domingo, 20 de novembro de 2011

[à procura da inês] vamos, vicente, vamos até lá...

(...continuando a história que começou aqui...)


Falei-lhe da minha preocupação com a Inês, a filha da técnica de farmácia do centro de saúde onde ele estava a estagiar. Da forma como o técnico, colega dela, me tinha evitado, de como me tinha dito que ela já não ia trabalhar há algum tempo, da confusão sobre o nome e as minhas dúvidas de que seriam a mesma pessoa, já que segundo o colega da farmácia, a menina se chamava Betinha e não Inês.


– Ah, tia P., isso foi coisa que também me custou a compreender ao início aqui em Nampula, porque nós na Casa do Gaiato não tínhamos esse hábito.
– Que hábito?
– As crianças macuas não são tratadas pelo nome de registo. São tratadas pelo “nome de casa”. E Betinha não pode ser nome de registo.
– E achas que Betinha pode ser Inês? Não é Elisabete?


Franziu o sobrolho.
– Porquê Elisabete? Pode ser qualquer nome… O nome de casa do meu companheiro de quarto, por exemplo, é Motorista e o nome de registo é Ozias.
– Ah, pronto. Então pode ser a mesma menina. Eu na realidade suspeitava que seria isso, porque o resto da história parecia-me que batia certo…
– Mas agora que tia P. fala, lembro-me que há duas semanas a técnica da farmácia estava lá. Vi-a chorar no gabinete do director.
– E estava a chorar porquê?
– Estava a dizer que a menina estava com uma doença que não tinha cura e que tinha de deixar de trabalhar. Não percebi bem, mas penso que depois acrescentou que não podia mais estar a conviver com outras pessoas. E nunca mais a vi…
– E que doença tinha?
– Não sei, o Director não disse. Mas deve ser uma doença muito má, para o Director não dizer… Ou então não sabem.
– Mas porque é que o colega dela da farmácia não me disse isto?
– Ele não conhece tia P… Não sabe com que intenção tia P. queria saber.
– Mas eu disse-lhe que queria saber se ela precisava de alguma coisa para a menina regressar a Iapala para estudar.
– Precisamente por isso. Ele pensa que a mãe quer esconder a menina ou a doença. Ou então que a doença não tem mesmo cura e não há nada a fazer.
– Mas eu queria mesmo ajudar a menina… E disse-lhe que sou médica em Portugal.
– Eu sei, tia P.
– Então? Talvez eu possa curar a menina!
– Não sei, tia P. Para a mãe deixar de trabalhar e ter de se afastar é porque é uma doença tradicional. E isso tia P. não pode curar…
– Vicente, por favor!


E ia acrescentar: “Também tu?”, mas arrependi-me a tempo. Afinal de contas não conhecia a cultura assim tão bem e não tinha maneira de desmontar este argumento. Só ia criar mais uma barreira entre mim e ele. E já tinha compreendido que por mais formação científica ou por maior convivência com a cultura ocidental que alguém tivesse, o leite que se bebeu em pequenino é que prevalece sempre no fundo da mente…
– O que é que achas que eu posso fazer? Eu quero mesmo ajudar a menina...
– Acho que vai ser muito difícil. A mãe sente-se humilhada pela doença, de certeza.
– Mas acho que devo tentar na mesma. Tu sabes onde é que ela mora?
– Em Napipine, precisamente não sei, mas sei que vive perto dos pais de um colega meu.
– Pois. É a mesma pessoa, de certeza, a Irmã Lurdes também me disse que ela vivia em Napipine! Vais lá comigo hoje?
– Hoje? Tão tarde?
– Sim, não tenho muito tempo. Não vou ficar muito tempo em Nampula. Onde vives?
– Na escola, na residência de estudantes.
– Vais agora para lá?
– Sim, vou jantar.
– Eu também vou jantar agora com as Irmãs. Depois vou buscar-te à escola e vamos a Napipine os dois. Pode ser que ela aceite falar comigo se tu estiveres por ali. Pode ser? Fazes isso por mim e pela Inês?
– Sim, tia P.
– Então vá, até logo.
– Até logo.


As Irmãs tentaram demover-me de ir procurar a mãe da Inês a casa dela. Que provavelmente uma mensagem minha bastaria. “Podemos oferecer a nossa ajuda. Se as pessoas quiserem ser ajudadas acabam por vir… Elas sabem que a nossa porta está sempre aberta. E pode ser contraproducente invadir assim o espaço das pessoas. Não podemos ser mães de toda a gente e levá-las nas palminhas. Por muito que nos custe, não é assim que as ajudamos.” Era verdade. Dolorosamente verdade. Estas frases caíram-me mesmo em cheio na consciência que tenho de mim própria. Sentia também que ia ser intrusiva. Que me estava a aventurar por um mundo que não conhecia e que tinha todas as hipóteses contra mim nestas circunstâncias.
 
(continua...)

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