terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

[casa do gaiato] as histórias da tia cármen

(continuando...)

Na Casa do Gaiato, o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dos desenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nas figuras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!

E num fim de semana, enquanto ajudava alguns meninos com os trabalhos de casa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladas sessões de “histórias” contadas à tia Cármen, com um menino de sete anos, que vivia na casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondo lentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios, falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem me lembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitas crianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelo canto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família era muito ameaçador porque ia ouvindo a tia Cármen perguntar:

– Que animal é este dentro do lago?
– É um crocodilo.
– E o que é que ele está a fazer?
– Está à espera que as pessoas passem para a machamba* para as matar e comer…
– E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
– É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos para a escola.
– Para quê?
– Para lhe morder.
– Porquê? Porque é que a cobra lhe quer morder?
– Porque os espíritos maus a mandaram.
– Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?

Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrou uma solução e se reconciliou com o destino:

– Não, porque o irmão mais velho viu a cobra a tempo e conseguiu matá-la.
– Ah, que bom… E ele não teve medo?
– Não, ele é muito forte!
– E os pais, onde é que foram?
– Foram comprar peixe ao mercado.

E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada e protectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores. Qual tinha sido o motivo?, perguntava a tia Cármen. Mas o menino não se resolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, ora dizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé e por isso os pais se tinham ido embora zangados…

Era magistral a forma como a tia Cármen, sem nunca ter tido formação em Psicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas às personagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida e compreender melhor as suas emoções e circunstâncias, apaziguar-se com as suas perdas. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a um momento absolutamente mágico, em que a tia Cármen olhou o menino nos olhos e lhe perguntou:

– Então? Gostaste da história?
– Sim, tia Cármen.
– Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muito corajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
– Sim, tia Cármen?
– Parece que este menino se chama Rafael…

A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Como foi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidade trocado com a tia Cármen anunciava que estava um vínculo criado e lançada mais uma pedra na construção da auto estima e segurança do menino…

Era comentado por todos que os mais pequenos tinham ficado muito mais calmos desde que a tia Cármen tinha chegado. Pudera...

* Machamba – Terreno de cultivo, normalmente do sector familiar.

(continua...)

4 comentários:

  1. Adoro este blog... as histórias que aqui vou lendo tocam mesmo o coração!

    ResponderEliminar
  2. Pequenas palavras que fazem a magia acontecer a essas crianças :)

    ResponderEliminar
  3. Magia mesmo! A tia Cármen é uma mulher mesmo especial!

    (um) beijo de mulata

    ResponderEliminar
  4. e olha que é muito raro encontrar uma pessoa assim numa instituição (cresci numa, onde estive 10 anos) e poucas "cármens" existem, mas ainda bem que as há porque nem chegam a perceber o bem que fazem...

    ResponderEliminar