Os meninos da escolinha das Irmãs, na fila para o almoço.
(Nampula, Moçambique)
(...continuando a história que começou aqui...)
Depois da saída do Sr. Cachimo (comigo obviamente a tratá-lo por tu e sem o "senhor" antes do nome) e da terceira dose de tranquilizantes, o Sr. Rafael adormeceu finalmente pacífico e pude então dormir umas horas na cama ao seu lado, acalentada pela ternura que tinha descido sobre nós e invadido toda a madrugada, até que as Irmãs me vieram render. Daquele lado do convento, o chamamento da mesquita e o uivo da “cadela muçulmana” praticamente não se ouviam, e os cânticos das Laudes foram nessa manhã assim uma espécie de despertador de luxo, que teve o condão de trazer lentamente a luz de volta à parte do meu cérebro que quase tinha deixado de acreditar que o sol voltaria a romper um dia e continuava a repetir-me: "amanhã não existe!" Eram horas de me levantar para ir para a escolinha ver a segunda leva de meninos.
Não disse às Irmãs que praticamente não tinha dormido a noite inteira, mas o negrume por debaixo dos meus olhos quando aparece nunca engana ninguém e, enquanto eu mata-bichava*, elas trataram de reduzir para metade o número de crianças que eu veria nessa manhã. Quando cheguei à escolinha, deparei-me com uma fila muito menor de pedrinhas e pauzinhos à porta da secretaria, com que os pais marcavam a sua ordem de chegada, para se poderem tranquilamente sentar nas sombras por ali e não terem de estar de pé à torreira do sol enquanto esperavam a consulta. As senhas de vez estavam a começar a ser distribuídas pelo Sr. Rosário, numa cena hilariante, em que chamava as pessoas pelos objectos da fila: “Azulejo partido!” e alguém se levantava e gritava: “Presente!”
– Mas, Sr. Rosário, hoje há muito menos crianças do que ontem. O que foi que se passou? Fiz alguma coisa que tenha desagradado aos pais?
– Não, Doutora, as Irmãs disseram que hoje estava cansada e metade dos meninos passava para amanhã ou depois de amanhã.
– Ah, está bem…
– Doutora, estou a pidir um favor.
– Sim, se eu puder… diga.
– Meu sobrinho tem problema di olho…
[Lembram-se da história do Helder, que vos contei aqui há tempos? Foi uma história parecida com essa...]
E foi mais uma manhã intensa, passada entre histórias de pobreza, de fome, de orfandade e de viuvez, de irmãos e pais falecidos, de perdas tão difíceis para uma criança que acreditaríamos que não seria possível alguém voltar a levantar a cabeça, quanto mais sorrir e brincar com alegria, não fosse essas crianças estarem precisamente a sorrir e a brincar felizes lá fora no pátio antes de entrarem no meu gabinete de consulta e chegarem completamente afogueadas das correrias. Já não era coisa que me surpreendesse, a capacidade do ser humano, sobretudo das crianças, de recuperar a alegria de viver, desde que tivessem alguém que as amasse. E estas crianças eram, felizmente, muito amadas… Mais uma manhã a tentar falar macua entre a galhofa geral. Mas não me importava que se rissem de mim: era bom para desanuviar o ambiente, quebrar o gelo e aproximar-me dos pais.
Infeções, tuberculose, anemias, malárias… histórias de doenças de maus espíritos que faziam desmaiar as crianças e as punham a contorcer-se no chão, sacudidas por forças que quase as arrastavam para o outro lado do mundo e da vida. Para aquele lado de onde não se regressa mais, a não ser para cumprir rituais esquecidos ou para clamar justiça… Uma doença que para mim se chamava epilepsia, mas que para as famílias se chamava maldição ou punição… Com a ajuda dos tradutores tentei desmistificar a doença, convencer os pais de que epilepsia tinha tratamento e que não eram os espíritos que causavam as crises. Bastava tomar medicamentos todos os dias… Surpreendentemente consegui que aderissem. Pouco tempo depois vim a saber que os pais tinham ido agradecer às Irmãs porque os medicamentos tinham espantado os espíritos do corpo dos meninos!
Passei a manhã de tal forma embrenhada nas consultas, que só quando por fim me levantei para ir almoçar me lembrei novamente da Inês e do Sr. Rafael… Agora sim, estava exausta. Bendita intuição das Irmãs, que as tinha feito reduzir para metade o número de meninos que eu teria de ver nesse dia. Depois de almoço tinha de dormir a sesta, nem que fosse uma hora. Mas antes de me ir deitar fui ver como estava o Sr. Rafael. Abri a porta da casa, que estava só no trinco e tropecei desastradamente no Sr. Revenda que, por algum motivo bizarro que não descortinei de imediato, se deitara no chão encostado à porta de casa e dormia um sono sobressaltado. Acordou com um olhar apavorado e colocou-se de pé num segundo e só então me reconheceu.
