terça-feira, 31 de janeiro de 2012

[desabafos de uma médica] proposta desonesta...

Confesso, meus queridos amigos, que já estou a ficar um pouco cansada da história da "cabeça grande", da gazela, dos tabus e da ética do povo macua... O problema é que não a podemos dar por terminada porque deixámos um menino em coma no hospital e ainda temos de ir cuidar dele quando acabarmos esta conversa.

Nem sei se alguém ainda se lembra por que é que estamos com esta conversa toda. Eu resumo-vos, então, se não quiserem ir ler a história a partir daqui: um menino de 15 meses chegou completamente em coma ao hospital de Iapala com malária cerebral e, quando percebi que ele estava em risco de vida e só havia um medicamento que o podia salvar, disseram-me que esse medicamento estava  trancado no armazém e que o director do hospital tinha ido à cidade e levado a chave com ele. Fiquei louca! Felizmente, a Irmã Lurdes, pragmática como sempre, acabou por tomar a iniciativa de nos meter a todos no carro até ao hospital mais próximo e conseguimos a medicação para o menino.

Chegámos ao hospital com ele vivo, mas ainda não percebi se fomos a tempo porque ele continua em coma. Neste momento só nos resta esperar e aqui estamos nós, à espera que o tempo passe, enquanto a Irmã Lurdes me tenta acalmar. Em conclusão, estamos num momento "Senhor, dai-me sabedoria para compreender este povo, porque se me derdes força eu vou desatar ao murro a toda a gente!".

Mas já estou cansada... Portanto, eis aqui a minha proposta [é desonesta, eu sei, mas quem diz a verdade não merece castigo]: eu digo-vos que acaba tudo em bem, que o menino fica bom, e passamos à próxima história. Que me dizem?

[instantes] a caminho de casa


Vamos, meninos, vamos para casa... Anda, Mendonça, não fiques para trás!
(Iapala ao fim da tarde, Nampula)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

[tabus e tradições] a cerimónia da gazela


Instante no Kruger Park
(África do Sul, foto da R.)


– Mas... e no meio disso tudo não há ninguém que fale claramente do que aconteceu, não há ninguém que clarifique os sentimentos ou que explique como é que se deve fazer para a próxima?
– Não, ninguém fala. Só às vezes os homens quando bebem.

– Mas não há ninguém com ética nesta terra? Ninguém que dê o exemplo?
– Há, claro! Muita gente. O que eu acho é que é muito injusto para as pessoas. Sobretudo para os jovens e para os adolescentes. Eles têm uma consciência e sofrem como toda a gente. Só que têm de aprender às próprias custas que sofrem menos se não fizerem certas coisas. Mesmo que essas acções não sejam condenadas pela sociedade. Ou mesmo que ninguém saiba.

– Pois!
– É isso que eu tento explicar às meninas todos os dias. Que podem evitar o “muru tokotokho”, ou os remorsos, como tu dizes, e vão sofrer muito menos se não brincarem com os afectos, se não se envolverem com alguém de quem não gostam, se não prejudicarem os outros, se não roubarem…

– E elas entendem isso?
– Acho que só entendem quando passam por isso.

– E o que é que faz quando elas apanham a tal “cabeça grande”?
– Eu mando-as fazer cerimónia, claro, senão não passa nunca mais…

– Mas isso é reforçar esse comportamento e essa tradição. Não se consegue mesmo desmontar estas crenças?
– Eu nem tento. Elas vão um fim de semana a casa fazer a cerimónia, têm colinho da família e vêm geralmente mais bem-dispostas. Mas depois falo muito com elas, tento fazer uma reflexão sobre o que fizeram e o que sentem.

– Mas elas dizem-lhe o que foi?
– Não, claro! Mas eu geralmente sei. Ou foi um namorado que as deixou, ou foi alguém de família que faleceu e com quem elas tinham discutido sem fazer as pazes, ou foi alguma coisa grave com as amigas… enfim… geralmente não é muito difícil de perceber.

– Pois, os adolescentes são iguais em todo o lado.
– Sim, só que acho que estes são mais frágeis… Têm de aprender muita coisa às suas próprias custas. E é preciso ser muito inteligente para perceber o que se passa e ter crítica sobre a sociedade e a cultura. Não é fácil ter crítica quando não se pode falar com medo do que possa acontecer…

– Pois… não deve ser fácil. Mas nessas cerimónias vem mesmo a família toda?
– Vêm os que podem. Mas sim, geralmente vêm todos.

– E deixam tudo o que têm a fazer porque a menina teve um namorico, está envergonhada e portanto é preciso ir matar uma gazela?
– Bem, se pões as coisas dessa forma…

(continua...)

[instantes] um banho no rio monapo


Tomando banho e lavando a roupa pela manhã no rio Monapo.
(Iapala, Nampula)

Sim, já bebi desta água... E também já uma vez banhei os pés neste rio. Miraculosamente, a única doença que apanhei foi aquela que já tinha: o feitiço de África.

domingo, 29 de janeiro de 2012

[inês] a leprosa de napipine...



Esta não é a Inês, obviamente, mas tem um sorriso parecido com o que ela tinha quando, por fim, me despedi de Iapala...
(Nampula, Moçambique)

Hoje é o Dia Mundial dos Doentes de Lepra. Já vos contei a história da Inês, a menina que fui procurar a Nampula porque, por qualquer razão que desconhecíamos, tinha abandonado a escola. A história é longa. Demorámos quase dois meses na viagem*... Algumas pessoas estiveram ao meu lado desde o início [com mais ou menos reclamações!]. Algumas desistiram. Outras foram saboreando a história. No fim, foram muitos os que me disseram que tinha valido a pena.

