terça-feira, 6 de junho de 2017

[vozes brancas*] memórias de infância



Ainda a propósito da notícia do Público que deixou metade do país indignada, onde era referido que 43 crianças tinham sido "devolvidas" durante o período de pré-adoção no ano passado, houve quem tivesse comentado qualquer coisa como: "Pelo menos a maioria eram bebés. Ao menos não se vão lembrar de nada."

Não sei que formação têm as pessoas que verbalizaram coisas deste calibre... Com boa intenção, claro, não duvido, quase que para se consolarem e defenderem da catástrofe emocional que é saber que uma criança foi abandonada segunda vez. Mas a noção de que as experiências dos primeiros anos de vida são incrivelmente importantes e ficam gravadas a fogo na memória e no inconsciente tem mais de 100 anos e é irrefutável! Não por ser freudiana, mas por ser verdadeira.

Posso até provar-vos: O baby-de-mulata tinha 16 meses no dia em que chegou a casa e lhe nasceu uma mãe (para mim ele já tinha nascido antes, mas acho que nos adotamos verdadeiramente um ao outro nesse dia). Contei-vos a história há poucos dias. Pois que há quase dois anos, um dia, depois de um passeio no jardim chegamos a casa e ele disse-me:
- Mamã, pega-me ao colo...

E já no meu colo:
- Mãe, agora a fingir que eu tinha chegado de muito longe e tu me ias mostrar a casa...

E ao meu colo, conseguiu reproduzir a sequência com que lhe mostrei a sua nova casa no momento em que chegamos. E mais, por fim quis ir para a sala, pegou num livro e pediu-me para lho ler. No mesmo local onde lhe mostrei o álbum de fotografias de família...

E eu, que sabia de tudo, quase não consegui deixar de me emocionar e de me espantar. Os bebés guardam memória dos dias importantes. Por mais que não lhes consigam atribuir um significado. Por isso não lhes podemos falhar tão redondamente!

3 comentários:

  1. Então (e, por favor, não leves a mal o meu comentário!), não te preocupam as memórias tão difíceis que o teu bebé-de-mulata teve de enfrentar até "te adotar"? a depressão de primeira infância, os vários abandonos, etc - achas que a vinculação segura que estabeleceu depois o vai libertar de todos esses fantasmas? (sei que, mesmo que eles não desapareçam, estarás aí para o que der e vier :) )

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    1. Claro que preocupa. E muito! Mas por enquanto ele está mesmo muito bem, muito seguro e muito feliz. Já deixou ha muito tempo de ter medo de monstros e fantasmas. Por enquanto não tenho sinais de que a doença grave que ele teve lhe esteja a fazer mossa. Cá estarei para o ajudar se for necessário...

      (um) beijo de mulata

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  2. Incrível. Eu emociono-me sempre a ler estas coisas. E (ainda, espero) não sou mãe e nao está planeado ser nos próximos anos. Acho que vou morrer no dia em que me nascer um filho. (Enquanto as minhas amigas querem muito ser mães e "já", eu penso sempre sempre que sou demasiado frágil para ser mãe. Se choro a ler todo e qualquer relato seja bom ou mau da maternidade. Às vezes parece que sei que vou viver para sempre angustiada por saber que vou "amar demais" os meus filhos. É de uma responsabilidade tão grande de "criar uma pessoa".).

    Beijinhos.

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