domingo, 18 de julho de 2010
[et in iapala ego] o dia vai avançando
(Continuando o dia na Urgência em Iapala. É melhor pôr o link, não é? Daqui a nada já ninguém se entende neste mato de histórias entrecortadas...)
– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!
(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor...)
– Qual é o medicamento que lhe está a fazer reacção?
– Rifampicina.
Felizmente é um medicamento que conheço bem e pude responder à questão... Mas uma angústia estranha permanece... Não que seja vergonha não conhecer uma doença que é rara no meu país, mas era como se tivesse acabado de vislumbrar um mundo diferente... Lepra?! Qualquer coisa de irracional pulsa dentro de mim e me grita, contra a minha vontade, que algo de muito grave se passa em meu redor... Mas por que será que tenho esta impressão?, pergunto-me... Por que é que, por exemplo, o meu primeiro caso de malária não me fez sentir assim? Será possível que esteja, depois de não sei quantos anos a estudar Medicina, a cair num preconceito veiculado pelo Antigo Testamento? E logo eu, que até achava que tinha uma mente aberta?
Mas, lepra?! Ainda não estou em mim... Esta senhora tinha uma úlcera num pé, mas estava em fase adiantada de cicatrização. Não tinha deformidades visíveis, não tinha amputações de dedos, em suma, não tinha nada que saltasse à vista de um leigo (e como eu sou leiga...) que tinha lepra. Mas não se entrosava com as outras pessoas. Veio só e regressou só. Cobria a cabeça com um véu, não com a graça e vivacidade das mulheres Macuas, mas como uma autêntica burka... Terá sido excluída da sociedade, ou terá sido ela, com a consciência da doença, que se auto-excluiu? Mas se a Lepra tem cura (e ela sabe que a Lepra tem cura, senão não se estaria a tratar e a sujeitar-se às reacções adversas dos medicamentos) por que será que se comporta desta forma? De onde lhe virá a consciência da doença...? De onde virá o estigma, o peso que a faz vergar os olhos? Mas talvez até perceba o que se passa. Talvez tenha reconhecido no olhar desta doente a opressão que via há bastantes anos atrás aos doente com SIDA, antes de os anti-retrovirais terem revolucionado (e, em parte, desdramatizado) a epidemia na Europa... Não se entende... Uma doença tão simples... Muito mais mortífera é a Malária – o Levítico que o diga – e não faz este abalo na vida social! Mas... Lepra? Será possível? E mesmo por baixo do meu nariz!
(Uma menina à minha frente capta a minha atenção... Sim, logo à noite hei-de estudar a doença, agora há que trabalhar...)
Fico rendida a estas crianças quando alguma me sorri. É tão raro não terem medo de mim... Que pensarão elas desta mucunha, como eles aqui chamam aos brancos? Uma mulher sem cor de pessoa que lhes avança a mão para a face e lhes descobre as pálpebras, num gesto mais ou menos aflito consoante a palidez que ostentam. "Nsina nawo mwana?", pergunto. (Como se chama a criança?) E nestes dias já vi desfilar diante de mim, pintadas de preto e em ponto pequeno quase todas as personagens do Antigo Testamento, Ananias, Malaquias, Levítico, Judite, Ozias... Outras têm nomes próprios como Trinta, Malária, Quietinha, Castelo, Apressado, Médico, Fresquinha, que me fazem sorrir. Há certos nomes que nos entreabrem intimidades distantes e nos permitem, deliciosamente, penetrar em qualquer coisa de interdito nas fantasias e sonhos alheios... Vai avançando o cortejo pelo pátio a passo de caracol. É difícil trabalhar com este sono espesso.