A Inês tinha deixado de ir à escola porque tinha uma doença de pele que a família pensava que era lepra e, depois de mil e uma peripécias, consegui que viesse ter comigo para a tratar:
"Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.
Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.

– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!

Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que alguém podia ficar feliz por ver uma leprosa?"
* Para quem não sabe do que estou a falar, a história começa aqui, e a parte que fala concretamente da Inês começa mais adiante, mais precisamente aqui.

[instantes] a riqueza de moçambique são as crianças!


Queres um balão, princesa?
(Ribáuè, Nampula)

[inspiração para uma despedida] o tesouro que te deixo...

Tenho apenas uma certeza. É que te deixei um tesouro. É verdade isto que te digo! Talvez um dia o compreendas, não agora, que sei que o desconforto ainda não se foi. Aquilo de mais precioso que te deixo não são as recordações do que vivemos, por mais bonito que tenha sido, mas a verdade que viste nos meus olhos quando te reflectiam, e a minha confiança inabalável em ti. Eu sei, não acreditavas nessa imagem de perfeição. Era um disparate, dizias. Era um delírio meu, pensavas. Talvez em algum momento tenhas quase acreditado, não sei. Mas isso é tão irrelevante... A única verdade é que tu gostavas dessa imagem. E é esse o motor de todas as vidas. E também o rumo e o sentido de todas elas: a vontade de se assemelhar a uma imagem reflectida.

De resto, deixo-te o que não vivemos. Acrescentado de um bocadinho de flor-de-sal: a convicção de que terias sido capaz. E que portanto é possível. Não comigo, obviamente, que já não estarei aqui. Mas tenho uma fé indestrutível de que vais ser feliz!

[Variações de Raoul Follereau]

sábado, 28 de janeiro de 2012

[a vírgula de oxford] occupy facebook


Graffiti no mural do Facebook
(Sede do Facebook, EUA)

Meus amigos, quem me conhece aqui do mato há mais tempo, ou mesmo quem já tropeçou no meu perfil por essa blogosfera acima*, sabe que sou uma fervorosa adepta de inutilidades gramaticais. E, em homenagem ao meu mentor espiritual [sim, o dos soluços, quem mais?],sou uma fã incondicional da vírgula de Oxford. É um guilty pleasure... E porque esta temática me é particularmente cara, fico sempre feliz quando alguém comunga deste meu interesse e portanto não resisto a partilhar convosco o diálogo genial que encontrei no mural de uma amiga aqui há dias... [O voyerismo também é um guilty pleasure, mas esse negarei até ao fim!]

[Amiga] - Se há coisa que me irrita é os alunos corrigirem-me as vírgulas antes das conjunções copulativas "e". Quando se põem a reclamar que "antes de e não se usa vírgula", gostava de saber quem é que lhes ensinou esta regra sem exceções, para desatar à bofatada!

[Comentadora A, também professora] - Que saudades da palmatória...
[Amiga] - À bofatada, mas não aos alunos... A eles só às vezes. Noutras situações...
[Comentadora B] - Adoro bofatadas. Isso e amandar apagadores e canetas de escrever no quadro.
[Comentadora C] - É incrível, ainda hoje quando as uso antes do "e" me sinto a transgredir.
[Comentador D, imagem de perfil obviamente manipulada, com um homem africano de cabeleira exuberante e um ar de quem meteu os dedos na tomada] - O verbo amandar é chelente! Vai fazer o jantar, Amanda!
[Comentadora B] - Mas que lindo penteado, D!
[Comentadora C] - Um bocado queimado...
[Comentadora B] - Bota esturrado nisso!
[Comentadora C] - Apetece desfazê-lo à mangueirada. E de caminho desenfarruscá-lo.
[Comentadora B] - Já agora, há pouco não frisei que tenho muito boa apontaria no que toca a canetas e mangueiras.
[Comentador D, o da cabeleira] - Nem por isso, acertaste da persiana...
[Comentadora B] - Estás consdipado?
[Comentador D] - Não, sou bimbo mesmo!
[Comentadora B] - Bimbo e com essa figura, olha que a dona deste muro expulsa-nos daqui!
[Comentador D] - Por acaso também me ocorreu isso. Esta conversa começa a parecer um graffiti em mural alheio.
[Comentadora B] - Olha como ela está aqui tão caladinha. Deve estar maldisposta, se calhar já íamos...
[Comentador D] - Sim, anda daí, e vamos vandalizar outro muro!
* Também pode ser "por essa blogosfera abaixo" ou "por essa blogosfera adentro", mas gosto de pensar que a blogosfera está para cima...

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

[vozes brancas* #60] está ali um rei!

