quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

[a noite mais longa] e só quem vive no convento...

  (...continuando a história que começou aqui...)  

  – Doutora…
  – Sim, Sr. Cachimbo?
   – Eu tenho uma coisa para lhe dizer… Não me leve a mal. Eu até fico envergonhado, mas já lhe queria ter dito isto há muitos dias.

   – [Ó meu Deus, mas o que é que eu lhe vou responder? Será que deixei transparecer alguma coisa? Será que ele pensa que é possível? Ele não tem noção do mar de diferenças que nos separa?]…
   – Doutora, nós pertencemos a mundos diferentes e acho normal que eu não conheça nada do que a Doutora já viveu e que Doutora não saiba muito sobre a minha vida, por mais que falemos sobre isso… Nem sequer imaginamos, quer um quer outro, o que é o passado de cada um…
   – Isso é verdade, Sr. Cachimbo.
   – Sim, a Doutora fala de Lisboa e eu imagino uma cidade como Nampula, não consigo imaginar uma cidade maior do que essa. Mas sei que Lisboa é mil vezes melhor e maior, eu é que não tenho imaginação para chegar aí porque nunca vi outra cidade grande e os limites do meu pensamento são os limites do mundo que eu já percorri – era notório que se estava a esforçar para compor aquele raciocínio. – É o mesmo que eu tentar explicar à Doutora o que era a nossa vida durante a guerra. Dormir no mato, ter sempre medo, acordar e ter uma cobra debaixo da esteira ali aninhada porque estava quente ao pé de nós. E começar o dia a agradecer a Alá por a cobra não nos ter mordido… Eu posso explicar, mas Doutora não vai conseguir entender…
   – [Olha, agora deu-lhe para filosofar antes de me começar a falar de amor… Mas não está mal. Para um homem nascido no mato e criado numa sociedade e numa cultura tão machista, em que a mulher está garantida à partida e não tem de longe o mesmo valor que o homem, está a sair-se mesmo muito bem. Sorte da mulher que ele amar e acabar por ficar com ele… Mas, bolas, que responsabilidade, como é que eu agora lhe vou explicar que por mais que ele se esforce eu não vou querer nada, mas ainda assim transmitir-lhe que acho tudo muito bonito e que com uma mulher que o ame vai funcionar de certeza?] Sr. Cachimbo, é muito bonito o que me está a dizer… mas não é preciso, eu sei disso.
   – Mas eu quero dizer isto, Doutora, para Doutora não levar a mal o que eu tenho para dizer.
   – [Será que ainda consigo desviar a conversa?] Mas eu não levo a mal, acho normal que queira conversar. Eu também gosto de conversar consigo. E já viu como o Sr. Rafael está a melhorar com a medicação?
   – Ah, ainda bem… É que eu ando há muito tempo para lhe dizer isto…
   – [Bem, já não vou a tempo de chutar a conversa para canto… vamos lá agarrar o toiro pelos cornos!] O que é que tem para me dizer, Sr. Cachimbo?
   – Doutora, o meu nome não é Cachimbo…
   – [Hãn?!] Como?

   Um sorriso de alívio quase se transformou numa gargalhada sonora desconcertada. Tanta coisa para isto? Felizmente a penumbra do quarto era uma aliada.

   – Não é Cachimbo, é Cachimo.
   – Cachimo?
   – Sim, Cachimo, como Cássimo ou Kassim. É um nome muçulmano. Vem do Árabe. É nome de califas, quer dizer “aquele que pode dar" ou “aquele que divide”, não é cachimbo. Cachimbo é nome de vício.
   – Ah, desculpe, foi mesmo sem intenção de o ofender… Sabe que aqui é muito comum as pessoas terem nomes de objectos e Cachimbo podia ser um nome normal. Mas já podia ter dito há mais tempo, se isso o incomodava…
   – Sim, eu sei, Doutora, mas não queria fazê-la sentir mal.
   – Pois, mas não me envergonha, é um nome que eu não conhecia e percebi mal. Não foi de propósito.
   – Eu sei, Doutora… Doutora é uma mulher muito boa, com muito bom coração.
   – Obrigada, Sr. Cachimo... [Ah, graças a Deus, que alívio ele não me colocar numa situação tão constrangedora… Afinal era mais sensato do que eu pensava, felizmente.]
  
   O Sr. Rafael continuava a dormir mas a respiração dele, em muito pouco tempo, tinha deixado de estar tão tranquila e começava a agitar-se novamente. A duração de acção dos tranquilizantes estava a ser muito mais curta do que o que eu pensava. Nem duas horas depois, já se mexia novamente, quase acordado. Voltou a conseguir engolir água. Novamente a temperatura desregulada, a transpiração, os tremores e a agitação desorientada. Mas o coração continuava a bater rítmico e, desta vez, não chegou a estar consciente o suficiente para pensar que o estávamos a envenenar e não cuspiu água nenhuma. Dei-lhe nova dose de tranquilizantes, voltámos a arrefecê-lo com toalhas molhadas e a trocar os lençóis. Íamo-nos animando, numa conversa bem disposta sobre as nossas vidas, aquilo que gostávamos de fazer nas horas vagas. Ele falava-me da descoberta da internet num cibercafé de Nampula e de como tinha conseguido voltar a falar com o irmão que vivia em Cuba, eu falava-lhe de como gostava de música e de como me agradavam as músicas macuas que ouvia na igreja e à noite, no hospital, as mamãs a cantar aos filhos.

   Quanto ao resto da noite, acho que não a consigo contar propriamente. Lembro-me da ternura que foi caindo mansamente, envolvendo o quarto, lembro-me de uma penumbra interminável, de uma vela que bruxuleava e cansava os olhos, numa ameaça constante de se extinguir, de uma sensação de irrealidade, de um sol que nunca mais rompia, da cama ao lado da do Sr. Rafael, que foi muito mais do que uma cadeira desconfortável para os dois, de um sono e um cansaço tão intensos que mesmo com tudo o que foi acontecendo não saí daquele estado, entre o mareada e o letárgica. Tudo o resto, que relembro por vezes… a mim pertence. O que vos consigo contar também é que me recordo de um abraço forte ao início da madrugada, quando o Sr. Cachimo se foi embora, depois de ter estado comigo a noite inteira, de me ter impedido de adormecer e de ter dividido angústias e preocupações e esforços nos cuidados ao nosso doente, mesmo duvidando da minha explicação para a doença e provavelmente também com medo de ser “contaminado” pelos espíritos.

   Despediu-se com um “Obrigado por me ter chamado, fiquei muito feliz. Se precisar de mais alguma coisa volte a chamar-me.” Agradeci-lhe do fundo do coração. Não mencionei o assunto, mas tinha bem presente que ele me tinha ajudado a cuidar de um homem alcoólico, um homem totalmente impuro à luz da sua religião e com quem discutira dias antes.

(continua...)

3 comentários:

  1. Querida BdM,
    Que relato tão bonito. Obrigada.
    Um sorriso!

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  2. Estou sempre ansiosa para ler a continuação das suas histórias.
    Beijos
    Suzana

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  3. Obrigada, Bê e S, eu é que me derreto com os vossos comentários...

    (um) beijo de mulata

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