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Sim, a lepra pode ser muito discreta e nada parecida com o trauma visual Idade Média... Tinha 10 doentes com lepra no meu concelho de Trás-os-Montes no início dos anos 80. Mal se notava em todos eles, mas o estigma era tremendo, apesar da contagiosidade ser mínima e lentíssima. Ah, uma coisa engraçada e apenas fruto de observação fortuita (sem significado científico algum): eram todos gente incrivelmente esperta. Um desses senhores leprosos (António Veiga, 81 anos) fez-me um poema:
ResponderEliminarSofro da minha cabeça/Ou da coluna vertebral/Quem uns dias anda bem/Nem sempre anda mal./Agora a respeito à minha vista/Ando sempre com azar/Dizem-me que tenho de cegar para me operar/E isto é um caso que me faz desanimar./Já não me importa a vida/Nem de quem dela critica/Tenho o estômago cheio/De remédio da botica.
É de facto um estigma horrível! E que delícia, esse senhor António Veiga... Pode-nos falar um pouco mais sobre a sua experiência com os doentes de lepra?
ResponderEliminarBdM: Pode-nos falar um pouco mais sobre a sua experiência com os doentes de lepra?
ResponderEliminarPS: Como sabe, um dos efeitos secundários do 25 de Abril foi a liberdade. Uma das facetas do exercício em prol desse desiderato passou por abrir todas as portas fechadas, devolver à comunidade todos os seus filhos… Isso começou com os presos políticos, continuou pelos loucos e acabou nos leprosos.
Do ponto de vista técnico, este relaxe era bastante viável, pois, no que aos malucos dizia respeito, o arsenal terapêutico dos anos 70/80 permitia manter os doentes mentais, mesmo os mais assanhados, numa contenção compatível com a sua vida ao ar livre. Quanto aos leprosos, a sua libertação era igualmente possível: o seu número era, em Portugal, muito diminuto, sabe-se que o contágio é difícil e lento, e as drogas usadas no tratamento da doença muito eficazes.
Quem não achou muita graça a todo este jorrar de liberdade foi a dita comunidade que, posta em sossego e sem ter sido preparada, lhe viu ser devolvida, num repente, antigas dores de cabeça e antiquíssimos horrores.
BdM: Sim, mas voltando aos leprosos…
Como sabe, a Revolução dos Cravos foi em 1974 e uma escassa meia-dúzia de anos depois arranquei eu para Trás-os-Montes, com a incumbência de dirigir o Centro de Saúde de Ribeira de Pena, o primeiro dos cinco Centros de Saúde de um projecto Luso-Norueguês no âmbito da Saúde. A Noruega, depois de anos a apoiar os movimentos de libertação africanos, sentia-se, agora que Portugal tinha abraçado a senda democrática, de consciência pesada e resolveu investir no nosso atrasado país. E, como se faz em qualquer país subdesenvolvido de gema, fê-lo investindo numa área geográfica onde a mortalidade infantil rondava os 70 por mil, havia tétano neonatal em barda, surtos de febre tifóide, o sarampo matava que se fartava, abundava o alcoolismo e a subnutrição infantil, uma prevalência de parasitoses intestinais rondando os 75 %, tuberculose de escarro sangrento e, ah!, lepra.
Como vê, mesmo antes da emergência das louras-mulatas, já havia brancos tratados como pretos, o que, do meu ponto de vista pessoal e profissional, foi óptimo para o meu desenvolvimento privado.
BdM: Pois… Mas se pudesse focar-se nos leprosos, no Sr. António Veiga de que me falou.
(2- continuação de "UNDER MY SKIN")
ResponderEliminarPS: Como sabe, a responsabilidade tecnico-hierárquica pela doença de Hansen competia, como ainda compete, à Direcção-Geral da Saúde. Havia, até, um programa vertical de combate a esta micobacteriose tão indesejável. Assim, mal eu aterrei em Trás-os-Montes (Outono de 1980, os castanheiros chamejavam a paisagem e os seus frutos sado-masoquistas, revestidos a couro e pico, pejavam os solos) recebi um contacto dos Serviços lisboetas, a saberem da minha disponibilidade para ser responsável pelos 10 leprosos registados no concelho. Disse que sim, quis saber em que consistiria a minha função.