Ontem na consulta de um menino com três anos e meio, muito caladinho e envergonhado, escondido no regaço materno... E eu perguntava:

- E então, ele agora já fala melhor? Da última vez ainda estava com dificuldade na articulação de alguns sons.
- Ui, se fala, Doutora, bem demais!
- Então?
- Ai, nem queira saber, no outro dia foi a babá que o foi buscar ao colégio e passou uma vergonha no autocarro!
- Pois... ainda não há muita crítica nesta idade... Mas o que foi que aconteceu?
- Bem, eles iam a passar pela embaixada da Índia e entrou um senhor indiano com um turbante enorme, com uns brilhantes e uma roupa assim muito colorida e ele começou a dizer à babá: "Carla, está ali um rei!" e ela: "Sim, sim, querido, chiu, mais baixo." e tentou distraí-lo, mas ele continuava cada vez mais alto e a apontar para o senhor: "Carla, olha, olha para ali, está ali um rei!"
- Ahaha, lindo...
- Ela já nem sabia onde é que se havia de meter, porque estava toda a gente a olhar e a rir e o senhor muito encavacado... E ela: "Sim, querido, já vi. E o que é que fizeste hoje na escola?" E ele já completamente em euforia: "Carla, mas tu não estás a olhar! Está ali um rei! Eles foram levar presentes ao menino Jesus! É o Belchior!"

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[educação estética] e a "cabeça grande"

(continuando...)

– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".

– Exactamente! É isso mesmo. É verdade isto que te digo.

– Mas não é assim tão simples. Se ele é mesmo boa pessoa como a Irmã diz que é, não acredito que não lhe pese na consciência se depois vir que a medicação fez falta a alguém e houve gente a morrer por causa disso! Mesmo que ninguém descubra. Aí qualquer pessoa se apercebe de que fez mal.
– Pois… aí entra-se numa dissonância.

– E então, aí não percebe que agiu mal? Ou há mesmo um aniquilamento total da consciência nesta cultura?
– Não, não há. Eu acho até que é por isso que este povo tem tantas neuroses, tantas depressões, tantos problemas psicológicos.

– Como?
– Sim. Quando alguém se apercebe do mal que fez mas mais ninguém se deu conta, a pessoa sofre. E é um sofrimento igual ao de uma depressão ou de uma perda importante. Até há uma doença que se chama “muru tokotokho”, que quer dizer “cabeça grande”.

– Cabeça grande?
– Sim, é uma doença muito difícil de tratar. Muita gente nesta terra sofre disso. Não só por terem roubado, mas também por terem lançado feitiços a outra pessoa, ou terem prejudicado alguém, ou feito um aborto, ou quando morre alguém e se sentem culpados por isso, mesmo sem terem culpa nenhuma.

– Em Português isso chama-se remorsos. Ou escrúpulos!
– Pois, mas não é só isso. Eles não têm como reparar o erro. Não podem contar a ninguém e também não podem ir ter com a pessoa a quem fizeram mal e confessar e pedir desculpa. Ninguém pode saber, porque isso sim é que desonra a família e os antepassados! E portanto ficam num beco sem saída. É por isso que é tão difícil de tratar.

– Irmã, que disparate!
– É assim que o povo pensa.

– Pronto, está bem… Realmente assim não deve ser fácil. Quando não se pode falar fica-se muito sozinho, de facto. E se for alguma coisa importante não se consegue deixar de pensar nisso. Por acaso até é uma metáfora bem apanhada: “cabeça grande”!
– Pois, quando alguma das nossas meninas começa a andar cabisbaixa, triste, sem conseguir comer e a queixar-se de dores de cabeça eu já sei que é o “muru tokotokho”.

– E não tem cura?
– Tradicionalmente tem. É preciso ir ao curandeiro e fazer uma cerimónia muito complexa, que envolve a família toda. É preciso ir à caça de uma gazela, remover-lhe o fígado, prepará-lo e dá-lo a comer ao doente de uma forma especial.

– Mas isso não resolve nada!
– Às vezes ajuda, sobretudo quando a pessoa se sente culpada mas não teve culpa nenhuma. O pensamento mágico aqui também está muito enraizado. As pessoas pensam, por exemplo que, por desejarem mal a alguém, podem mesmo fazer-lhe mal.

– Sinceramente, não compreendo!
– Não compreendes o quê?

– Não compreendo então como é que comer as vísceras de uma gazela faz com que a pessoa se sinta melhor!
– Ora, no fundo, junta-se a família toda numa festa onde se come gazela e se dança e se canta. Aproveita-se e matam-se saudades, tem-se mimo, conversa-se com quem já não se via há muito tempo… As pessoas ficam confortadas…

– Mas isso não resolve o problema de fundo.
– Pois, por isso é que se diz que “quem não apanha sorte” não fica curado. É preciso “apanhar sorte”. Mesmo que a cerimónia seja bem feita e corra bem.

(continua...)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

[não é vergonha roubar] vergonha é roubar e ser apanhado!

(continuando...)

Fomos jantar. Eu estava perturbadíssima, mal conseguia falar. Se tivéssemos a chave do armazém não teria sido preciso tomar aquelas medidas heróicas [heróicas ou ridículas?] e tínhamos começado a medicação mais cedo. Podia ser que assim o menino sobrevivesse. Da forma como ele estava agora, era quase certo que estava condenado!

– Tens razão, mas isto está sempre a acontecer. Antes de o Sr. Sousa ir para Nampula eu pedi-lhe a chave do armazém. Já sabia que isto ia suceder. Mas ele disse que não, que não era preciso, que tinha abastecido os armários com os medicamentos essenciais e que não dava a chave a ninguém!
– Os medicamentos essenciais? Nem adrenalina havia… nem havia manitol!

– Pois, mas o que é que queres? A ti perguntou-te alguma coisa? Se sugerias algum medicamento para ficar à disposição?
– Não, claro. Nem sequer me avisou que ia a Nampula.

