sábado, 17 de abril de 2010

[welcome to mozambique] a tia carmen



Na minha primeira estadia em Moçambique, conheci uma voluntária espanhola, antiga empresária e viúva de um português, que há mais de dois anos deixava os filhos e os netos durante o ano lectivo para ir para a Casa do Gaiato dar aulas de pintura e expressão plástica. Dizia ela que tinha ido ensinar àqueles pequenos órfãos que pintando as suas angústias e medos poderiam mais facilmente vencê-los. Mas era muito mais do que pintura, o que ensinava... o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história do desenho, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nas figuras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
- Hoje sou eu a contar uma história à Tia Cármen!

E num fim-de-semana, enquanto ajudava alguns com os trabalhos de casa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladas sessões de “histórias” contadas à Tia Cármen, com um menino de sete anos, que vivia na Casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondo lentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios, falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem me lembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitas crianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelo canto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família era muito ameaçador porque ia ouvindo a Tia Cármen perguntar:

- Que animal é este dentro do lago?
- É um crocodilo.
- E o que é que ele está a fazer?
- Está à espera que as pessoas passem para a machamba para as matar e comer…
- E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
- É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos para a escola.
- Para quê?
- Para lhe morder.
- Porquê? Por que é que a cobra lhe quer morder?
- Porque os espíritos maus a mandaram.
- Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?
Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrou uma solução e se reconciliou com o destino:
- Não, porque o irmão mais velho viu a cobra e conseguiu matá-la.
- Ah, que bom… E ele não teve medo?
- Não, ele é muito forte!
- E os pais, onde é que foram?
- Foram comprar peixe ao mercado.

E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada e protectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores. Qual tinha sido o motivo?, perguntava a Tia Cármen. Mas o menino não se resolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, ora dizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé e por isso eles se tinham ido embora zangados…

Era magistral a forma como a Tia Cármen, sem nunca ter tido aulas de Psicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas às personagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida e compreender melhor as suas emoções e circunstâncias. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a um momento absolutamente mágico, em que a Tia Cármen olhou o menino nos olhos e lhe perguntou:

- Então? Gostaste da história?
- Sim, Tia Cármen.
- Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muito corajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
- Sim, Tia Cármen?
- Parece que este menino se chama Rafael…

A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Como foi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidade trocado entre os dois anunciava que estava um vínculo criado e lançada mais uma pedra na construção da auto-estima e segurança do menino…

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