Nampula, instantes da cidade...
As Irmãs tentaram demover-me de ir procurar a mãe da Inês a casa dela. “Podemos oferecer a nossa ajuda. Se as pessoas quiserem ser ajudadas acabam por vir…” Era verdade. Dolorosamente verdade.
Eu também sentia que ia ser intrusiva. Que me estava a aventurar por um mundo que não conhecia e que tinha todas as hipóteses contra mim nestas circunstâncias. Que provavelmente estava a agir de uma forma absolutamente desadequada. Mas tinha esperança de que se me conseguisse encontrar com a mãe e fazê-la olhar-me de frente, ela haveria de perceber, no fundo dos meus olhos, que eu estava a falar verdade e que a queria mesmo ajudar… Ou seria só uma fantasia minha? Será que a expressão do olhar tem a capacidade de vencer barreiras culturais e desconfianças com séculos de existência? Não seria só eu a confrontar-me, a lançar-me um desafio e a querer perceber até onde ia a minha própria capacidade de comunicar? E sem me colocar de todo em causa. É que ia estar numa posição em que se vencesse, isso seria mérito do meu olhar franco e se falhasse teria as desculpas perfeitas: precisamente as tais barreiras culturais e desconfianças com séculos de existência… Naquele momento vacilei a sério.
Mas a minha intuição dizia-me que se não fosse pessoalmente ter com ela, a mãe nunca viria por sua própria iniciativa a tempo de me encontrar. E já tinha combinado com o Vicente. E sobretudo não queria desiludir a Irmã Lurdes. Ela estava à espera da sua menina e tinha-me confiado essa missão. Com que cara chegaria a Iapala dizendo que só tinha mandado uma mensagem à mãe e não tinha feito mais nada por ela?
Chegámos a Napipine já passava das 21:00. Deixámos o carro quase à entrada do bairro porque as ruas, à medida que nos embrenhávamos mais para o coração do casario, quase desapareciam. Não era possível seguir com o carro por ruas tão estreitas, com casas quase pegadas umas às outras sem qualquer planeamento, sem ordenamento de qualquer espécie e cheias de lama e lixo nos entremeios. Seguimos a pé pelas ruas labirínticas, quase desertas. Nunca tinha entrado antes num bairro periférico. Acabava de me aperceber de que só tinha andado pelo centro, onde as casas eram de pedra e cal, embora muitas estivessem degradadas e descuidadas, algumas com vidros partidos, pintura a cair, buracos nas paredes e lixo por todo o lado, mas onde pelo menos havia uma sensação de urbanidade. Ali, pelo contrário, a maioria das casas eram de matope e telhado de capim. Algumas com chapa de zinco e paredes de cimento, mas nenhuma com casa de banho ou saneamento básico. Muitas casas não tinham janelas ou qualquer outra abertura para além da porta, já fechada àquela hora…
Lama e água corriam pelas ruas estreitíssimas e havia muito poucos candeeiros de rua. Mal conseguia acreditar que aquele era o local onde viviam muitas das pessoas com quem me tinha cruzado nessa manhã na cidade. Onde viviam pessoas que tinham tirado cursos e estavam empregadas há muitos anos… Como era possível viver com a família inteira em dez metros quadrados, sem acesso a água potável, sem meios de fazer despejos de forma condigna, e continuar a ser gente? A pobreza no mato pode ser triste, mas nas cidades consegue ser desumana…
À porta de algumas casas viam-se ainda pessoas a tomar a última refeição do dia, que cozinhavam num pequeno fogareiro a carvão, ouviam-se restos de conversa à volta da pequena chama, criada em família, que servira para aconchegar as barrigas e os ânimos, percebia-se a moleza de quem já lutava contra o sono mas teria de vencer a inércia e fazer um último esforço para estender as esteiras, despir e deitar os filhos mais novos, arrumar a loiça para lavar no dia seguinte no poço ao fundo da rua. Terrível, a monótona dureza do dia-a-dia.
Não fiz qualquer comentário. Tentei lutar contra o choque que sentia. Ali, naquele bairro, havia certamente pessoas de valor, pessoas que lutavam para que os filhos tivessem um futuro melhor, casais que se amavam, famílias que se construíam, pessoas que procuravam levar uma vida honesta e ajudavam a família e os amigos. Também ali, quis acreditar, era possível ser-se feliz, houvesse harmonia e saúde… As pessoas olhavam-nos e comentavam em macua à nossa passagem, mas nem eu nem o Vicente, cuja língua materna era o changana, os compreendíamos. Certamente estariam a especular sobre o motivo daquela visita…
A família do colega do Vicente era, felizmente, uma das famílias tardias, que se tinha demorado no jantar, depois do anoitecer e ainda estavam à porta de casa. Indicaram-nos sem dificuldade a casa da mãe da Inês. Sabiam, de facto, que algo se passava com a família e que a mãe tinha deixado de trabalhar. Ainda não passavam dificuldades, mas era certamente uma questão de tempo. Estavam preocupados com eles, de tal forma que a mãe do colega se ofereceu para ir connosco falar com ela.
A casa era quase ali ao lado. Tinha portas e janelas, que já estavam fechadas e não se via qualquer luz no interior. Hesitei, mas a mãe do colega do Vicente bateu à porta, convicta. Esperámos um pouco. Nada. Bateu novamente. Nada. Não estariam em casa? Que sim, que estavam de certeza, pois se tinha visto a mãe passar… Após alguns minutos, a porta abriu-se e uma mulher, de seus trinta e poucos anos, emagrecida e despenteada, semi-despida abriu a porta, estremunhada. Não me deu tempo sequer de explicar ao que vinha ou de lhe mostrar a capulana que trazia para a Inês, não me deu tempo sequer de a olhar nos olhos, como tinha imaginado. Assim que me viu, percebeu que eu só podia vir de parte das Irmãs, as únicas pessoas brancas que conhecia, e fez menção de fechar a porta. Não tinha contado com isso. Nem me tinha passado pela cabeça que ela compreendesse de imediato o que é que eu fazia ali. Que ingenuidade a minha…
(continua...)
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