sexta-feira, 9 de julho de 2010

[iapala de madrugada] mais um dia

 



É manhã novamente. Arrefeceu muito durante a noite e, na cama morna, minutos antes da hora de levantar, o já meu conhecido linguajar pluvial dos coqueiros recria uma ilusão outonal, calma e reconfortante, de chuva branda num sábado de manhã. Recompensa justa por uma noite sobressaltada. Uma chamada urgente do hospital a meio da noite por causa de um menino que chegou febril e em crise convulsiva prolongada, trazido pela família já em desespero.

Apesar de o hospital ser mesmo em frente à casa das Irmãs, o medo que os africanos têm dos cães que guardam a Missão, que presumo motivado pela raiva que por aqui abunda, teria decididamente impedido que me fossem chamar durante a noite. Mas a Irmã Lurdes, Superiora da Missão, criou um sistema simplesmente hilariante para contornar o pânico que os africanos têm dos cães sem pôr em causa a nossa segurança: dois apitos de árbitro de futebol, adquiridos em Portugal no Estádio do Benfica pendiam no Hospital pregados à parede, um na Maternidade e outro na Urgência Geral, prontos para qualquer eventualidade. E esta noite tinha sido acordada pelo silvo impaciente do Glorioso* expulsando-me da cama com cartão vermelho. Vesti-me rapidamente, um pouco às apalpadelas e saí para a rua de lanterna em punho, que apesar do luar é preciso ver bem onde se pisa, não fosse aparecer alguma cobra perdida no jardim...

(Aqui de nada serve a valentia dos que dizem não ter medo de animais rastejantes: ingenuidade! Não temos soro antiveneno no hospital - não existe em toda a província - e nem quero imaginar como é que faria a mim própria o desbridamento de uma ferida sem qualquer anestesia. Mesmo durante o dia é preciso ter muito cuidado, ver sempre onde se põe os pés e, no meio do capim, pisar só onde o da frente pisa. E só passar por debaixo de um cajueiro se se ouvir claramente o chilrear dos passarinhos: de outro modo há cobras nos ramos pela certa! Mas vamos à história, que deixámos o menino a convulsivar à porta do hospital, com a família a dizer, como habitualmente, que o menino estava possuído pelos antepassados. O que vale é que enquanto divagava sobre as cobras lhe administrei um diazepam e a convulsão lá cedeu...)

Em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo para perder à espera de análises laboratoriais. Nem o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora... Só então arranjámos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e tivemos de o acomodar no corredor... Na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no pwarrow, um abrigo amplo, com telhado mas sem paredes, situado fora do edifício principal do hospital. Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente. Mas devemos ter ido a tempo. A acreditar no que a família me diz, a doença começou esta noite. E até estou surpreendida por me terem trazido o menino ainda nas primeiras horas de doença, já que normalmente a família procura antes de mais um curandeiro. Mas depois percebi que só vieram primeiro ao hospital porque não encontrariam um curandeiro durante a noite. E só depois de uma discussão acesa sobre se esperariam ou não pela manhã... Mas o que interessa é que felizmente se tinham decidido a vir.

Demorei-me um pouco a escrever no processo e só quando saí do gabinete me apercebi de que um homem ainda jovem chorava baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino, que dormia sob o efeito da terapêutica.

– O senhor é o pai?
– Não, sou tio.
(Não há maneira de interiorizar esta cultura, caramba! Isto é uma sociedade matrilinear. Quem tem o poder paternal é o tio materno. Vê se aprendes!)

Talvez compreenda Português, pensei:
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que eu lhe dei para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver, porque todas as pessoas que tinha visto com malária cerebral tinham sucumbido. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino resistisse. Parou de chorar.

– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o sobrinho...

(Continua, como não podia deixar de ser.)

* Também tu, Iapala?

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