segunda-feira, 25 de maio de 2015

[vozes brancas] pequenos milagres!



Tenho um menino de 8 anos que sigo há vários anos. Teve um diagnóstico de autismo depois da primeira infância (já nem sei aos três ou quatro anos), mas entretanto, com o investimento da mãe e múltiplos profissionais envolvidos, fez uma evolução notável. Não quero agora discutir se o diagnóstico estaria correto. Olhando para trás e tendo em conta a evolução, podemos pensar que não estaria. Eu não sei, não fui eu que fiz o diagnóstico e não estava lá para ver, o que eu sei é que ele evolui de dia para dia. Atualmente é um menino doce, que se explica muito bem verbalmente, já tem até algum sentido de humor e começa a ter criatividade e imaginação. É também incrivelmente impulsivo, agitado, difícil de acalmar nas múltiplas birras que continua a fazer por dia. Na última consulta, depois de o ter conseguido acalmar, pedi-lhe que me fizesse um desenho.
 
Saiu esta obra magnífica e colorida! Perguntei-lhe o que era. Respondeu-me que era um "super-jardineiro, amigo do ambiente". Já estou habituada a surpresas deste tipo, mas quase que choro só de me lembrar como estava este menino da primeira vez que o vi em consulta...
 
A sério que da próxima vez que alguém me disser que baixa os braços perante de um diagnóstico de autismo lhe mostro este desenho!

Tal como há poucos meses um menino com um autismo profundo, sem linguagem funcional, de repente começou a escrever no computador. E meses depois estava a usar a linguagem escrita para fazer pedidos simples. A mãe perguntava-me, incrédula se isso queria dizer que o menino sabia ler...

Respondi-lhe que temos de aceitar os milagres! Tal como ela nunca desistiu do filho e sempre aceitou o diagnóstico e fez por ele tudo quanto conseguiu fazer, também tinha de saber aceitar as coisas boas.

terça-feira, 5 de maio de 2015

[vozes brancas] kiss my eyes

Tenho uma dor horrível no olho... No sábado, durante a urgência de pediatria, mal conseguia manter o olho aberto. Tudo por causa de um malfadado vírus que estava obviamente a sofrer maus tratos no nariz de um baby que eu vi na urgência da semana passada e que portanto resolveu pedir asilo político ao meu olho direito. Ora pois que o meu olho direito se compadeceu do bicho, coitadinho, catapultado de minuto a minuto em violentíssimos espirros e resolveu armar-se em alto comissário para os refugiados. Vai daí, arranjou-lhe alojamento e despachou-o para o seu vizinho do lado esquerdo, que ele, como olho diretor, tinha mais que fazer, ora essa, era o que mais faltava, ser alto comissário e ainda ter de fazer tudo nesta casa.

De tudo isto, só tive conhecimento na semana seguinte, quando no dia de urgência acordei com o olho à Camões. Sou sempre a última a saber destas andanças...

Mas como eu ia dizendo, no sábado estava miserável. Uma dor excruciante. A meio da manhã já não aguentava mais, a dor trespassava-me o crânio e latejava-me nas têmporas, e fui pedir à enfermeira que me tapasse o olho. Foi então que me entrou no gabinete um menino de quatro anos, acompanhado por uma mãe muito empática que me olhava compadecida. Já o menino olhava para mim absolutamente boquiaberto. Deixou-me fazer tudo o que lhe pedi sem um protesto. Por fim ganhou coragem e perguntou-me baixinho:

- És pirata?
- Sim, sou uma amiga do Jake, vim da Terra do Nunca para te ajudar a curar esse dói-dói.
- Mas essa coisa no olho não era preta?
- Sim, mas as princesas piratas usam uma pala branca, os piratas meninos é que usam uma pala preta. Agora tens uma missão: para salvar a princesa pirata lá da Terra do Nunca tens de ir fazer análises.

O menino estava fascinado, respondeu-me muito compenetrado que sim, que iria fazer então as análises. Regressou sem uma lágrima e com um desenho para a princesa pirata da pala branca.

[Tenho ou não tenho a melhor profissão do mundo?]

domingo, 3 de maio de 2015

[as melhores do serviço de urgência] uma questão de boa educação...

Três da manhã, Urgência de Pediatria ainda muito movimentada. A avó de um menino de quatro anos que conheço desde que nasceu, com múltiplos problemas de saúde e que em tempos difíceis reanimei duas vezes na mesma noite, entra-me, esbaforida, no gabinete.

- Mais uma convulsão, doutora.
- Boa noite, avó, não há meio de uma pessoa se habituar a isto, não é verdade?
- Pois não, doutora, coitadinho do meu menino. Desta vez foram dois minutos.
- Mas passou sozinha desta vez? - resposta afirmativa da avó - Que medicamento é que o menino está a tomar para a epilepsia?
[Baixinho, a medo] - É o "Dá práqui".
[Pausa para reflexão fonética]- O Depakine? - Arrisquei.
[Sorriso de orelha a orelha, aliviado, voz muito mais assertiva] - Isso, o "Dê práqui"! Afinal era fácil!

Isso! É só uma questão de tratar o medicamento por você em vez de o tratar por tu.

[reflexões para uma madrugada de telha] dia da mãe

No outro dia abri a boca de espanto quando ouvi uma preleçãode uma colega de outro serviço do hospital. Uma mulher severa, altamente narcísica, sem um pingo de empatia por quem sofre e por quem está em dificuldades, incrivelmente sensível, incapaz de um elogio a não ser a alguns (poucos) seus eleitos. Para o caso talvez seja relevante mencionar que é solteira e que nunca teve filhos...

E perguntam vocês, meus caros amigos: "Sobre que tema pregava tão distinta figura?"

Sobre Parentalidade Positiva. E enchia a boca com a aliteração... Explicava algumas "técnicas" a uma jovem mãe, pediatra de outro serviço, que a ouvia com atenção, com o seu melhor sorriso amarelo, tentando encontrar um buraco, por entre o discurso verborreico, por onde pudesse escapar.

Só me fez lembrar a severa diretora do colégio de freiras de uma amiga minha, que há muitos anos, inaugurou um discurso de duas horas deste modo: "Hoje é o Dia da Mãe. Eu não sou mãe... mas já li muito sobre o assunto, portanto cá vai!" .


E é isto, meus amigos... [Nota-se muito que estou de banco, que são seis da manhã e que já não vejo o baby-de-mulata há mais de 24 horas?]