Contextualizando: Agosto de 2004, segunda vez em África. Uma médica loira acabada de chegar a Nampula, ainda mal refeita de uma experiência surreal no aeroporto de Maputo... No dia da partida para uma missão em Iapala, no meio do mato.
– Às nove da manhã temos missa na Catedral – tinha-me dito a Irmã Conceição – mas depois tenho de ir tratar de um problema… e nem sei como é que o vamos resolver...
– Então?
– Uma das nossas Irmãs partiu a placa...
– A placa?
– Sim, ai, como é que se diz... a prótese dentária.
– Que aborrecido, realmente... Mas e não se pode arranjar?
– É esse o problema. Aqui, infelizmente, não há dentistas. Há um consultório de Estomatologia no Hospital Central, mas a única coisa que lá fazem é arrancar dentes. Não fazem implantes, nem próteses, nem sequer colocam chumbos.
– Mas porquê? Não têm conhecimentos para isso? Ou é por falta de equipamento?
– As duas coisas, penso eu. Que raio de país para se partir uma placa... Nesta terra, se uma pessoa precisa de qualquer coisa que implique algum savoir-faire é uma desgraça! Isto até parece anedota, andarmos aqui tão preocupadas com uma placa.
– O que é que pensa fazer então, Irmã?
– Bem, vamos lá ao consultório de Estomatologia. Partida já ela está. Pode ser que até a consigam consertar, ou pelo menos arranjar uma solução provisória. De outra forma não há mesmo outra solução senão ela ir a Maputo ou à África do Sul para fazer outra. E sabe Deus como é que vai ficar...
– Mas o Estomatologista não saberá mesmo consertá-la? Pode ser que até saiba...
– Duvido. Mas é o nosso único recurso. Quer vir connosco ao Hospital Central? Se calhar gostava de o ficar a conhecer.
– Claro! Adorava conhecer o Hospital! Para fazer turismo hospitalar estou sempre pronta!
– Então vamos, vá arranjar-se que já está quase na hora da missa.
Da Catedral ao Hospital Central de Nampula é um pulinho de carro. É um edifício notável com cinco andares, mas as condições actuais, por muito boas que já tenham sido, são deploráveis. O cheiro é nauseabundo. Uma mistura de cheiro a corpos (não há água canalizada para os doentes se lavarem), dejectos, sangue e comida, com o cheiro ácido da cetrimida, utilizada como desinfectante. Mas, dado o adiantado da hora, já não fomos visitar nada no hospital e dirigimo-nos de imediato ao consultório de Estomatologia. Tratava-se de um consultório privado, mas nem por isso tinha melhores condições...
Fomos recebidas por um Estomatologista indiano, um velhote de olhar afável, mas que usava dois incisivos de ouro, faiscantes, que lhe davam um aspecto tenebroso quando sorria e uns óculos de aros de tartaruga, cujas hastes tinham aspecto de estarem presas com fita adesiva já a desfazer-se desde o tempo colonial. Articulava mal o Português, falando com a boca muito fechada, apesar de nos afirmar que já estava em Moçambique há mais de 30 anos. Tal como a Irmã previa, informou-nos de que não dispunha de equipamento para consertar a prótese dentária. Mas que talvez a pudessem soldar na oficina em frente ao mercado.
– Na oficina em frente ao mercado? Qual oficina?
– Aquela... garagem, balbuciou com óbvia dificuldade.
– Não conheço nenhuma oficina de próteses dentárias na cidade...
– Não, não é oficina de próteses, é garagem mesmo... de carro.
– A garagem?! Mas como é que eles nos podem arranjar a prótese?
– Eles têm ferro de soldar pequeno. Vão lá, soldam e eu depois acabo de consertar.
As Irmãs estavam estarrecidas! Mas uma vez que não havia mesmo outra hipótese... Saímos do Hospital já dispostas a tentar a sorte na mecânica de automóveis, eis senão quando, a meio do caminho, a Irmã Conceição teve uma ideia brilhante:
– O técnico de informática! Ele esteve lá em casa ontem e andou a soldar algumas peças no nosso fax novo.
– Ah, realmente! Ele deve estar mais habituado a trabalhos delicados de pequenas peças do que os mecânicos de automóveis.
Mais reconfortadas com a ideia, lá nos dirigimos para a loja de informática, a Nampula Digital. No entanto, azar dos azares, o técnico informou-nos, desolado, que o ferro de soldar se tinha partido nesse dia.
– Nem sei quando é que vou conseguir mandar vir outro da África do Sul. O meu fornecedor só vem cá no próximo mês e quase de certeza que só aí é que lho vou poder encomendar. Já tentei contactá-lo, mas deve andar em entregas.
– Mas não tem telemóvel? Como é que ele recebe as encomendas?
– Recebe-as pessoalmente. É que na maior parte das estradas não há rede...
– O que é que nos aconselha, então?
– Acho que é melhor irem à garagem mesmo.
Lá entrámos outra vez no carro.
– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...
(continua...)
Olá! Venho à boleia da PARACUCA e gostei muito.
ResponderEliminarEstou curiosa com o fim desta história...volto amanhã.
xx
Obrigada! Volte sempre, que em Moçambique há sempre histórias para contar...
ResponderEliminarBeijinhos.