sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

[improbabilidades] os hipopótamos da zambézia


Um hipopótamo mansinho...

A propósito da notícia da improvável reencarnação do defunto régulo de Morrumbala em hipopótamo [de que já vos falei], o post genial de António Cabrita no Raposas a Sul fez-me lembrar a mulher que certa vez internámos no Hospital do Gilé com uma doença inflamatória pélvica muito grave. O marido explicava-nos que ela tinha ficado doente quando tinha dado à luz um peixe-gato, depois de uma gravidez complicadíssima, cheia de hemorragias e de outros sinais de maldição. "Um peixe-gato? Como assim um peixe-gato?" perguntávamos. Mas o marido era irredutível, ele tinha visto com os seus próprios olhos o peixe ainda vivo, mas agónico, e os bigodes que comprovavam a sua natureza felina. O curandeiro tinha-lhes dado uma explicação complexa para o sucedido, mas fora incapaz de a tratar, por isso acabaram por recorrer ao hospital e pedir-nos ajuda... No Raposas a Sul falou-se de ago parecido...
Se bem me lembro, foi em 2007 que a STV fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.


A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, porquê ficar-se por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro pariam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam.

Há coisas que não são do domínio das antinomias, de ser-se racionalista ou crédulo, mas simplesmente da ordem da sensatez e do conhecimento das coisas naturais: o adn humano e o “adn” da cerâmica não comportam qualquer tipo de coincidência ou de transitividade.

Não obstante, suponhamos que sim – também para os gregos do tempo do Aristóteles as mulheres podiam parir qualquer coisa, ostras ou ouriços, pois nunca se sabia que partidas podiam os deuses pregar – que uma mulher podia parir um bule. Onde foi registado? Como se chama a criatura? E como é que a STV abandonou um caso destes, não acompanhando a educação e infância do bule, vendendo para as televisões de fora um exclusivo desta monta? Que falta de inteligência comercial.

Agora há semanas que não ouço falar senão do régulo encarnado no hipopótamo. E que ouço quadros técnicos deste país porem as mãos no fogo em como é verdade… pois se o hipopótamo mudou de regime alimentar e agora come o picapau que fazia as delícias do régulo e encharca-se com o bom vinhito, pelo qual até o Santo Agostinho se pelava.

E eis-me na mesma encruzilhada: se comento, sou um racionalista desatado, se não comento sinto-me a observar os efeitos perniciosos uma alucinação colectiva.

Acontece, por outro lado, que literalmente acredito em tudo. Eu acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível possuir uma criança e voltar como mestre-escola, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico. E o pior é que vejo a mesma absoluta inépcia comercial por parte da TVM. Como é que se tem um assunto desta natureza entre mãos e não se consegue fazer uma série de 18 episódios com ele, vendendo-o em todos os canais internacionais? Será que, na verdade, eles próprios não acreditam nas suas tradições? Há, em tanta improdutividade, qualquer coisa que me escapa.

Repito, eu acredito que o régulo tenha voltado em hipopótamo. Porém não vejo a utilidade do fenómeno. Nem para a comunidade, nem para o hipopótamo. Ou antes, para este até discirno um sinal positivo: magnificado em vinho, na próxima encarnação ressuscitará em régulo.

O que eu consegui enxergar, na reportagem, foi o aproveitamento político. O responsável provincial que lá foi prestar homenagem ao hipopótamo-régulo, confirmou a comunidade na identidade das suas tradições e deixou-a contentinha e refém do seu secular obscurantismo. E, aliviem-se as almas beatas, o dinheirinho gasto em vinho não foi desviado em sandálias para as crianças.

2 comentários:

  1. Adorei esta história...ouvi algumas do género quando era catequista na cadeia de Quelimane, preparando um grupo que queria ser baptizado. Muitos estavam lá por terem morto alguem a mando do feiticeiro e por outras reincarnações deste género. Consegui(pelo menos aparentemente) combater e explicar os "dons" do grande feiticeiro...Acredito que depois ,as velhas convicções tenham voltado...ou não! Quem pode dizer?
    Um beijo e votos de um NATAL FELIZ vivido num ambiente que África sempre oferece.
    Graça

    ResponderEliminar
  2. Um Natal muito feliz também para si, Graça!

    Um beijinho muito grande e obrigada por partilhar estas histórias comigo...

    (um) beijo de mulata

    ResponderEliminar