– Doutora… – a voz meio perturbada, meio aliviada.
– Vinha ver como está o Sr. Rafael, Sr. Revenda. Desculpe tê-lo acordado… Mas não estaria mais confortável na sua cama?
– Não, Doutora. Mi deitei aqui porque estava cansado… Sr. Rafael está lá dentro.
– Obrigada.
Mas que local mais estranho para dormir… Quase parecia a história de uma tia minha, que se tornou anedota privada da família, quando uma tarde teve um ataque de sono tão grande que adormeceu nas escadas a caminho do quarto. Mas não, o Sr. Revenda, por mais sono que tivesse, não seria como a minha tia Maria José. Tinha-se deitado à porta de casa porque o terror do que estava a acontecer o deixara confuso: segundo a tradição, quando os espíritos rondam as casas, deve-se permanecer no interior, com as portas e janelas bem fechadas... mas onde ficar, para onde fugir quando é dentro da própria casa que está a ameaça? Não se tinha conseguido resolver, portanto acabara por decidir que provavelmente o local mais seguro seria perto da porta, por onde poderia ter de escapar a qualquer momento, quando os espíritos levassem o Sr. Rafael.
Apesar de as Irmãs o terem encarregado de continuar a dar soro oral ao doente, era uma ordem que não lhe fazia sentido nenhum. Em que é que beber soro ajudaria um homem obviamente já condenado à morte? Um homem que nem a intervenção do melhor curandeiro provavelmente já conseguiria salvar? Mas o problema é que o Sr. Rafael não tinha voltado a acordar desde a última dose de tranquilizantes que eu lhe tinha dado de manhã antes de sair. Também não tinha voltado a beber líquidos… e continuava agitado e a transpirar. Estava a ficar desidratado e podia estar em hipoglicémia… Se não o conseguisse fazer beber líquidos rapidamente ia acabar mesmo por ir para o hospital. E como é que ia ter tempo para procurar os medicamentos para a Inês com ele naquele estado?
Felizmente nesse momento chegaram as Irmãs com uma ideia brilhante: tinham ligado para as Irmãs da Caridade e elas, também habituadas a estas andanças, tinham-se disponibilizado imediatamente para lhe colocar um soro e, sorte das sortes, tinham recebido no dia anterior um tranquilizante apropriado para estes casos que se podia dar pela veia.
– Ah, que bom! É que acho que isto está mesmo a ficar incontrolável… E eu estou exausta. Há vários dias que não descanso nada.
– Deixe estar que nós o levamos. Vá lá ter depois para vermos se temos condições para o manter em casa ou se temos de o levar para o hospital… Esperemos que não. Sabe como é o Hospital Central, não sabe?
– Infelizmente sim…
– Então descanse, nem que seja uma ou duas horas…
– Obrigada!
– Obrigada nós! Sr. Revenda, precisamos da sua ajuda…
Continuava com mil preocupações, mas o cansaço era muito maior que qualquer aflição e no sossego do meu quarto, naquela cama estreita sob a rede mosquiteira que lhe dava um ar exótico, lá consegui adormecer num sono cheio de recordações dos momentos da noite anterior…
* Mata-bichar - Tomar o mata-bicho (pequeno-almoço). Não se esqueçam da mais fundamental regra de gramática em Moçambique: preferir sempre as conjugações divertidas às conjugações perifrásticas.
(continua...)
Olá desconhecida,
ResponderEliminarTenho 33 anos e sou o Artur.
Decidi ir estudar para Nampula, Medicina,1ºano.
Não conheço Moçambique, não tenho muito dinheiro, tenho os olhos brilhantes de vontade e o coração cheio de sangue e embora me digam: consulta um psiquiatra; confesso que me sinto uma criança capaz de arriscar.
Por favor, diz da tua experiência em Nampula.
Que achas?
Por favor responde para Campos_pessoa@hotmail.com
Art
Não sei o que lhe responder, mas também penso como as pessoas que lhe dizem para não ir. Não deve tirar um curso que só é reconhecido em Moçambique, ainda para mais se não é o seu país.
ResponderEliminarMoo, a influência do levante revela-se inebriante: está imparável! Besitos from Cabo Verde
ResponderEliminarEstou com pressa de terminar, Pedro... Quero deixar este blogue acabado.
ResponderEliminarMoo
(um) beijo de mulata
Qual terminado! Só se for para escrever um livro que é o que eu acbo que devia fazer e esta história demonstra o fôlego para.
ResponderEliminarÉ isso mesmo, Pedro. Estou a despedir-me... e tenho pressa.
ResponderEliminar