Até pouco tempo antes todos os leprosos do país estavam confinados numa instituição orientada para o efeito, uma quinta ali para os lados de Cantanhede, conhecida pela “Tocha” (o nome da localidade mais próxima). Todos os leprosos do país se achavam ali internados, numa espécie de turismo rural prolongado. Famílias inteiras, a lepra – devido ao seu modo de contágio lento e íntimo – é uma doença de grande incidência familiar, hospedadas e tomando a sua medicação em regime muito confortável para quem trata (podia-se controlar uma toma efectiva e observada da medicação) e para a sociedade, que podia andar descansada pelas ruas do país sem risco de se cruzar com esses amaldiçoados, esses descartáveis ambulantes, que já nem campainha ao pescoço eram obrigados a usar!
Com o 25 de Abril toda essa malta foi devolvida à comunidade, até porque já eram poucos e tudo aquilo ficava muito caro, não sei, até, se já começava a germinar a ideia de fazer da Tocha um hotel de charme, albergando um celebrativo e nostálgico bar chamado “Under My Skin”.
A comunidade, como sabe e como eu dizia no princípio desta agradável troca de impressões, não achou graça nenhuma a esta devolução e, o que é mais curioso, os leprosos também não! Por um lado, eles imaginavam bem como iam ser recebidos por parentes e vizinhos, por outro, alguns dos doentes mais novos não tinham conhecido na vida outro lugar a não ser a quinta da Tocha, onde chegou a haver escola e tudo. Era, para todos os efeitos, o lar deles.
Foi isto que herdei, como, calculo, outros colegas terão herdado semelhante no resto do país. Dez leprosos, mais os medicamentos para os tratar; a responsabilidade de os manter controlados, a obrigação de comunicar o surgimento de novos casos, o desfecho dos actuais para a cura ou para a morte.
(3- continuação de "Under MY Skin"
ResponderEliminarNada disso se revelou muito difícil. Todos eles, expulsos da Tocha há relativo pouco tempo, estavam mais do que interessados em continuar o tratamento e os medicamentos (uma associação de drogas, pois, tal como na tuberculose, de que a lepra ainda é meio prima, não se pratica tratamento monovalente) não se vendiam nas farmácias, era eu que guardava o stock e o distribuía de acordo com as necessidades. Alguns dos doentes apareceram no Centro de Saúde por iniciativa própria, a outros escrevi pedindo que aparecessem, a um ou outro, mais tímido, foi a equipe do centro de saúde procurar a casa.
Os que apareceram espontaneamente foram recebidos à pedrada pelo pessoal administrativo da secretaria. Mal perceberam, do lado de lá do vidro do guichet, quem chamava, desataram a tratar essas pessoas como se fossem animais sarnosos e, praticamente, eles foram expulsos por uns minutos das instalações.
A primeira vez que isso aconteceu, envergonhado e logo que percebi a causa daquele alarido, fui procurar a pessoa ao jardim, convidei-a para entrar e recebi-a no meu gabinete de director.
Quem eu tinha sentado à minha frente era um senhor delicado, com um cabelo branco-de-neve cortado à escovinha e uma face onde luziam uns olhos azuis inteligentes, um deles algo riscado pelo tom clara-cozida de uma catarata. Chamava-se António Veiga, tinha uns bem conservados 80 anos e, enquanto falava com ele, eu tentava, disfarçadamente, encontrar no seu corpo alguns dos clichés que associamos à lepra, talvez ver cair à frente dos meus olhos o seu nariz. Nada, o que mais impressionava naquela figura era o ar inteligente, o pensamento claro, a pose aristocrática, a camisa de colarinhos engomados e tesos, própria para ir à vila. Depois... Bem, olhando com atenção, o Sr. Veiga tinha as sobrancelhas um tanto rarefeitas, a arcada supraorbital era um nada reforçada, o que lhe conferia um fácies remotamente leonino, talvez lhe faltassem um ou duas falangetas (já não me lembro) nas mãos que se exprimiam tão condizentemente com o discurso.
