Até há pouco mais de duas semanas eu tinha mais um menino do que tenho hoje na minha consulta. Desde há pouco mais de duas semanas que não o tenho... Mas é precisamente desde há duas semanas que tenho uma história aqui atravessada nos dedos para vos contar.
Eu sei que não é o timing, deixem-me flagelar-me... Nunca é, também... Portugal foi campeão do Europeu e, mal um gajo teve tempo de inchar de ser Português e já temos de ser franceses outra vez e vamos lá ver se não temos de ser turcos já amanha. Os acontecimentos sucedem-se a uma escala que não é a da minha consulta, porque lá as vidas são pequeninas. Pequenas demais para se verem do alto do facebook. Mas se só vivermos à escala mundial acontece-nos como a uma amiga minha, que há uns tempos se queixava de que a indecisão entre o aquecimento global e a vinda de uma nova era glacial estava a deixar o seu sistema imunitário louco. Confesso que admiro profundamente quem consegue perspetivar à escala planetária aquilo que acontece na sua mucosa nasal (e o que escorre dela). Mas eu continuo a ser loira. Loira com dois neurónios, um dos quais viúvo. Por isso só me ocorreria que a minha amiga teria uma rinite. Mas isso tem a modesta vantagem de, em vez de aconselhar o Protocolo de Quioto, quase impossível de cumprir e que, na melhor das hipóteses, só poderá reverter as alterações climáticas dentro de várias décadas, prescrever antes um anti-histamínico e, em calhando, no dia seguinte a minha amiga estaria boa! Ou pelo menos melhor. O que se perderia em superioridade moral ganhar-se-ia em simplicidade e qualidade de vida. Mas enfim, longe de mim ditar tendências.
Mas vá, tudo isto para dizer que tenho a história de uma vida pequenina para vos contar: encham-se lá de paciência, meus amigos... Ninguém vos obriga a vir aqui, que isto já não é o mato divertido de uma loira anónima mas, já que cá estão, não se vão embora sem tomar uma pinga de chá. O meu menino não era o Cristiano Ronaldo, mas era um bom menino. E tem uma história que merece ser contada. É rápida, de qualquer forma. E conta-se em três penadas:
Tenho um menino na minha consulta que viveu numa instituição praticamente desde o dia em que nasceu, abandonado pela mãe na maternidade. Prematuro de 28 semanas porque a sua progenitora consumia cocaína e, num pico de tensão enquanto snifava mais uma dose, teve um descolamento de placenta. Extremo baixo peso ao nascer. Tinha menos de um quilo quando nasceu, esteve ventilado mais de um mês, teve várias septicémias. Na primeira ecografia cerebral percebeu-se que o descolamento de placenta e a cocaína tinham tido consequências ainda mais graves do que a própria prematuridade: o menino tinha tido um AVC que lhe destruíra uma parte importante do cérebro. Para cúmulo, meses depois confirmou-se mais um presente envenenado: infeção vertical por VIH.
Foi este menino que me chegou há um ano à consulta. Era um menino sorridente e bem disposto. Persistente. Depois de meses de fisioterapia começou a andar apesar do cérebro que lhe faltava. Chorava quando se ia embora da consulta porque estava ávido de qualquer atenção. Tentava sempre levar um brinquedo de cima da minha secretária numa carência de afeto indescritível. Dizia algumas palavrinhas (água, papa, olá). Graças ao zelo das funcionárias do lar tinha uma carga viral indetetável desde o primeiro dia. Sorria com confiança para todos à sua volta porque as pessoas que cuidavam dele, apesar de não serem família, sempre lhe tinham sorrido de volta.
Mas há duas semanas, na hora da consulta dele, vi chegar um casal holandês com uma cadeirinha de passeio. Lá dentro vinha o meu menino, a cantar uma canção em holandês. Contra todas as expetativas, o menino tinha sido adotado cinco semanas antes e vinha à consulta já com os pais adotivos. Estavam os três radiantes! Desde há cinco semanas os pais tinham assistido a uma explosão de desenvolvimento. O menino, outrora com um atraso de desenvolvimento grave, que só começara a andar com meses e meses de fisioterapia, tinha começado a correr, a subir escadas, a saltar. Já compreendia holandês. Cumpria todas as ordens que a mãe gentilmente lhe dava: "Vai dar um beijinho à doutora", "Vai arrumar este livro na caixa azul". Já fazia frases em holandês. Estava feliz. Mesmo feliz. Mas no momento em que a mãe lhe disse: "Agora vamos para casa", fez menção de chorar, como fazia habitualmente. Começou a fazer beicinho. Agarrou-se a mim e aos brinquedos que tinha na mão para os levar com ele, no desespero de quem tenta prolongar o momento de atenção e alegria que vivera ali. Gelei por instantes, pelo desconforto que os pais poderiam estar a sentir. Pela angústia de separação do menino. Foi então que de repente, os olhos do menino brilharam novamente. Olhou de novo para a mãe como quem pensa: "Alto, espera aí...". Ela estava ali, à sua espera! Agora tinha uma mãe! E um pai! Afinal já não estava triste. Afinal tinha um sítio para onde ir que era muito mais feliz e seguro do que aquele. E saiu novamente a cantar, na sua cadeirinha, uma canção em holandês, que não me sai da cabeça desde então.
