliás) e no dia seguinte fui trabalhar de alma lavada.

Quando apareci de capulana no hospital no dia seguinte, ouvi alguns risos e um coro de vozes brancas a dizer qualquer coisa em macua que não percebi. Voltei-me para as crianças e perguntei-lhes de que se riam. Respondeu-me uma das mais velhas:
- Estão a rir porque não sabiam que a doutora também é mulher!
(Lindo, pensei, para estas crianças só é mulher quem usa capulana! E até me ir embora tive sempre esta desculpa fantástica para comprar mais capulanas e andar sempre vestida com panos coloridos. Para não confundir as crianças...)

domingo, 18 de abril de 2010

[os suicidas do costume] fazer a ponte cá dentro do peito...


Em Nampula, no meio do mato com as Irmãs, a caminho da campanha de vacinação:
- Mas, Irmã, nunca tem medo de atravessar estas pontes de jeep?
- Bem, medo sempre tenho, mas sei que Deus está connosco. [Como se dissesse "O meu pai é o dono disto tudo. Nada de mal nos pode acontecer!"]
- É que isto assusta um bocadinho...
- Podes sair e passar a ponte a pé que eu não levo a mal.
- Não, Irmã, não vou fazer isso. Não a vou deixar... e também não me serve de nada ser a única a sobreviver aqui no meio de nenhures...
- O segredo é meter a tracção às quatro rodas e não pensar em mais nada!

[o meu carro] loira sofre...

Meus queridos amigos,

Serve esta para partilhar convosco as minhas amarguras e desgostos, mas não acrescenta rigorosamente nada à nossa relação e no final não ficarão a saber nada mais de importante sobre mim, portanto só se tiverem tempo é que vos aconselho a ler até ao fim.

Na quinta à tarde fiquei sem carro e foi uma situação estranhíssima... Senti-me pior que uns pais de primeira viagem numa urgência às 4 da manhã... Tudo se resumiu a isto: o pobre do veículo que tenho sob meu comando, acendeu uma luz no seu interior. Alarmei-me. Não gosto de luzes, muito menos vermelhas e intermitentes dentro do carro. Telefonei para a Saúde 24, na pessoa do meu mecânico-always-on-call e perguntei-lhe o que é que aquilo queria dizer. Ele respondeu-me, falando-me como que a uma menina de cinco anos, que podia ser uma data de coisas, que provavelmente era falta de óleo e que não deveria andar nem mais um metro, que o carro podia arder! ("Loiras! Humpf..." Era o que a voz dele dizia...)

Arrepiei-me... Tinha estado alegremente com uma bomba relógio em meu poder e nem sequer tinha tido uma leve suspeita disso... Telefonei para a Assistência em Viagem a queixar-me de que o mecânico me tinha feito uma ameaça de bomba e que era preciso desarmadilhá-la. O reboque demorou horas até conseguir chegar ao fundo do parque do hospital porque se metia por todos os cantos por onde eu não o tinha mandado ir e, como já eram 16:00, aparecia sempre alguém a querer sair de onde ele tinha enfiado o camião, a apitar e a praguejar. Obviamente não era nada comigo, mas não tive muito sucesso a tentar convencer os vários proprietários envolvidos...

O senhor do reboque perguntou-me, então, já em terreno neutro, de que é que eu me queixava. E eu então falei-lhe da luz que se acendera no interior, do telefonema para o mecânico, da ameaça, do perigo, do óleo e da sua súbita e inexplicável fuga, da interdição de andar mais um metro que fosse, do medo, do pânico, do telefonema para a assistência em viagem... Ele então foi verificar o óleo e viu que não havia fuga alguma, estava no nível adequado. Já toda eu transpirava... Ficou a olhar para mim como se eu fosse uma anedota muito divertida... ("Loiras! Humpf..." Era o que o olhar dele bradava). "Então sempre quer rebocar o carro?" "Bem, sendo assim, vou ter de telefonar novamente ao mecânico a pedir ordens. Mas eu sinto que o carro tem qualquer coisa." O meu discurso até a mim já me soava como um delírio paranóide, mas enfim... Ao telefone o mecânico foi peremptório: "Reboque!" E ele rebocou. Fim da história.

Eu sei que é preciso tirar um curso para entrar num carro pelo lado do condutor, mas ninguém me avisou que estas coisas podiam acontecer assim sem aviso prévio... Isto não é para quem quer trabalhar, ó valha-me Deus!

Epílogo: E foi assim que fui pela primeira vez num comboio da Fertagus para casa, que fiquei sem carro e com uma sensação de absoluta irrealidade. Felizmente que, para repor a ordem no universo, ele já me telefonou a dizer que o carro não tinha, de facto, qualquer falta de óleo, mas uma falha eléctrica grave e que a minha intuição tinha sido óptima porque poderia ter ficado ontem mesmo no caminho...

[vozes brancas* #8] e vidas pequeninas

Quase todas as crianças, no seu processo de autonomização, necessitam de um objecto que as tranquilize nos momentos em que estão mais frágeis e sem os pais, como quando estão a adormecer sozinhas ou quando vão pela primeira vez para o jardim infantil. É habitualmente uma fralda com o cheiro da mãe, um peluche fofinho que podem abraçar... Aquilo que habitualmente as mães designam genericamente por "ó-ó" e os pediatras, mais cinzentões e menos expressivos, por "objecto de transição".