O Sr. António Veiga era o mais velho de todos os meus leprosos, como tal, todos os outros, por terem começado a beneficiar dos tratamentos ainda mais cedo na vida, tinham ainda menos sinais visíveis da doença. Alguns não tinha sinais visíveis e queixavam-se apenas de alterações da sensibilidade cutânea.
Nesse dia, o da primeira visita de um leproso ao Centro de Saúde, instituí uma regra clara: de cada vez que aparecesse um desses doentes, o procedimento passava por o conduzirem ao gabinete do Director, onde este seria recebido e orientado para a prestação de cuidados necessária. Sempre.
Nessa época (1980/1984) o concelho de Ribeira de Pena era, juntamente com o concelho de Alcoutim, o concelho mais atrasado de Portugal e os seus indicadores de desenvolvimento e saúde faziam lembrar a África subsaariana actual. Mas, mesmo dentro do concelho, havia assimetrias e os meus 10 doentes leprosos eram, na sua maioria, originários da freguesia mais a norte, uma zona de floresta onde os lobos e os javalis se moviam livremente (um pouco do ambiente dessa zona pode ser vislumbrado no meu texto “Remédio Santo”, em www.semcompromisso.com).
4 - Continuação e final de "UNDER MY SKIN"
ResponderEliminarBdM: Passados todos estes anos sabe o que é feito dessa gente?
PS: Como sabe, saí de Trás-os-Montes no Verão de 1984. Nunca mais soube nada dessa gente. Durante todos os anos em que lá permaneci o Sr. António Veiga visitava-me com certa regularidade; umas duas ou três vezes por ano, que a aldeia dele não tinha transportes para a vila e ficava perdida no meio da serra. Conversávamos um pouco sobre tudo, ele era um homem sábio. Numa dessas visitas ofereceu-me um poema, escrito numa caligrafia trémula e infantil num papel pautado. Um poema sobre a sua sorte de doente, sobre a vida e a condição humana, onde a lepra é apenas um fait-divers entrevisto. Não perdi o rasto a esse poema, pois usei-o como epígrafe num artigo que publiquei sobre o tema da medicina popular.
Tendo em conta a idade que tinha nesses anos (mais de 80 anos) e tudo isto se ter passado há cerca de 30, calculo que o Sr. Veiga se passeie agora por pastagens mais verdes, que tenha despido a sua pele magoada e que a sua face, levemente leonina, sorria agora aos outros cordeiros que também por ali descansam.
Delicioso, absolutamente delicioso! Muito obrigada pela sua narrativa tão gentil e tão expressiva...
ResponderEliminarE, já agora, será que este comentário (interessantíssimo, confesso que me fiquei a babar, autenticamente!) poderá ser transformado em artigo para a revista da Associação que em Portugal se dedica ao combate à lepra e à exclusão social dos afectados pela doença (é que ela ainda existe...)
ResponderEliminarE falei de ovos, duas vezes: da gema e da clara...
ResponderEliminarClaro, por mim tudo bem. Penso que, a ser publicado, deveria ter um toquezito aqui e ali. O que acha? Não conheço o estilo da revista. Escrevi isto hoje à tarde, à flor da pele, entre o divertido e o nostálgico.
ResponderEliminarFoi (também) por causa dos ovos que lhe chamei delicioso e gentil! E pela forma amável e leve como me incluiu na narrativa... Quanto à publicação, não se preocupe que a ser publicado lhe será mostrada a versão final, mas a revista é leve e arejada, como o seu texto.
ResponderEliminarMuito, muito obrigada!
(um) beijo de mulata
Ok, Moo, e não agradeça. "It's been lovely working for you this evening", como diria o Frank Zappa.
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