– É por isso que a Irmã Sarala está exausta. Ela é indiana e pertence a uma família muito importante na Índia. São ministros, directores de grandes empresas, donos de hospitais… Antes de ir de férias até foi uns dias para a praia para ver se recuperava um pouco a disposição e eles não a verem naquele estado. Qualquer dia a família não a deixa regressar…
– Pois… não admira.

– Mas possivelmente não nos deixou a chave porque ele próprio deve ter roubado muitos medicamentos e foi vendê-los a Nampula.
– Credo! O Sr. Sousa?

– Sim, o Sr. Sousa! Ele até é boa pessoa, trabalhador, interessa-se pelos doentes e é muito nosso amigo. Tem-nos ajudado muito. Mas quando rouba, não rouba só um ou dois comprimidos, é logo aos milhares.
– Mas... E não há ninguém que o denuncie?

– Para quê? Ele é do Partido*, portanto está protegido. Quando muito é transferido para outro lado e metem aqui um pior do que ele. Este ao menos interessa-se pelos doentes e trabalha.
– Nem sei o que diga, Irmã! Mas como é que ele é capaz? Ele está a roubar os irmãos dele! Ele sabe que vai haver gente a morrer por falta de medicação! Pode até ser alguém da família dele.

– Pois, mas é mesmo verdade, para eu estar a dizer isto é porque tenho a certeza.
– Eu sei, Irmã. Mas como é que ele é capaz?

– Ah… e não lhe pesa nada na consciência. Para ele é simples: de onde aqueles medicamentos vêm, hão de vir mais. É uma fonte que não seca. Quando ele voltar de Nampula vai estar na altura da entrega da próxima remessa e ninguém vai dar conta de nada.
– Mas como é que a Irmã consegue dizer que ele é boa pessoa e depois dizer que não lhe pesa na consciência roubar medicamentos que fazem tanta falta?

– É uma questão cultural. Os princípios deste povo não são os mesmos que os nossos. Por muito que nos custe, para eles o que é errado não é apropriar-se de uma coisa que não lhes pertence. O que é errado é que outras pessoas se apercebam disso.
– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".

* "O Partido" refere-se, obviamente à Frelimo.
 
(continua...)

[instantes] no pátio do hospital de iapala...



No pátio do hospital, indiferente a todas as desgraças e dramas vividos, um pequeno leitão alimenta-se pacatamente dos restos do mata-bicho dos doentes...
(Iapala, Nampula)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

[por fim, o erro médico] por b. goldman

E não é que por coincidência hoje foi publicada uma palestra do TED que diz mais ou menos o mesmo que eu disse anteontem?

Obrigada ao nosso, sempre atento, correspondente honoris causa na Dinamarca!

[malária] para grandes males, grandes remédios...



No hospital de Ribáuè...
(Ribáuè, Nampula)

(continuando...)

Apesar de o menino estar claramente em perigo de vida, a família anuiu e pusemo-nos rapidamente a caminho. A Irmã Lurdes no seu pragmatismo habitual de “para grandes males grandes remédios” e eu com a cólera de quem vê uma desgraça prestes a acontecer por causa de incompetências e falta de planeamento.

Mas era quase de noite e tinha chovido, por isso demorámos muito tempo a chegar. Tempo demais… A criança ia quase morta… E claro, não há milagres. No hospital de Ribáuè os medicamentos também estavam no armazém, que já estava fechado. Foi preciso mandar chamar o farmacêutico a casa, o que só fizeram por especial consideração para com a Irmã Lurdes, o anjo da guarda daquele povo. Todas as pessoas das redondezas tinham pelo menos um familiar que já tinha sido ajudado por ela.

Quanto a mim… estava louca! De raiva, de preocupação e insegura por ter arrastado a Irmã Lurdes e a família toda para aquele devaneio. E suspeitava que o motor daquela atitude desesperada não tinha sido a convicção de que o menino ainda podia sobreviver, mas a fúria contra o director do hospital! Não teria sido melhor deixar o menino em paz, ao colo da família, em vez de estar a forçar toda a gente àquele suplício de solavancos, angústias e frustrações?

Começámos a medicação mesmo in extremis. Por fim, perguntei à família se queriam ficar ou voltar connosco para Iapala. Talvez fosse melhor o menino ficar em repouso e não regressar por aquela estrada horrível, onde o carro escorregava como se estivesse a dançar sobre sabão. Mas eles queriam voltar, claro. Nem lhes tinha passado pela cabeça que havia hipótese de ficar em Ribáuè, de outro modo, provavelmente não se teriam sequer metido no carro…

Tinham-se decidido a vir porque estavam desesperados e nós lhes tínhamos dado uma saída, mas o terror de qualquer família macua é que um ente querido morra longe do local onde estão enterrados os antepassados, e esta família não era excepção. Tinham de voltar. Era preciso estar mais perto de casa se uma desgraça acontecesse, sob pena de a família ficar assombrada para sempre pelo espírito do menino.

Voltámos para Iapala já era noite fechada. Com a medicação, o coração tinha voltado a bater mais rápido e o cérebro já não dava tantos sinais de sofrimento, mas o menino continuava em coma. Estava na hora da segunda dose de quinino. Não havia mais nada a fazer senão esperar…

(continua...)

