quinta-feira, 24 de novembro de 2011

[à procura da inês] lepra, valha-me santa rita de cássia?

(...continuando a história que começou aqui...)

– Que doença acham que ela tem?
– Irmã… Inês tem… – a voz sumiu-se-lhe na garganta, desaparecendo num sussurro.
– Tem o quê?
– Tem… tem lepra.

Fiquei fora de mim! Nem consegui disfarçar o que sentia… Nem me tinha passado pela cabeça que fosse isso de que suspeitavam. Disparei no mesmo momento:

– Senhor Mutaquela! Claro que não é lepra! Pelo acabou de dizer não pode ser. E de qualquer modo a lepra é uma doença que tem cura. E quase não é contagiosa! Mas a sua irmã, mãe de Inês sabe disso. Ela é técnica de farmácia, ela entrega os medicamentos para a lepra aos doentes. De certeza que vê as pessoas a melhorar.
– Sim, ela também disse que não era lepra, mas eu não acredito. E lepra é doença trad’cional. Eu estou a pagar pelo mal que fiz ao meu irmão…
– Por favor! Acha que lepra é assim, com feridas em todo o corpo? Já viu algum doente de lepra com feridas na cabeça ou no peito? Os doentes de lepra têm feridas nas mãos e nos pés, não é em todo o corpo, no resto do corpo têm é manchas. Ela tem manchas?
– Não, tem firida só.
– Pois, papá, a Inês tem uma doença de pele normal. Muitas vezes começa depois de uma malária ou de outra doença com febre. Ela não teve malária antes de isto tudo começar?
– Ah… sim, teve…
– Sim, papá, está a ver? Deve ser psoríase.
– Quê?
– É uma doença de pele. Uma doença normal! E lepra não é castigo por um crime, não tem de ser humilhação para a família. Lepra é uma doença e tem cura! Mas a Inês não tem lepra, tem psoríase, que é outra doença.

Calei-me. Olhei-o de frente. Deus sabe o que me custou não odiar naquele momento aquela cultura terrivelmente injusta. Injusta sobretudo para com as mulheres e as crianças. Bastava ter um tio pouco instruído e meio neurótico para deitar por terra todo o esforço que já tinha sido feito para criar uma menina, para que tivesse estudos, uma profissão e armas e confiança para enfrentar a vida.

Bem desabafavam as Irmãs que é muito difícil ajudar este povo porque a cultura de tradições, feitiços e castigos é um obstáculo enorme ao desenvolvimento. Aquele homem era o chefe da família e tinha sido o primeiro a ousar proferir o nome da doença na família. Sendo assim, não me espantava que tivessem tentado esconder a menina.

Às vezes o estigma instala-se e cola-se à pele, mais visível que a própria lepra, mais mutilante e corrosivo... E de que serve o tratamento se ele implicar exposição pública, mesmo que seja um internamento num hospital? De que serve ficar curado se depois não se puder voltar para casa e continuar a sua vida? A doença é lenta, mas a cura é mais longa ainda e o estigma... esse é cruel. O estigma enterra em vida quem ainda tinha força e vontade de viver.

Enfim, mas todos estavam a sofrer, era isso que não podia perder de vista. E aquele homem, apesar de tudo, estava a tentar tratar a sobrinha da forma que podia e achava correcta. Tinha investido no tratamento quase todas as suas poupanças e estava prestes a arruinar-se para que ela melhorasse. Merecia o meu respeito, por muito que discordasse de tudo o que tinha sido feito e me doesse a situação da menina. “Vá buscar Inês hoje mesmo. Vá buscá-la, que ela está a passar mal ali sozinha e leve-ma amanhã a casa das Irmãs. A doença dela tem cura, papá!" Vi os olhos dele iluminarem-se.

– Sim, Irmã. Obrigado.

Regressei a casa perturbada, mas feliz, apesar de tudo. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…

(continua...)

3 comentários:

  1. "Mas a Inês não tem lepra, tem psoríase, que é outra doença"

    Embora Caucaafricano, ou Brancoafricano, não acredito em feitiços, ainda.

    Mas, ainda que mal pergunte, e sem querer virar o sítio em consultório, já bastam os "cromos", a psoríase tem cura?

    Tacuta.

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  2. Muito importante essa atitude persistente...
    Felizmente que ainda há pessoas que não desistem dos outros!

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  3. umBhalane, tem toda a razão, a psoríase em princípio não tem cura, mas tem tratamento... e eu sobretudo não queria complicar, queria mesmo era convencê-lo de que tinha de tirar a menina daquela sepultura...

    Smiley, estive muitas vezes angustiadíssima, mas felizmente nunca me apeteceu desistir. Por acaso nessas noites não dormia bem, mas eu pensava "deve ser da mefloquina" e rebolava mais um pouco... lol

    (um) beijo de mulata

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