– Não me parece que estes pais o
queiram levar para casa. Eles devem ser pessoas esclarecidas. Nem tempo tive
para perguntar, mas o pai até me parece que é professor numa das aldeias onde
nós vamos vacinar. Parece-me que o conheço. Olha que até foram a Ribáuè com ele
quase a morrer. Arriscaram-se a muito. Ele podia ter morrido longe de casa!
– Mas acha que os pais o vão
querer depois nestas condições? Acha que vão cuidar dele com carinho, não o vão
maltratar ou negligenciar? Se ficar consciente vai sofrer horrores…
– Ainda não conheces bem esta
cultura. Podes perguntar amanhã aos pais o que querem fazer. Se estás com essas
dúvidas podes sempre dar-lhes a escolher. Mas eu já sei a resposta.
– Qual é?
– Já tive esta conversa muitas
vezes com a Irmã Sarala e com os pais das crianças. E os pais querem sempre os
filhos. Seja em que circunstâncias for. Eles dizem “os filhos são a nossa
riqueza.” E só são ricos se tiverem muitos filhos, mesmo que não lhes consigam
dar muitas coisas materiais. Os macuas adoram crianças. É o que mais me encanta
neste povo.
Na manhã seguinte o menino estava
muito pior. Os lábios quase sem cor, o coração a bater a galope, num esforço
enorme para bombear aquele sangue quase aguado, que claramente tinha sido devastado
pela malária, a respiração agora acelerada, num gemido contínuo… A paralisia de
metade do corpo não era tão evidente. Provavelmente pela simples razão de que
ele estava agora em coma mais profundo. Eu continuava terrivelmente
desconfortável. Mas a que propósito é que eu me tinha “armado em Deus” numa
situação mais do que desesperada? Para prolongar o sofrimento da criança e da
família? Às vezes o melhor que temos mesmo a fazer, o mais sensato, o mais
humano é abstermo-nos de medidas heróicas [ou fúteis, melhor dizendo] e tentar
apenas confortar os meninos e acompanhar a família…
Mas a resposta dos pais foi a que
a Irmã Lurdes tinha previsto. Nem sequer perceberam à primeira o que lhes
estávamos a perguntar. Até porque a palavra macua para “estar bem” é a mesma
que significa “estar vivo”. Portanto primeiro perceberam que lhes estávamos a
perguntar se queriam levar o filho para casa para morrer ou se queriam que o
filho ficasse melhor no hospital. Os pais olharam-me chocados. Depois optámos
por explicar em Português. Aí compreenderam. Mas mesmo explicando que a criança
podia ficar profundamente deficiente nem lhes passava pela cabeça interromper o
tratamento e levá-lo para casa.
A Irmã Lurdes sorriu-me:
– Pronto, aqui tens as tuas
dúvidas esclarecidas.
– Bem, então já que é assim, temos
de lhe fazer uma transfusão de sangue. Não temos banco de sangue em Iapala, por
isso os senhores têm de ir ter com o Sr. Cachimo com este papel para serem os
senhores a dar-lhe sangue.
– Sim, Irmã…
– E temos de o alimentar, vamos
colocar uma sonda até ao estômago para lhe dar comida.
– Tudo bem, até já. Se
precisares de mais alguma coisa estou no escritório – despediu-se a Irmã Lurdes,
alegre.
E depois só para mim: “Eles não
acreditaram, claro. Eles têm esperança. E eu também tenho. Já vi muitos
milagres acontecerem nesta terra.”
– Os milagres não são para estas coisas,
Irmã, o menino está mesmo muito mal. E há muito tempo. Continuo a achar que o
melhor era mesmo deixá-lo em paz…
– Não digas isso.
– Está bem, Irmã, eu não vou
desistir.
(continua...)
que aconteceu?
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