[outras palavras] urologices

"Eugénio de Andrade (...) sofria horrores a escrever. Demorava às vezes um mês para fazer um poema de três ou cinco versos, sobretudo no fim da vida, quando a poesia dele se tornou mais densa. Antes tinha imensa inveja dos poetas. Pensava que aquilo se fazia como quem mija: a gente sentava-se e aquilo saía."

António Lobo Antunes

[o erro em medicina] e tu, o que já fizeste por causa de um?

Há alguns anos atrás, ainda interna do primeiro ano, acabadinha de chegar ao hospital, durante uma urgência caótica de Inverno enganei-me na dose de um antibiótico. Lembro-me bem, era o Floxapen para uma celulite do tornozelo. Coisa simples. A dose não era muito mais elevada que a dose máxima e o antibiótico mais do que inócuo.

O meu problema é que eu só tinha prescrito duas embalagens e com aquela dose o antibiótico não ia dar nem para cinco dias. Com tão pouco tempo de tratamento, a infecção ia piorar a seguir de certeza. E era uma família cigana que me tinha parecido muito desorganizada, numerosa, com pouca capacidade de cuidar das crianças, condições de higiene no limiar do aceitável. Sabe Deus até se lhe iam dar o antibiótico mesmo. [Já aqui tivemos uma história parecida, sim, eu sei. A minha vida, definitivamente, dava um filme cigano...]

Fiquei preocupada. Fui buscar o processo e liguei para o número de telefone que lá estava. Atendeu-me uma mulher muito malcriada que me respondeu que não tinha filhos e que não tinha ido a hospital nenhum e que a antiga dona daquele número devia de certeza dinheiro a muita gente porque estava sempre a receber telefonemas estranhos. E que até já tinha recebido ameaças de morte. E que já estava arrependida de ter comprado aquele número. E que para a próxima ia era a uma agência autorizada e não voltava a comprar telefones na rua!

Desliguei o telefone sem me despedir. ["Mas onde é que eu me fui meter, valha-me Nossa Senhora Cigana?"] Olhei para a morada do menino: Quinta do Mocho. Pois... aquilo prometia! Liguei para a PT e expliquei a situação. Pedi o telefone correspondente à morada. Nada. Não tinha telefone atribuído. Fui ter com o polícia do hospital. Se ele me podia saber se haveria algum telemóvel associado àquela morada. Duas horas depois vinha a resposta: não, não havia telefone nenhum.

E agora, que fazer? Fui ter com a minha chefe de equipa. Eu continuava preocupada. O que é que ela achava que eu podia fazer?

- Mas estás preocupada porque disseste para fazer 8 mL de Floxapen em vez de 5 mL? Estás louca? Não tem problema nenhum!
- Sim, mas assim não vai conseguir terminar o tratamento e o miúdo vai piorar.
- Está bem, pronto. Se estás preocupada, o que podemos fazer é mandar a polícia lá a casa.
- E levar-lhes um recado?
- Não, eles não levam recados. Têm de os trazer e nós falamos com eles.
- Talvez seja melhor, então...

Duas horas depois, sou chamada à triagem. À porta estão dois polícias enormes acompanhando um homem com mau aspecto que mal reconheço, mas sim, era aquele o pai do menino. Ladeado por polícias em posição de alerta o homem ainda tinha mais ar de traficante do que antes... Vejo-lhe a expressão do rosto. Está aterrorizado!

- Boa tarde, fui eu que vi o seu filho há pouco. Tentei ligar-lhe mas não consegui, por isso mandei-o chamar aqui. A dose do antibiótico é 5 mL e não 8 mL.
- Hãn? É só isso?!
- Sim, peço desculpa...
- Está bem, está bem, doutora, não há problema - o homem só faltava pular de alegria... e virando-se para os polícias - então isso quer dizer que me posso ir embora?

[Assim como se dissesse: "Então eu tenho meio quilo de coca na minha casa, entram-me dois polícias por ali adentro, dizem-me para os acompanhar e nem mais uma palavra, metem-me no carro, trazem-me para o hospital e no fim de contas vem uma médica loira dizer-me que afinal tenho de dar 5 mL do xarope ao miúdo e não 8 ou lá o que é?! Esta gente não regula bem!"]

Pronto... A minha história é esta. Alguém quer partilhar mais alguma? O que é que já fizeram por causa de um erro médico?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

[o erro médico] e como lidar com ele



Meus amigos, como já perceberam, tirando um ou outro aspecto prático sobre como saber se é seguro passar por debaixo de um cajueiro, neste mato não se aprende grande coisa. E também raramente se fala de coisas sérias. Mas há dias para tudo... E hoje venho aqui reflectir convosco em atenção a uma amiga que viveu uma situação que a deixou triste e desconfortável:

Há uma verdade terrível inerente ao facto de sermos médicos. Quer sejamos auto-indulgentes ou obsessivo-compulsivos, quer sejamos daqueles que vão sempre verificar tudo o que fizeram ou dos que preferem depois ficar a ruminar sobre isso, quer sejamos daqueles azarados que estão sempre a meter o pé na poça ou dos que tacteiam cada doente... quer sejamos ainda - que os há! - meio-termo, ponderados e sensatos, a verdade é que há uma questão incontornável: todos podemos errar. E já todos errámos. Sem apelo nem agravo. Tanto mais não seja porque os doentes não lêem os tratados de Medicina* e há doenças imprevisíveis.