Pois... não resisto a partilhar convosco que o objecto de transição do meu sobrinho é... uma cápsula de Nespresso! Temos homem! Um George Clooney no mínimo!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[e porque a vida é simples] e previsível

A passagem do tempo é tão neuroticamente precisa que até os aniversários são sempre em dias certos! Parabéns!

(O mentor espiritual da mulata faz anos hoje! O mentor espiritual da loira não.)

[momentos nicola]

Um dia vou ser a primeira dama do estado de emergência.

sábado, 17 de abril de 2010

[welcome to mozambique] a tia carmen



Na minha primeira estadia em Moçambique, conheci uma voluntária espanhola, antiga empresária e viúva de um português, que há mais de dois anos deixava os filhos e os netos durante o ano lectivo para ir para a Casa do Gaiato dar aulas de pintura e expressão plástica. Dizia ela que tinha ido ensinar àqueles pequenos órfãos que pintando as suas angústias e medos poderiam mais facilmente vencê-los. Mas era muito mais do que pintura, o que ensinava... o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história do desenho, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nas figuras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
- Hoje sou eu a contar uma história à Tia Cármen!

E num fim-de-semana, enquanto ajudava alguns com os trabalhos de casa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladas sessões de “histórias” contadas à Tia Cármen, com um menino de sete anos, que vivia na Casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondo lentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios, falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem me lembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitas crianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelo canto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família era muito ameaçador porque ia ouvindo a Tia Cármen perguntar:

- Que animal é este dentro do lago?
- É um crocodilo.
- E o que é que ele está a fazer?
- Está à espera que as pessoas passem para a machamba para as matar e comer…
- E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
- É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos para a escola.
- Para quê?
- Para lhe morder.
- Porquê? Por que é que a cobra lhe quer morder?
- Porque os espíritos maus a mandaram.
- Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?
Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrou uma solução e se reconciliou com o destino:
- Não, porque o irmão mais velho viu a cobra e conseguiu matá-la.
- Ah, que bom… E ele não teve medo?
- Não, ele é muito forte!
- E os pais, onde é que foram?
- Foram comprar peixe ao mercado.

E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada e protectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores. Qual tinha sido o motivo?, perguntava a Tia Cármen. Mas o menino não se resolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, ora dizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé e por isso eles se tinham ido embora zangados…

Era magistral a forma como a Tia Cármen, sem nunca ter tido aulas de Psicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas às personagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida e compreender melhor as suas emoções e circunstâncias. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a um momento absolutamente mágico, em que a Tia Cármen olhou o menino nos olhos e lhe perguntou:

- Então? Gostaste da história?
- Sim, Tia Cármen.
- Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muito corajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
- Sim, Tia Cármen?
- Parece que este menino se chama Rafael…

A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Como foi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidade trocado entre os dois anunciava que estava um vínculo criado e lançada mais uma pedra na construção da auto-estima e segurança do menino…

[inspiração para um reencontro]

- Mas não se pode acreditar em coisas impossíveis, disse a Alice.
- Talvez tenhas falta de prática, respondeu a Rainha de Copas, já me aconteceu acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.

Lewis Carrol in Alice no País das Maravilhas

(Lembras-te?, foi esta a frase que há exactamente oito anos atrás abriu as hostilidades...)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

[welcome to mozambique] os rios e riachos



Dizia o meu guru espiritual (sim, esse mesmo, o da crise de soluços, mas merece-vos todo o respeito e credibilidade...) que todo o hábito da pós-modernidade europeia tem o seu equivalente em ritual africano.

Assim, o hábito extremamente saudável de nos reunirmos em spas para conviver em comunhão com a água, relaxar, receber uma massagem, celebrar uma despedida de solteira é espelhado, numa latitude mais meridional, no alegre convívio à beira-rio, onde as mulheres se reunem para tomar banho, lavar a roupa, pilar milho, conversar, celebrar os rituais de iniciação, tatuar-se... Simplesmente em África este convívio relaxante é diário, ao ar livre e um hábito tão natural e transversal que faz parte obrigatória da vida diária... Na arte de bem-viver há tanto a aprender com África...

[improbabilidades] o dom da ubiquidade


Também tu, Angoche?

[improbabilidades] também tu, nampula?

[os suicidas do costume] cozinhar



O meu cozinheiro em Iapala subia quase todos os dias ao coqueiro para cozinhar o meu prato preferido (mandioca com coco fresco). Nem no Polana, meus amigos, nem no Polana!

[vozes brancas* #7] e vidas pequeninas



A força que um sorriso pode ter!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[nomes que dizem tudo #4] maktub

No HPV (não, não é o vírus!) fiz a história clínica de um senhor chamado F. Paz Costa, que tinha um tumor de Pancoast. Às vezes o destino tem um humor britânico.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

[nomes que dizem tudo #3] maktub

Quando me dizem que não há coincidências lembro-me sempre da menina Rita Lina que tinha uma perturbação de hiperactividade.

