Ontem, num intervalo entre duas consultas, recebi o telefonema da mãe de uma criança de três anos e meio. A Margarida é uma menina especial porque sobreviveu com uma garra impressionante a duas cirurgias cardíacas complexas, ambas com mil complicações, que iam dando conta das coronárias dos jovens pais e dos médicos e enfermeiras que cuidaram dela... É o bijou do hospital inteiro porque, mesmo quando esteve às portas da morte, teve sempre períodos em que abria os olhos e sorria para quem estivesse à sua frente e esticava os braços, como que a pedir "Tirem-me daqui, quero ir conhecer o mundo!" Apesar de todas as complicações, o cérebro não ficou com uma beliscadura! É uma princesa linda, viva, adora dançar, inventar histórias e jogos...
Os pais resistiram juntos à montanha russa emocional que foi ver a sua menina quase morrer por seis vezes e, por fim, vencer como uma guerreira. Mas a relação desgastou-se rápido e na última consulta já me tinha apercebido de que o casamento tinha os dias contados...
A mãe falava-me da sua preocupação por a menina estar mais agitada na escola, por vezes agressiva com os colegas, e perguntava-me, então, se deveria continuar a tentar esconder da filha a separação iminente ou se, pelo contrário, a deveria preparar para a saída do pai... Ao que eu respondia que talvez fosse mais sensato esperar que fosse a menina a fazer a pergunta, uma vez que ela provavelmente já se teria apercebido de que alguma coisa estaria diferente...
- Sim, doutora, ela já tem feito algumas perguntas...
- Tais como?
- Por exemplo, no outro dia perguntou-me: "Mãe, achas que o pai depois vai casar com uma madrasta que me vai dar maçãs com veneno?"
- Ah... então ela já percebeu tudo, escusa sequer de lhe dar a notícia. Ela está agitada porque está muito mais à frente e a antecipar o que se vai seguir.
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
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