E depois há o factor cansaço e o facto de trabalharmos mil horas seguidas em horários anti-fisiológicos. [Cada pessoa tem a sua "hora piloto-automático": há as "Cinderelas", que se transformam em abóbora à meia-noite, há "as aves da noite", que acordam depois de o sol se pôr. Há os que estão sempre com sono. Há os que nunca têm sono. Há os que não descansam e ficam "em coma" no dia seguinte. Há os que aproveitam cada minuto livre para se encostar e ao outro dia estão frescos e fofos e continuam a trabalhar. Há os que ficam inseguros e têm mil dúvidas quando estão mais cansados, confiam menos na intuição e no senso clínico e pedem mais exames a essas horas... Mas, enfim, não era de padrões de sono que estávamos a falar... Era do erro médico.]

A questão é que há maneiras diferentes e individuais de lidar com ele, uma vez acontecido. Há quem passe por um período de ansiedade e insegurança mais ou menos conturbado. Isto é frequente e parece-me normal, afinal de contas, quem nunca se sentiu assim? Há quem se tente qualificar posteriormente precisamente na área em que falhou, mas isto parece-me um pouco exagerado...

E também há quem se deprima, ou quem passe a evitar situações de stress no mesmo cenário. A isto é que já não acho graça nenhuma. Também  a considero uma reacção compreensível, mas entristece-me profundamente que aconteça. É terrível! Porque não devemos baixar os braços e porque continuamos a ter as mesmas responsabilidades! Temos de lutar para que a nossa própria maneira de lidar com a situação seja construtiva e edificante. De preferência para todos os envolvidos.

Mas ficar triste e passar a evitar situações de stress é também precisamente aquilo que tem tendência para me acontecer a mim. Tenho alguma dificuldade em confrontar-me, a verdade é essa. Mas também tenho vontade de crescer e tenho a convicção de que tudo se ultrapassa. E, por fim, há quem faça uma reflexão profunda e aprenda.

E há maneiras culturais de lidar com o erro. E práticas institucionais distintas. Há as instituições que aprendem, há as instituições que encobrem os erros e há as que punem os colaboradores.

Lembram-se, em 2009, do caso dramático daquela jovem grávida que faleceu com gripe A em Espanha, e cujo bebé nasceu prematuro por cesariana já depois de a mãe morrer?

Dias depois, com o bebé nos Intensivos Neonatais "a evoluir bem", houve uma enfermeira estagiária que lhe administrou por via endovenosa a alimentação que se pretendia administrar por sonda naso-gástrica. Este erro levou a uma situação gravíssima e o bebé acabou por falecer também, horas depois.

Ora, perante o sucedido, o que fez a instituição? Assumiu a responsabilidade do erro, despediu a enfermeira e pediu desculpas ao pai publicamente. Soube-se, tempos depois, que a enfermeira tinha sido internada num hospital psiquiátrico por tentativa de suicídio. 

Lembro-me que na altura isto foi muito discutido no meu serviço: havia aqui uma oportunidade de aprendizagem de todo o hospital. Uma correcção a fazer ao nível das práticas institucionais. Não era a primeira vez que tal coisa sucedia! Para acontecer um acidente não basta um erro, mas uma sucessão de factores concorrentes. O que deveria ter havido era uma investigação e reflexão sobre as causas do incidente e, por exemplo, adquirir um sistema que futuramente impedisse a adaptação de uma seringa infusora para sonda naso-gástrica a um catéter venoso. Meses depois, infelizmente, sucedeu precisamente o mesmo noutro sector do hospital. Como era de prever! Para mim este continua a ser o paradigma de como não se deve lidar com o erro.

A diferença é que há pessoas e instituições que aprendem e tentam criar esquemas para maior defesa contra os erros. Um erro pode ser uma oportunidade de aprendizagem de toda a organização e de mudança de práticas de risco. Uma oportunidade de crescer. Mesmo que afinal de contas não se tenha tido responsabilidade nenhuma, como foi o caso da minha amiga. Ou mesmo que se tenha sido apenas um mero espectador ou confidente...

Pronto, era só isto. Eu vou voltar para o mato. Se me quiserem acompanhar, são muito bem-vindos!

* Mas deviam, caramba!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

[iapala] malária... a malária é difícil


No pátio do hospital, com o menino a dormir...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Ia voltar para casa mas, já na rua, assaltou-me um pressentimento e tive de dar meia volta. Voltei para a cabeceira do menino. De repente, apesar do cansaço (ou por causa dele, não sei bem…), fiquei insegura. E se ele afinal não estivesse assim tão bem? E se convulsivasse novamente sem ninguém dar conta? E se de repente a malária resolvesse fazer das suas e entrasse em coma? Ele ainda estava a dormir, não tinha sequer aberto os olhos e a febre ainda não tinha cedido completamente… Era melhor ficar por ali.

A malária assusta-me! Cada vez mais… É imprevisível. Nunca consigo ter a certeza de que vai mesmo tudo correr bem. Não tenho análises nem outros exames à disposição, só tenho os meus olhos e a minha intuição, mas esta semana fiquei ainda mais insegura e quase deixei de confiar nela… Foi por causa de uma criança de 15 meses com malária que chegou ao fim da tarde, aqui há uns cinco dias. O menino, quase bebé, vinha completamente inconsciente.