[crescer na guerra] e continuar a ser gente



Ano de 2003, Casa do Gaiato de Maputo. Foi naquele orfanato que vivi os encantos e os horrores de primeira vez em África.

Alguns dos meninos mais velhos, na altura já com 17 ou 18 anos, tinham andado na guerra. Apercebi-me disso já quase no fim da minha estadia no meio de uma conversa com os mais novos, uma frase cruzada captada de raspão, que na altura não me fez muito sentido porque não podia conceber os meus meninos numa situação tão monstruosa. Mas claro, se tinha acontecido com tantas crianças, por maioria de razão poderia ter acontecido a estas, tão desprotegidas...

E nessa noite a frase ecoava-me nos ouvidos, não tanto pelo sentido como pela expressão comprometida do menino que a tinha dito e o olhar fulminante dos outros que o rodeavam. Claramente era um assunto tabu, não entre eles, mas entre eles e os adultos. Ainda assim só consegui ter a certeza de que aquela interpretação não tinha sido fantasia minha quando o Padre Zé Maria mo confirmou, embora não se tivesse alongado muito:

- O que é que isso interessa agora? Já basta tudo quanto sofreram. Há dois anos apareceram aí uns oficiais do exército a perguntar quais é que tinham sido os meninos que tinham sido mobilizados para a guerrilha, queriam nomes, sabe-se lá para quê, mas eu recusei-me a responder. Quase todos agora são adolescentes normais. Só um ou dois é que o psiquiatra achou que precisavam de acompanhamento. Para quê desenterrar o que já lá vai se não os ia ajudar em nada? Mais vale que esqueçam...

Mas não, não esqueciam. Eram diferentes dos outros. E seriam sempre diferentes… Para os mais novos, os que tinham sido mobilizados eram respeitados e reverenciados como uma espécie de heróis e rodeavam-nos para ouvir as suas histórias. Mas os mais velhos escutavam-nos mais com compaixão do que com respeito ou inveja. Entendiam a sua fragilidade… Não me foi difícil depois perceber quais eram estas "estrelas" que tinham um estatuto diferente e assisti a uma ou outra discussão em que não se abordava directamente o assunto da guerra, mas em que se notava claramente o seu fascínio por armas...

Será que se pode sobreviver a tudo isto e depois crescer normalmente, trabalhar com vontade, constituir uma família? Pelos vistos sim... Com mais ou menos marcas, com mais ou menos dificuldades na escola e nos relacionamentos, sei que todos acabaram por crescer, sair da casa e formar uma família... A isto os pediatras gostam de chamar resiliência. Eu não sei que lhe chame, mas não tenho muitas ideias mais...

[improbabilidades médicas] uma crise de soluços

O mentor espiritual desta blogger mulata certa vez teve uma crise de soluços. Nada há de extraordinário nisto, não fosse dar-se o facto de a crise ter sido desencadeada por um desgosto de amor e ter sido tão prolongada que o colocou em perigo de vida...

Dois dias depois do início da crise, exausto de tanto soluçar involuntariamente (sem nunca ter chorado, obviamente, que um homem não chora!) telefonou-me. A início não liguei nada. Que mal poderia advir de uma crise de soluços? Quase levei a peito. Mais valia que chorasse a sério no meu ombro e não deixasse o corpo chorar por si nesse chove-não-molha tão incomodativo. Retorquiu que não era nada disso. Estava com uma grande ansiedade, sim senhor, estava de coração partido, era verdade, mas que não tinha vontade de chorar. Tudo bem, respondia eu, que era certamente tudo verdade, que o psiquiatra era ele, mas que isso era o corpo a chorar por ele, que viesse tomar café comigo que era o que fazia melhor... Não veio. De onde se conclui que um homem que não chora também não toma café com as amigas.

Mas no dia seguinte, depois de uma noite sem conseguir adormecer, ele estava uma lástima e com sensação de morte iminente. Com o optimismo que me caracteriza quando trato de pessoas de quem gosto e com os remorsos de quem tinha desvalorizado a situação clínica, comecei a pensar em coisas selvagens: um abcesso subfrénico, um tumor do tronco cerebral, uma neoplasia da pleura... Lá nos fizemos ao caminho para o São Francisco e, metodicamente, começámos numa ponta (na TAC de crânio, obviamente) e acabámos na eco abdominal. Nada. Saudável que nem um pêro, que um homem que não chora e que não toma café com as amigas também nunca tem nada de grave, ora essa, era só o que faltava.

Ficámos a olhar um para o outro... O que fazer a seguir? Seria desta, então, que íamos tomar café? Também não... Que a sensação de morte iminente não passava, que já quase não tinha forças, que se sentia mesmo mal, que estava quase a desfalecer. A sorte dele é que conseguia mesmo parecer o que dizia, respondi, de outra forma já estaríamos fora dali, na Versailles, a tomar café. E lá fomos para o laboratório fazer uma gasimetria. E qual não foi o meu susto, que ele estava com uma alcalose respiratória descompensada, com uma hipocaliémia e hipocalcémia (era grave, meus amigos, era grave...).

