sábado, 10 de julho de 2010
[e a noite continua] em iapala
(Continuação da história de ontem...)
Do outro lado do hospital ouvem-se gemidos de mulher e alguém que me chama pelo nome, mas não os consigo localizar, virão da maternidade? Atravesso o pátio tentando não acordar os familiares dos doentes internados, que dormem no chão do alpendre. Os gemidos vêm, de facto da sala de partos. Oiço a voz da parteira incitando mansamente a parturiente a fazer força.
– Está tudo bem, D. Catarina?
– Entre, Doutora.
A sala de partos, alumiada por uma única vela, está cheia de penumbra e sombras enormes nas paredes, mas consigo distinguir claramente a face da jovem grávida que trouxemos de Murralelo, que afinal era uma das professoras da escola da aldeia. Já estava ao corrente de que todos os seus partos anteriores tinham sido em casa mas, apesar de ser ainda jovem, este seria o décimo filho e como no ano passado tinha tido um nado morto após um trabalho de parto particularmente complicado, decidira-se a vir dar à luz este “menino de ouro” no hospital da Missão, deixando os outros filhos durante uns dias ao cuidado das tias e dos irmãos mais velhos.
Deitada, completamente despida sobre a marquesa surpreende-me o seu corpo completamente tatuado do peito para baixo, até aos joelhos, com padrões em relevo bem delineados e quase perfeitamente simétricos, que só podem ter sido realizados com incisões cutâneas profundas de forma a fazer este tipo de cicatriz. Tento não fazer uma expressão que denuncie o meu sentimento de horror por aquele corpo martirizado. Beleza, a quanto obrigas... Ao seu lado, a D. Catarina tem a mão sempre pousada sobre o ventre da jovem mãe, num quadro que faz evocar a maternidade de outros tempos.
A parteira é uma mulher robusta, com uma personalidade forte e determinada, viúva e também mãe de dez filhos, infelizmente nem todos vivos. Tem sobretudo uma intuição fortíssima, em que já confio quase cegamente. Na maternidade, onde raramente estou porque tenho imenso trabalho noutros serviços, sem o apoio de um aparelho para registar a frequência cardíaca do feto e as contracções uterinas fico completamente cega, sem qualquer referência para me orientar e os meus parcos conhecimentos de Obstetrícia servem-me para muito pouco... Ela, pelo contrário, não arreda pé da sala de partos, dure o trabalho de parto quanto tempo durar. E um parto com a D. Catarina é um momento singular de íntima serenidade, que quase nos faz jurar que afinal é impossível haver gritos e choros e descontrolos...
Quando o parto decorre normalmente, ela conversa com as mamãs, canta canções às mais novas, faz-lhes massagens de relaxamento no intervalo de cada contracção, mas quando se apercebe de que alguma coisa está a correr mal, transfigura-se completamente... E já várias vezes antes me chamou, preocupada, a dizer que há um feto em sofrimento que tem de ser transferido para o Hospital Distrital de Ribáué, onde há um bloco operatório. Nem sequer consigo imaginar como é que ela, sem auscultar o feto, percebe o que se passa, mas quando me pede para chamar a Irmã Lurdes para transportar a mamã, quase invariavelmente tem razão.
Mas vamos à vida, que já estamos novamente a divagar sem fazer nada, que aflição!, e a pobre parturiente a aqui a gemer, com a dilatação quase completa... O que lhe vale é que tem tido sempre as mãos experientes da D. Catarina a massajá-la para a ajudar a relaxar. Este parto também não está a correr bem. As contracções estão muito espaçadas e a D. Catarina está preocupada. A bolsa das águas já rompeu há muitas horas e a senhora está a ficar com febre. E o pior de tudo é que o útero se está a contrair pouco e a senhora corre o risco de ter uma grande hemorragia no pós-parto... Ausculto os batimentos cardíacos do feto, que estão anormalmente acelerados... Sei o que isso quer dizer: Infecção!
– Não podemos colocar um antibiótico à senhora?
– Sim, Doutora, mas tem de prescrever.
– Claro, prescrevo já. E não têm nada para aumentar as contracções?
– Talvez haja oxitocina no armazém... Se a Doutora tiver a chave.
– Tenho, vou ver se encontro alguma coisa que nos sirva...
Havia, felizmente, duas ou três ampolas com um rótulo em alemão, certamente doadas por alguma ONG que coopera com as Irmãs. Em pouco tempo as contracções tornaram-se mais próximas e prolongadas.
– Já está quase, faça força outra vez. Quer fazer o parto, Doutora?
– Não, nem pensar! Nunca fiz nenhum...
– Não acredito, Doutora está a mentir!
– Não, é verdade. Ou melhor, fiz um, mas com muita ajuda...
– Eu ajudo também. Doutora vai fazer o parto.
Não havia como argumentar, a D. Catarina tinha decidido que quem faria o parto seria eu. Arregacei as mangas e calcei as luvas mesmo a tempo de receber o bebé. Foi muito fácil este parto, realmente, foi quase só amparar o períneo e impedir que o bebé caísse estatelado no chão... Graças a Deus! A natureza providenciou tudo o resto. E à pálida luz da vela houve um momento incrível de expectativa e silêncio absoluto, em que entreguei o menino à D. Catarina, que o esperava mansamente ao meu lado, com uma capulana nas mãos. O bebé teve choro imediato, num grito que encheu a noite e os gemidos e receios da mãe transformaram-se em riso e agradecimento.
– Nasceu! Nasceu e é macho! Papá, nasceu e é macho!
O grito de júbilo da D. Catarina enquanto eu cortava o cordão umbilical e o alarido das familiares da parturiente que se seguiu só pode ter acordado o hospital inteiro! Também eu estou quase de lágrima a assomar ao cantinho do olho... Ainda nem acredito que, sem contar com nada disto, acabei de receber um bebé pelas minhas próprias mãos...
(Continua, mais uma vez...)
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Como gosto de te ler!!! Ainda não encontrei nenhum blog que me dissesse tanto como este! Gosto...gosto muito!
ResponderEliminarObrigada! Volte sempre... E também gosto de ouvir as histórias que os outros têm para partilhar...
ResponderEliminar(um) beijo de mulata
Estou a adorar acompanhar as tuas histórias.
ResponderEliminarNão sabia que escrevias tão bem.
Beijinhos e bom trabalho minha querida.
Beijinhos muito grandes também para ti e para a D.
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