Segundo a mãe, mais uma vez, a doença tinha começado nesse dia e não tinha ido procurar tratamento tradicional. Mas nunca sei se é verdade ou não… e geralmente não é verdade. O problema é que muitas vezes, quando a situação é grave, é difícil perceber se o que se passa com a criança é resultado da doença, do tratamento tradicional ou das duas coisas… E alguns medicamentos que os curandeiros usam são terrivelmente tóxicos! Tudo se encontra na natureza: alcalóides, pesticidas, antibióticos, antiparasitários, medicamentos contra o cancro*...

E o bebé estava ali, em coma profundo e gelado. Não estava desidratado, mas tinha a respiração acelerada das doenças graves. E o coração não estava a bater como devia, estava lento…

– Teve febre hoje, mamã?
– Nada, não teve.
– O corpo ficou quente? – tenho sempre de perguntar a mesma coisa de várias maneiras, que há palavras que as pessoas não conhecem ou não atribuem o mesmo significado.
– Sim, muito quente, só arrefeceu agora.
– E quando é que deixou de estar acordado?
– Há bocado…
– Nada, mamã! A criança está assim há muito tempo! Olhe como está a respirar. Pode dizer, eu não fico zangada… quando começou a doença?
– De manhã, Irmã…
– E teve convulsões?
– Sim. Duas vezes.

Das duas uma, ou tinha malária cerebral ou uma infecção generalizada. Mas o exame neurológico mostrava-me que o cérebro também estava em sofrimento. O mais provável era que fosse malária cerebral. Mas à cautela comecei o tratamento para as duas coisas enquanto esperava o resultado do teste da malária e tentava estabilizar a criança. Mas, ao fim de algumas horas, o menino tinha piorado. A respiração estava mais lenta, o coração também mais lento, continuava em coma. Levantei-lhe novamente as pálpebras: as pupilas estavam diferentes… Estava a acontecer o que eu temia: o cérebro tinha inchado de tal maneira que estava comprimido contra as paredes do crânio. Perguntei ao enfermeiro se havia os medicamentos de que eu precisava.

– Não, Doutora, não tem.
– Mas não tem no hospital todo? Ou estão no armazém?

Ao que o enfermeiro respondia que não sabia, mas que achava que existiam no armazém. O problema é que quem tinha a chave era o Director, que estava em Nampula.
– Mas não há outra chave? – indignei-me.
– Nada, Doutora, ele não deixa a chave com mais ninguém, senão os funcionários roubam tudo.
– Valha-me Deus!

Mandei chamar a Irmã Lurdes… Estava desorientada. Capaz até de arrombar o armazém se me tivessem dado a certeza de que o medicamento existia mesmo por detrás daquela porta!

– Posso ir ao hospital de Ribáuè – ofereceu-se –, é um hospital maior, pode ser que tenham os medicamentos. Se eu pedir dão-mos de certeza, a mim nunca me negaram nada. Eles conhecem-me bem. Sabem que é para salvar uma vida…

Mas provavelmente não havia sequer tempo de ir ao hospital de Ribáuè pedir a medicação e voltar. Só se o levássemos connosco e ele fizesse a medicação lá.

– Isso é mais complicado… A família não deve querer, eles sabem que a situação é grave**.
– Temos de os convencer! Mamã, percebeu o que estamos a dizer? – perguntei.
– Não, Irmã.

(continua...)

* Aliás, o nome deste blogue vem precisamente de uma situação em que inesperadamente descobri que do beijo-de-mulata de extrai um medicamento contra o cancro...
** Já em tempos vos expliquei isto... para os Macuas, se alguém morrer longe de casa, o seu espírito nunca vai encontrar o caminho de volta e permanece para sempre retido "do lado de cá", assombrando e trazendo desgraças os vivos.

[the right to complain!] dior



- No, sir, it's not a calf pain. It's MY CALF! Both, actually. And whoever Mr. Christian may be, I want to have a word with him!

(Peep-toe sandals, humpf... This would never happen in a marriage in Zambezia.)

[porque a vida é todos os dias] boa semana!


Pilando mapira [milho selvagem] para a refeição da família...
(Iapala, Nampula)

domingo, 22 de janeiro de 2012

[vozes brancas* #59] temos tanto em comum...

Há tempos, na sala de espera da consulta. Joana, uma menina de 3 anos, com um vestido cor-de-rosa e lacinho na cabeça a condizer, acabada de entrar com os pais, a tossir como se tivesse um motim dentro do peito e os pulmões a tentar escapar por entre as barras da prisão costo-condral, numa algazarra que se ouvia a três metros de distância. Mas claro, bem-dispostíssima. Tudo muito bem tolerado. Nada daquela doença era com ela!

Pedro, também com 3 anos, igualmente com tosse, colega de escolinha da Joana, brinca com camiões e tractores num canto da sala de espera. Ambos, nas palavras das respectivas mães nesse dia ao telefone, tinham "uma tosse cavernosa". Confirmo a tosse em primeira mão. É, de facto, "cavernosa".

Eu à porta da sala, para ir buscar o Pedro [costumo ir buscá-los pessoalmente à sala de espera, que a forma como estão a brincar, como resistem a vir e como os pais finalmente os convencem a ir para a consulta faz parte da própria consulta e da observação]. Assisto ao encontro dos pimpolhos-da-tosse-cavernosa: ambos doentes, ambos eléctricos, ambos desafiadores e com vontade de fazer os pais passar vergonhas! Reconhecem-se. A Joana aproxima-se efusivamente. Pedro não lhe liga grande coisa. Cumprimento os pais, que me agradecem por os receber nesse dia e, nesse compasso de espera, os meninos já estão abraçados, aos beijos, com a Joana a dizer, com a voz mais melosa que se pode ter aos 3 anos:

- Pedro, eu também tenho tosse, queres ser meu namorado?