Pronto, já estava convencida. Que tínhamos de resolver aquilo (caraças para os homens que não choram, que são sãozinhos que nem um pêro, que não tomam café com as amigas e ainda por cima as deixam assim em situações difíceis) e só havia uma maneira, tinha de ficar internado e fazer uma injecção intramuscular de cloropromazina...

Que não, que nem pensar! Que me estava a esqucer que era psiquiatra naquele mesmo hospital e que não podia ficar internado a fazer um antipsicótico. Nem que fosse life-saving. Ora, que como eu própria sempre dizia, ele que não se preocupasse, que mesmo que um psiquiatra desse em doido nunca perderia a reputação entre os doentes. Nem mesmo entre os enfermeiros. Que não me fizesse de engraçadinha, que nem por sombras ficaria no hospital!

Estaria eu a ouvir bem? Para minha casa?! Nestas condições, se ocorresse alguma complicação havia risco de mortalidade (que 20% não era brincadeira!), mas foi inamovível. Ou em minha casa ou preferia morrer. Caraças para os homens que não choram mas que em situações destas se tornam drama-queens! (E vamos lá despachar isto que tenho de ir trabalhar). Então resumindo, passei uma das piores noites da minha vida com ele a dormir placidamente na minha cama, depois de os soluços terem passado. Doze horas depois, acordou muito bem disposto, embora a falar à "Prlesidente da Xunta" e a dizer que achava que se calhar precisava de um café para acordar...

De onde se conclui que os homens que não choram, também vão às vezes tomar café com as amigas, mas em pijama, depois de uma noite em casa delas... e só depois de uma dose valente de antipsicóticos...

[coisas que guardei] sem que isso faça de mim ocd

Um marcador de livros metálico com inscrições célticas, recebido num final de tarde no jardim do Curry Cabral... Os pombos, as galinhas, os patos e os perus como testemunhas e os gatos, alheios à despedida que se vivia (ou mesmo desdenhando dela - nunca saberemos o que se passou na cabeça dos gatos nesse fim de tarde...) prontos a saltar em cima dos pombos.

[todos temos personalidade] mas é melhor não sermos histriónicos, vá

When reading a novel, be careful not to identify yourself too much with a character. You may die of a misprint!

(Variações lúdicas de Mark Twain)

terça-feira, 13 de abril de 2010

[não rima, mas são decassílabos]

(Beatriz dando um pontapé no Volkswagen Carocha de Nuno)
- Estou farta desta lata fascista!
- Não, isto é uma lata nacional-socialista. A Fiat é uma lata fascista.
- Dá-te imenso gozo contradizer-me!

Fernando Bilé in O Meu Sósia e Eu

[nomes que dizem tudo #2] ...mas mesmo tudo, tudo!

Airton Eusébio.
(Adolescente de 18 anos, mãe brasileira, pai português... Quer ser desportista.)

[improbabilidades] ou como não borrar a pintura




Uma das cenas mais hilariantes da minha estadia em Iapala decorreu na igreja que estava a ser restaurada. Tinha sido quase completamente destruída durante a guerra civil, altura em que era utilizada como refúgio para a população que procurava o apoio dos missionários. As obras estavam bastante adiantadas, embora, segundo as Irmãs já pudessem mesmo estar terminadas, não tivesse sido um equívoco do pintor, que desgraçadamente atrasara mais de vinte dias as obras e quase duplicara o orçamento…

Pois… inacreditavelmente, num dia em que o responsável pela obra estava fora, o pintor tinha rebocado inadvertidamente uma das paredes com a massa que utilizavam para regularizar as fissuras das paredes e tapar os buracos de balas. O reboco tinha ficado perfeito, isso todos tinham de reconhecer… o problema é que a dita massa sorvia a tinta como se fosse um polímero superabsorvente! Durante os dias seguintes, sem que conseguisse perceber porquê, o pintor tinha tentado pintar a parede do altar com demãos atrás de demãos e esgotado baldes de tinta branca atrás de baldes de tinta e a parede continuava impávida e bege, como se nunca tivesse recebido um único salpico… Inicialmente intrigado e depois aflito com o estranho fenómeno, só ousou avisar o responsável alguns dias depois, quando já era de todo impossível disfarçar o enorme rombo na provisão de tinta.

– Não é possível! O pintor está a roubar tinta para a casa dele! – tinham dito as Irmãs quando o responsável as foi alertar para o prodígio que se passava.
– Mas não é possível, eu estou sempre aqui com ele. A tinta desaparece toda nem meia hora depois de ser aplicada… – respondia o responsável.
– Irmã, tem feitiço nesta igreja! – gaguejava o pintor, mais assustado que todos os outros.
– Tem feitiço! – repetiam já os habitantes da Missão. – Foi por causa de todos os que foram massacrados durante a guerra dentro da igreja. Os espíritos dos antepassados ficaram na parede atrás do altar porque era onde as pessoas se escondiam durante os ataques.
– Não brinquem connosco! – respondiam as Irmãs.

O responsável já planeava chamar um feiticeiro para espantar os maus espíritos – às escondidas das Irmãs, obviamente, que já estavam quase a perder a paciência – até que deu por falta da massa para cobrir as irregularidades das paredes e o feitiço se quebrou no mesmo instante. (Bem, ao menos não sou só eu que sou loira nesta terra…)

[e porque a vida é simples]

Slàinte!
(Dedicado a quem de direito.)

