quinta-feira, 15 de julho de 2010

[et in iapala ego] na urgência


(E o dia continua...)

Na sala de urgência dizem-me que a técnica de Saúde Materno-Infantil foi passar o fim-de-semana a Nampula e "desconseguiu de chegar a tempo". Vou ter de ser eu a fazer a consulta de urgência da Pediatria, mas o edifício onde funciona o atendimento às crianças é tão escuro que peço para me transferirem a secretária para o pátio interior do hospital. Que falta que nos faz a energia...

Começa a chegar a procissão do paludismo... cada mulher carregando devotamente o seu andor anémico e febril enfaixado contra o corpo com capulanas coloridas. Vêm bichar quinino e cloroquina, como bichavam milho nos tempos da guerra... E ainda para mais, a palavra Macua para "medicamento" ou "comprimido" é, salvo melhor transcrição, kininu, delicioso equívoco que me custou meses a desvendar.
Mas, para meu desespero, esta manhã, em vez da mefloquina para profilaxia da malária, tomei por engano o anti-histamínico que tinha destinado para me adormecer e embalar na viagem de regresso e me fazer esquecer as saudades deste povo fantástico. Malditas embalagens que me tornam tudo igual na miopia das madrugadas! E o pior de tudo é que só dei por isso a meio da manhã quando comecei a perceber que não podia culpar o café de Iapala pelo sono que sentia. Mais aromático que qualquer Arábica, curto, conciso, contundente, contava com ele para me sacudir a modorra da manhã, mas... tarde demais, não tinha ido a tempo.

E o cortejo das febres, interminável, estende-se já até ao fundo do pátio sem parar de crescer. Malária, malária, malária, anemia, desnutrição, queimaduras, pneumonias, pielonefrites, bilharziose – endémica na província – uma suspeita de doença celíaca, epilepsia e, claro, a SIDA de que suspeito constantemente, embora não possa fazer testes confirmatórios nem tenha anti-retrovirais. É o que mais me dói não poder tratar nestas crianças. E pensar que, pelo menos nelas, a doença se poderia prevenir de modo tão simples... Mas não posso pensar nisso. Tenho de tratar só o que vejo e o melhor que souber. A cólera, felizmente, não anda por estas paragens nesta altura do ano e o sarampo é já praticamente desconhecido graças aos empenho das Irmãs nas campanhas de vacinação. Valha-nos isso, que com este grau desnutrição o sarampo teria 50% de mortalidade...

De súbito, o Director do Centro de Saúde vem pedir-me conselho sobre como gerir uma reacção adversa que uma doente está a ter a um medicamento. Vem acompanhado de uma senhora de olhos tristes.

– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!

(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor... Lepra, valha-me Deus?)

3 comentários:

  1. É impossível ficar indiferente aos teus posts e à maneira como escreves (e descreves) as situações.
    Admiro-te. Mesmo!

    Queria perguntar-te se o gato do teu amigo que sobreviveu com o interferao, tinha PIF seca ou húmida, qual a idade (+/-) e se se curou mesmo ou apenas lhe prolongou o tempo de vida.
    Pergunto isto porque comecei a dar interferao à minha gata e todas as informações são, para mim, preciosas.

    Obrigada!

    Beijinho

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  2. Bem, o "Pantufa" na altura ainda não teria um ano e sobreviveu com o interferão e ficou bem. Não sei se seria uma peritonite seca ou húmida, como lhe chama, mas não me lembro de ouvir falar em ascite portanto deveria ser seca. Mas eu sou pediatra, de gatos não percebo rigorosamente nada, portanto não lhe queria estar aqui a dar falsas esperanças quando há alguém que sabe muito mais do que eu e diz que não há muitas hipóteses...

    Beijinhos e as melhoras

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  3. Obrigada minha querida, por ter dispendido um bocadinho do seu precioso tempo para me responder.

    Perguntei, porque tudo o que tenho pesquisado se pode resumir, infelizmente, a isto:
    "A PIF é, em qualquer um dos casos, mortal. A doença não tem cura, embora exista tratamento que alivia os sintomas e os efeitos secundários da doença, permitindo prolongar a vida do animal. A PIF seca é a mais comum e permite que o tempo de sobrevivência à doença seja maior. A particularidade da PIF húmida é a acumulação de líquido no abdómen."

    Beijinho muito grande :*

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