É tão, mas tão bom ver alguém fintar o destino!
*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
Tão bonito. Obrigada!
ResponderEliminarUma família que se encheu de vida!
Eliminar(um) beijo de mulata
E é por este teu coração maior que o mundo e a tua sensibilidade que se espraia como a via láctea, que eu gosto tanto de te ler... Bem regressada sejas!
ResponderEliminarUm beijo, não da cidade das acácias, posto que já cá estou, mas deste jardim à beira mal plantado.
Saudades também, Senhora Dona Ruiva!
Eliminar(um) beijo de mulata
Obrigada por partilhar :)
ResponderEliminarGosto muito de a ler
Obrigada! :)
ResponderEliminarAinda há finais felizes... (Que mania de por uma pessoa com uma lágrima no canto do olho, pá!!!) :) Beijinhos.
ResponderEliminarAna F
Que saudades, princesa!
Eliminar(um) beijo de mulata
Afinal havia uma familia! Afinal havia uma canção! Afinal existia um final feliz que não era um final!...
ResponderEliminarTão bela esta história que não é uma mera história...
Um enorme bem-haja para ti!
Porque não é "chato" vir aqui! Afinal é uma fonte de vida e de momentos felizes.
Com um ramo de :-) (sorrisos)
Obrigada! Há instantes que fazem a vida valer a pena!
Eliminar(um) beijo de mulata
Tive medo a meio... mas agradeço o final feliz :)
ResponderEliminarE eu a meio daquele ano em que o segui tive tanto desânimo...
Eliminar(um) beijo de mulata
Também tive medo a meio... que história linda... :) espero que o menino seja imensamente feliz com os seus papás holandeses.
ResponderEliminarPois, agora tem tudo para correr bem!
Eliminar(um) beijo de mulata
Fiquei de lágrima no cantinho do olho e a sorrir, muito feliz por esse menino e por esta nova família-para-sempre.
ResponderEliminarSou mãe de um rapazinho nascido no outro lado da Europa, prematuro mas não tão pequenino como o seu, com problemas à nascença e dado para adopção mal teve alta da maternidade. Depois de uns meses institucionalizado (nem quero pensar nessa fase, da qual quase nada sabemos), foi entregue à melhor das famílias de acolhimento possível, e esses problemas foram sendo ultrapassados. Um ano depois adoptámo-lo, e o nosso menino é uma criança feliz, saudável, traquinas e imparável que tem desabrochado de uma forma impensável e nos faz felizes de uma forma incrível. Espero que assim aconteça também com este menino e os seus papás. Obrigada por esta história que prova, uma vez mais - já o "bay-de-mulata" o fizera - que os mais bonitos contos de fadas se podem tornar realidade. E é maravilhoso ser-se protagonista de um deles!
Rosário
Fico encantada de a sua história ter corrido como sempre sonhou! Pensei muito em vocês e desejo-lhe as melhores felicidades!
Eliminar(um) beijo de mulata
Obrigada! Eu lembro-me muitas vezes também do baby-de-mulata, e desejo igualmente as maiores felicidades para toda a família.
EliminarRosário
Ainda há finais felizes! Que bom! :)
ResponderEliminarObrigada por publicar esta história da vida real que nos deixa com um sorriso nos lábios e esperança para lá do destino e dos diagnósticos médicos. Porque afinal o destino não está traçado, mas que às vezes parece ter sido escrito de pernas para o ar, parece!
ResponderEliminarVolte sempre beijo-de-mulata, faz-nos falta!!
Que lindo! São estas as histórias que nos dão esperança no mundo!!!
ResponderEliminarObrigada pela partilha! Às vezes, no meio do mundo que vivemos, é tão mas tão importante ouvir finais feliZes!
ResponderEliminarJA FAZ TALVEZ ANOS QUE VOU LENDO O QUE ESCREVE AQUI, SOBRE AS SUAS VIVENCIAS AS SUAS HISTORIAS E NO FUNDO A FORMA COMO VE E VIVE TUDO O QUE SE PASSA EM TORNO DA SUA VIDA...HOJE AO LER MAIS ESTE FABULOSO RELATO DE VIDA...NAO CONSEGUI CONTER ME SEM LHE DEIXAR UMA PALAVRA.... OBRIGADO,... POR SER COMO É E PARTILHAR AQUI ESTAS E OUTRAS VIVENCIAS (UMAS MAIS FELIZES OUTRAS MENOS, MAS SEM DUVIDA, QUE TODAS TEM UMA LIÇÃO DE VIDA...OBRIGADA MAIS UMA VEZ
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