[nomes que dizem tudo #1] ...mas que se calhar não deviam

Há meses, no Serviço de Urgência, uma colega minha chamou dois irmãos, filhos de pais angolanos, que vinham por uma doença corriqueira... O mais velho, nascido em Angola, chamava-se Filipe e o mais novo, nascido já após a vinda da família para Portugal, respondia pelo nome de Kindy.
- Mas então, como é? O menino que nasceu em Angola chama-se Filipe e o mais novinho, que nasce em Portugal é que se chama Kindy? Porquê?!
- Ah, Doutora, é que já não estávamos à espera dele e por isso chamámos-lhe Kindy Surpresa!

[momentos nicola]

Um dia deixo de escrever histórias clínicas e escrevo uma história de encantar!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

[os suicidas do costume] caminhar


O relevo de Nampula, com os seus lindíssimos montes-ilha, únicos no mundo...
(Iapala, Nampula.)

- But why do they keep walking, if they know they're already lost?
- Because it's so hard to admit... there is no way back home...

Ariadne

[parabéns, é menina] ...à nona é de vez!

Há uns anos, na Estefânia, tivemos uma família vinda da Guiné por doença de um dos filhos. Era uma família numerosa e os pais tinham certamente pouca imaginação. O primeiro filho chamava-se Unímio, o segundo, Dímio, o terceiro, Trímio, o quarto Quatrímio, o quinto, Quintímio, o Sexto, Sextímio. O sétimo, chamado obviamente Septímio adoeceu gravemente aos 2 anos de idade com VIH, que o pai entretanto contraíra, transmitindo-o à mulher, razão pela qual o menino veio evacuado para Lisboa. O oitavo (Octímio) nasceu já em Portugal, não infectado graças à prevenção da transmissão vertical com anti-retrovirais. Dois anos depois nasceu o nono filho, que era menina, a primeira da família. E agora pergunto eu, qual o nome que colocaram à primeira menina? Ana Sofia!

[os suicidas do costume] velejar



Quando se navega sem rumo qualquer vento é favorável!

(Variações Lúdicas de Séneca)

[inspiração para uma despedida] tens a orientação sexual errada

Tentei dar o meu melhor para te fazer feliz ao meu lado mas desisti. Todo o meu amor era para ti só mais uma forma de destruição... Lamento informar-te mas com esse Édipo invertido, a tua única hipótese de seres feliz é passares a gostar de homens...

domingo, 11 de abril de 2010

[welcome to mozambique] o paradoxo do lixo



A questão do lixo é mais um dos paradoxos inacreditáveis de Nampula... A uma recolha de lixo municipal que não funciona, ao facto de os contentores de lixo serem claramente insuficientes e a uma população pouco educada/sensibilizada para o problema, adiciona-se uma dificuldade quase intransponível: se alguém quiser limpar o lixo da sua rua tem de o fazer às escondidas como se de um criminoso se tratasse, sob pena de ser multado por estar a levar a cabo uma acção que pertence ao município!

Nada disto merece um discurso prolixo, até porque eu própria sou bastante anti-lixo e a questão não me merece mais neurónios. Mas Nampula poderia ser o palco de um Catch-22 dos tempos modernos...

[psicanálise selvagem] o labirinto de borges

Borges um dia sonhou que estava perdido num labirinto, angustiado com a ideia de ficar preso para sempre. No centro do labirinto constatou que estava um espelho, mas o rosto que reflectia não era o seu. Suspirou aliviado. Obviamente que o sonho era do outro. E, despreocupado, pôs-se a passear pelo labirinto...

L. Veríssimo.

[inspiração para uma despedida] brideshead

Oh, don't talk in that damn bounderish way! Why must you think everything second-hand? Why must my conscience be a Pre-Raphaelite picture?

Evelyn Waugh in Brideshead Revisited

sexta-feira, 9 de abril de 2010

[welcome to mozambique] o chapa



Foto surripiada há muito tempo de outro blogger cuja identidade juro que não me recordo, de outra forma lincava, a sério...

O chapa é o ubíquo e famosíssimo meio de transporte moçambicano, cartão de visita do país e já várias vezes considerado o paradigma do espírito moçambicano (uma vez vi um chapa que se chamava, precisamente Welcome to Mozambique, mas geralmente têm nomes mais improváveis)... Dentro destas carrinhas de de nove lugares cabe um número inconstante de pessoas, dependendo do conceito de lebensraum do dono (no máximo de alguns centímetros quadrados) e das dimensões e natureza da carga (que pode variar de exclusivamente composta por pessoas até ovinos e galináceos vivos em coexistência pacífica com os restantes passageiros, que se encarregam de os manter vivos até à chegada. Bem... quando morrem pelo caminho também nunca vi ninguém preocupar-se muito: "Se morrer come-se!", parece ser o lema!).

Segundo a lei, os chapas podem transportar até 15 pessoas, mas nunca começam a andar com menos de 20, pelo que os atrasos são constantes porque é preciso esperar que cheguem passageiros suficientes. Certa vez, um amigo meu contou-me, quase incrédulo, que tinha sido literalmente "vendido" a outro chapa em plena viagem, porque aquele onde seguia levava apenas 10 pessoas e o dono achou que a viagem não era rentável naquelas condições! E desta prática decorrem outras implicações: como infringem sistematicamente a lei, os condutores vêem-se obrigados a subornar sistematicamente os agentes de autoridade por que passam para não serem multados e não ficarem com a licença apreendida. Assim, a estratégia para as viagens de longo curso é fazê-las durante a noite, altura em que é mais provável os agentes de autoridade estarem a passar pelas brasas e não se dignarem a ir exigir o suborno correspondente...

Geralmente para sobreviver a uma viagem de várias horas de chapa são precisos:

a) Um estômago forte (em alternativa, uma rinite crónica ou uma febre dos fenos aguda, que tire mais de 90% do olfacto ou ainda, a alternativa mais improvável, um fetiche muito particular com o cheiro a catinga associado ao cheiro a animais domésticos);

b) Dois cromossomas X*, sem os quais provavelmente ninguém terá a delicadeza de nos deixar viajar na cabine, onde habitualmente o conceito de espaço vital do dono é preterido em favor do conceito do motorista de esta-gaja-tem-de-se-chegar-para-lá-para-eu-conseguir-meter-as-mudanças!;

c) Uma grande flexibilidade e resistência física, senão corremos o sério risco de desejar ficar em qualquer sítio próximo de onde Judas perdeu as botas, seja lá onde isso for... De facto, depois de oito horas de solavancos num chapa já ninguém se importa muito com Judas, quanto mais com o misterioso facto de ele ter perdido as botas. Aliás, com este calor, se não as tivesse perdido, provavelmente até já as tinha atirado borda fora!;

d) Um dia de antecedência em relação aos nossos compromissos no local de destino, para qualquer imprevisto ou para poder ficar de molho, caso a nossa resistência física provar não ser tão elevada quanto pensávamos...

*Ser mulher

[parabéns, é rapaz] um pouco beato, mas...

Na consulta de ontem:
- O nosso filho de 18 meses tem uma maneira de rezar muito dele: à noite, antes de dormir, vai dar um beijinho a Nossa Senhora, depois arranca-lhe a coroa e põe-na como se fosse uma venda no menino Jesus!

[parabéns, é rapaz] e temos homem!

Serviço de Urgência, 02:00. Recém-nascido do sexo masculino, 6 dias de vida:
- Resolvi vir às urgências porque o bebé só faz chichi quando lhe destapo a fralda...

(mãe de primeiras águas...)

[as melhores do serviço de urgência]

1. A minha filha nasceu com uma obsessão congénita da anca. (Ah, não se preocupe, mais tarde ou mais cedo todas as mulheres têm isso...)

2. Parece que o electrocardiograma acusou uma pequena arritmia sazonal. (O problema é que só ainda estamos mesmo no princípio da Primavera...)

3. Ela tem estado muito obstruída e eu só lhe tenho feito sopa de cuvettes e nada! (Pudera, coitadinha...)

4. A Beatriz tem estado muito constipada e nós temos estado a pôr soro e fazemos lipoaspiração. (Constipação, a quanto obrigas...)

5. Tem as mongolóides muito grandes e vai ser operado para o mês que vem. (Não diga isso do seu filho, santo Deus!)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

[motto próprio]

Estudar até à inconsciência ou Earl Grey até à hiponatrémia. Whichever comes first!

[inspiração para uma despedida] always here

Se ainda puder amar os renovos primaveris, será graças à tua recordação. Bastar-me-á saber que estás aqui, algures, para retomar o gosto à vida. Se quiseres aceita isto como uma declaração de que te amarei sempre...

F. Dostoievsky in Os Irmãos Karamazov

[encantos de primeira vez em áfrica] o tio vasco



Ao portão do recinto onde ficava o Centro de Saúde da Casa do Gaiato, onde trabalhei em 2003, estava sempre o segurança, o tio Vasco, e tenho de reconhecer que a Irmã que o tinha colocado naquele posto só podia ser uma pessoa com uma criatividade e poder de observação notáveis.

Posso pedir-vos para fazerem um exercício comigo? Têm à vossa disposição todas as pessoas da aldeia, pois não há praticamente emprego, mas não podem exigir qualificações, uma vez que poucos têm sequer a escolaridade mínima... Numa zona já desminada, sem grande violência no dia-a-dia, qual o perfil que escolheriam para um segurança de um Centro de Saúde? Controlador? Intimidante? Correcto e incorruptível? Com capacidade para proteger os trabalhadores e os equipamentos?

Bem, eu digo, a sua principal característica da personalidade era ser um coscuvilheiro de primeira apanha, daqueles mesmo do tipo não-há-nada-que-eu-não-saiba-ou-não-venha-a-saber! Aquele homem era um autêntico agente infiltrado! Perdoem-me o preconceito. Se calhar a potencial utilidade desta perturbação da personalidade foi imediatamente evocada por todos os estimados leitores, mas a mim não me tinha passado pela cabeça. E já agora perdoem-me também o abuso de linguagem, que este blog pretende-se assim mais para o científico do que para o comezinho e ser cusco não é, evidentemente, perturbação mental nenhuma (ou pelo menos é aquela história: não vem no DSM-IV...)

Mas adiante... o tio Vasco era absolutamente extraordinário: nunca mais voltei a ter alguém que me desse parte dos doentes que eu tinha visto depois de os ter mandado para casa. Era melhor que uma equipa domiciliária de follow-up: sabia tudo sobre os doentes que tinham passado por ali. Foi ele que um dia deu o alerta de que não tinha visto nesse dia uma senhora viúva que tinha estado no Centro de Saúde no dia anterior com uma gastroenterite aguda e pouco tempo depois foram a sua casa, onde a encontraram caída e muito desidratada.

Sempre que ficava preocupada com um doente bastava lembrar-me do nome dele e perguntar por ele ao tio Vasco:
– Tio Vasco, que é feito da D. Eugénia?
– Começou a tomar o antibiótico há dois dias e esta tarde saiu para a machamba. Já estava melhor.
– E como está o Professor Sebastião?
– Está com malária de três cruzes e não consegue sair de casa, mas a filha foi levar-lhe comida e diz que já tem apetite...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

[inspiração para uma despedida] relações terapêuticas

We should not have relyed on a sole therapist to restore our relationship. Couples have been known to have broken up because of a misquote...

[a lucidez dos versos heróicos]

Não procures verdade no que sabes
nem destino procures no teus gestos.
Tudo quanto acontece é solitário
fora de saber, fora de leis.

Sophia de Mello Breyner

(Um manifesto anti-delírios de referência, num registo literário muito saudável!)

terça-feira, 6 de abril de 2010

[psicanálise selvagem] freud não fumava. nada.

Há alguns anos atrás, no meu primeiro ano de médica, estreei-me no Centro de Saúde da Lapa a fazer consulta de Medicina Geral e Familiar. Uma tarde, um compositor famoso residente na freguesia abordou-me dizendo que queria deixar de fumar, mas que tinha múltiplos bloqueios e associações mentais que o faziam, quase de forma supersticiosa, ter medo de deixar o tabaco... Que sabia que era a forma mais básica de raciocínio e defesa de personalidade, blá blá, blá, mas que não conseguia lutar contra isso. Que até tinha feito psicanálise durante 5 anos, não por este motivo, claro, mas que nem com esse treino desconstruía os vícios de raciocínio (nem deixava o do tabaco...).

Era a última consulta do dia e não me apetecia nada ir para casa estudar, portanto alongámo-nos na história da sua vida e o senhor, depois da observação, deixou-se ficar deitado na marquesa a falar... Eu poderia ter insistido para ele se levantar, mas foi tudo tão natural que também o deixei ficar e regressei para o outro lado da secretária, para continuar a ver passar a vida... Nisto, ele deixa escapar um lapso linguístico que não me passou despercebido e fiz-lhe o reparo porque era relevante para o caso...

Mas longe de admitir o lapso, parece que o meu reparo lhe carregou num interruptor qualquer:
- Mas isso é um disparate, não era nada disso que eu queria dizer. Aliás, deixei a psicanálise precisamente por causa disso! Os lapsos podem ocorrer sem que queiram dizer que eram o nosso desejo mais íntimo.
- Tem razão, concordo, mas não deixa de ser uma associação que fez espontaneamente... e depois embatucou com ela... Se calhar neste caso era relevante...
- Mas isso é dizer a mesma coisa, só que enfeitada com laçarotes cor-de-rosa!
- Pois, talvez... mas eu acredito que quando as associações nos fazem sentido as devemos explorar...
- Eu acho é que Freud era um alucinado. E mais perigoso do que tudo é que o raciocínio dele é tão circular que às vezes se torna irrefutável!
[Comecei a ficar nervosa]
- Isso é verdade, tem razão... Mas eu não estava a falar em Freud, estava a falar na associação que fez.
[Já com alguma agressividade]
- Mas isso é um absurdo, sabe bem que estava a falar na herança de Freud. E essa história da livre associação é dogmática, não é nada científica, não sei como é que uma médica consegue cair nesse erro! [De súbito, caindo em si, levantou-se da marquesa…] Desculpe, eu estava a falar consigo, mas era como se estivesse a falar com o meu pai…
- Ah, agora é que você foi Freudiano! Agora é que o Freud saltava lá do caixão!
[E dando uma gargalhada]
- Tem razão… E acha que Freud fumava?
- Acho que não…
- Pois... o meu pai também não...

[angústias] acting out

Fuga em frente... que aliteração irresistível...

segunda-feira, 5 de abril de 2010

[angústias] zeitgeist

O tempo não flui através do que nós somos
Mas arranha cada rosto com unhas fundas.
É tudo demasiado táctil em torno,
Demasiada a espera nas almas mudas.
A memória tem a largura do vento
E o verso grita a quantas ilhas pertencemos...

Que génio alternado nos vive por dentro?
Que catarse o catalisa, ou que degredo?

a mulata do beijo

[vozes brancas* #6] a magia da infância

Na consulta com uma menina de quatro anos:
- Doutora, quero uma folha para fazer um desenho!
- Como é que se pede? Qual é a palavra mágica?
- Abracadabra!

Já disse que tenho a melhor profissão do mundo? Só para confirmar...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[a riqueza de moçambique] puericultura

"Se o pintainho entrou, é porque entrou a galinha!"
Provérbio Macua

Brincando ao faz de conta...

domingo, 4 de abril de 2010

[tempos de paixão] ir à missa em iapala





Estaquei à entrada da palhota, deslumbrada por aquela missa de uma alegria ritmada e ruidosa: um conjunto de mulheres e meninas, vestidas com capulanas iguais, dançando com uma coreografia simples, mas cheia de força e energia, com toda a assembleia compenetrada em bater palmas ritmicamente. Ouve-se, a intervalos, o alarido de algumas mulheres, marcando os silêncios das solistas e o padre Filomeno, ao fundo, dança também e bate palmas acompanhando a assembleia. Ao fim de alguns minutos, após um ralentando irrepreensível, faz-se silêncio e o padre começa a celebração em Macua, uma língua subitamente eufónica e melodiosa, que ainda não tinha tido oportunidade de apreciar calmamente com todos os seus timbres e entremeios, bem diferente de uma língua pitoresca, cheia de estalidos e assobios, como eu imaginara um dia serem as todas línguas africanas.

Não consigo deixar de me sentir esmagada por esta cultura, que absorveu uma religião milenar e a traduziu com os cinco sentidos, que lhe deu uma cara alegre e jocosa, um novo som, um novo ritmo, que virou do avesso uma religião sisuda e dança agora ao som das suas palavras africanas.

[a riqueza de moçambique] na escolinha



Não há nada mais delicioso do que ver crianças a aprender a dançar...

sábado, 3 de abril de 2010

[improbabilidades] inspiração artística




O Gilé, na Zambézia, é um distrito perdido no interior de Moçambique, com uma terra pouco fértil, um nível de analfabetismo quase a rondar os três dígitos, péssimos acessos, mas com um subsolo riquíssimo. Nas imediações há minas de ouro e de pedras preciosas (um dia hei-de me debruçar sobre esta aparente contradição...).

Na vila, próximo do meu hospital, vivia um ourives que trabalhava o ouro e as pedras preciosas dessas mesmas minas, que para as suas obras de arte se inspirava sobretudo em dois catálogos gentilmente cedidos pelas Irmãs de São João Baptista, um da Cartier e outro do Continente. Pois... inacreditavelmente, os modelos que tinham mais saída eram, de longe, os das bolinhas e argolinhas do Continente, que ele guardava amorosamente em pequenos saquinhos de comprimidos surripiados da farmácia do hospital...

[momentos selvagens] wilde moments

I saw in California the only rational method of art criticism I have ever come across ... "Please do not shoot the pianist. He is doing his best."

Oscar Wilde in Impressions of America, 1906

[olavula emakhuwa] falar macua


No Hospital da Missão...
(Iapala, Nampula)

Acho que demorei dois anos a perceber que "kininu" em macua queria dizer simplesmente "comprimido"... Até lá passei o tempo todo a corrigir as pessoas: "Não, o menino não tem malária, tem [outra coisa qualquer] e vai tomar estes comprimidos para ficar melhor." O olhar de confusão dos pais só confirmava que era preciso explicar isso mesmo outra vez...

É tão triste ser loira, benza-nos Deus...

sexta-feira, 2 de abril de 2010

[a riqueza de moçambique] nascer em iapala


Fiquei eufórica neste dia, com a primeira menina que por lá nasceu pela minha mão! Tinha 2900 g e teve choro imediato num grito de espanto imenso. No momento em que tirei a foto já dormia o sono dos justos ao lado de sua mãe, que quase chorava de alegria por mais uma bênção do céu (a sétima!). Obviamente não tinha nome (não se pode dar nome a uma criança antes de nascer, os antepassados ficariam tão enfurecidos que a criança até poderia morrer!) mas veio a ter certamente e espero que seja tão feliz quanto a sua mãe acreditou que viria a ser quando nasceu...

quinta-feira, 1 de abril de 2010

[improbabilidades] manhãs que cantam



Na minha primeira noite na Ilha de Moçambique, as Irmãs, sabendo da minha já lendária dificuldade em acordar descansaram-me:

– Nem sequer se preocupe em ligar o despertador, amanhã vai acordar de certeza de madrugada com a cadela a ladrar quando os monhés começarem a oração na mesquita aqui em frente. É giríssimo, eu acho que a cadela é muçulmana! Apesar de viver connosco ainda não conseguimos evangelizá-la!

E às cinco da manhã muezim chamava para a primeira oração, num cântico curto e lamentoso, trazendo-me, com quatro notas arrastadas, a luz do dia de novo aos olhos abertos. Do alto do minarete, com os braços decerto bem acima dos ombros, declarava a toda a ilha que Allah Akbar!, Deus era o maior. A mesquita estava tão perto da casa das Irmãs que ouvia o chamamento em crescendo e decrescendo como se o muezim me chamasse de dentro do meu próprio quarto. E, de facto, tal como as Irmãs me tinham prometido, a cadela começou a ladrar, num latido que, para meu espanto, se transformou num uivo crescente e decrescente, afinado em total consonância com o apelo muçulmano. Estavam certas, afinal... Mais uma alma perdida para o céu de São Pedro!