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

sábado, 21 de janeiro de 2012

[uma noite, em iapala] os meandros da malária...


Mamã com menino...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Já no hospital, em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo a perder à espera de análises laboratoriais. Nem o Sr. Cachimo, o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora...

Dizem-me que a doença começou hoje e que não foram ao curandeiro. Neste caso resolvi acreditar porque a doença parece ter começado agora mesmo. A malária cerebral costuma ter um início violento e provavelmente vieram ao hospital porque era de noite e não iam acordar o curandeiro àquela hora. [Sim, que curandeiro é criatura imponderável, poderosa, com contactos privilegiados com os mortos e legitimidade para influir no destino dos vivos. Quem, no seu perfeito juízo, se arriscaria a ir perturbar o sono de semelhante autoridade?] Por isso achei que era razoavelmente seguro dar-lhe o dobro da dose de quinino na primeira toma, como está preconizado na malária grave. Quase nunca o faço porque sei que os curandeiros usam precisamente o quinino para tratar a malária [o quinino extrai-se da casca de uma árvore] e duvido que consigam controlar as doses que preparam. E, portanto, se eu administrar uma dose mais “generosa” isso pode levar a uma intoxicação fatal! Ou seja, mais uma vez se confirmaria a crença do povo de que o “hospital é sítio para morrer”, onde apenas se deve ir em último caso…

Mas já descobri um truque para perceber se tomaram esses medicamentos ou não, desde que não venham inconscientes: o quinino provoca uma surdez transitória, portanto tudo quanto tenho de fazer é perguntar aos pais se a criança costuma ouvir bem e depois, de repente, bater palmas com muita força para ver se a criança se assusta. Se não se assustar nem olhar é porque tomou quinino e tenho de ter cuidado com a dose que lhe dou...

O menino está sonolento por causa da medicação que eu lhe dei, mas o exame neurológico não está muito alterado. Este caso também há de correr bem! Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente...

Só depois de termos a veia canalizada e o tratamento a correr é que arranjamos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e temos de o acomodar no corredor... E então na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no parrô, um abrigo amplo, com telhado mas sem parede completa até ao tecto, cheio de correntes de ar e onde a chuva entra livremente… Nem quero imaginar o que é este hospital durante os surtos de cólera…

Demoro-me um pouco a escrever no processo e só quando saio do gabinete me apercebo de que um homem ainda jovem chora baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino.

– O senhor é o pai?
– Não, esse menino é meu sobrinho.
Talvez compreenda Português, pensei.
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que nós lhe demos para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para Macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino ficasse bem. Parou de chorar.

– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o menino...

(continua...)

[sabes que és workaholic quando...]

Hoje perguntaram-me, para uma entrevista sobre a minha actividade de voluntariado em Moçambique, se cheguei a aprender a falar os dialectos das províncias onde trabalhei. Respondi que sim, o suficiente para me orientar minimamente no hospital. Felizmente tive sempre quem me ensinasse. É quase impossível trabalhar sem saber nada do dialecto local porque quase ninguém fala Português fora das grandes cidades.

Era uma entrevista para uma revista para jovens, portanto pediram-me que lhes dissesse quais tinham sido as primeiras palavras em cada um dos dialectos. Pensei um pouco... Pensei mais. Por fim lá me recordei:

- Em Changana, que é o dialecto de Maputo, foi Xikoxola*.
- Que quer dizer?
- "Tosse com expectoração."

[Desiludido] - Ah... E em Nampula, qual é o dialecto?
- Macua. E a primeira palavra foi: Mwikhusoleke!
- E o que quer dizer isso?
- "Faça força!"
- Faça força?
- Sim, no primeiro dia tive de ir para a maternidade porque houve muitas complicações de partos...

[Ainda mais desiludido] - Ah... e na Zambézia?
- Em Lomué foi uma frase inteira: Mwana ola olavula pama?
- Credo! E isso é o quê?
- "O seu filho fala bem?"
- Pronto, deixe lá estar... Como é que se diz "bom dia" em Lomué, por exemplo?

* Eu não sei escrever changana, isto é uma transcrição macarrónica.

[flash mob sant joan de déu] foi assim há um mês!



Flash mob no Hospital Pediátrico de Sant Joan de Déu
(Barcelona, Catalunha)


Quem alinha, meus amigos? Vamos fazer isto no Carnaval?

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

[as melhores do serviço de urgência] histórias curtas

Serviço de Urgência de um Hospital de Lisboa. Apinhado. Beijo-de-mulata ainda caçula [acho até que nem médica ainda]. Senhor de 65 anos com doença neurodegenerativa.

- Há quanto tempo é que o senhor tem falta de memória?
- Ai, menina, não me lembro...

[tão bom, mas tão bom] ...que podia ter sido escrito por mim



Parking? Yes, we can!

Eu não sou muito dada a esta coisa de ser auto-encomiástica ... Portanto, já preceberam não já? Vai sair asneira... Mas é que não resisto a roubar este texto daqui.
Há cinco meses que os meus pais me emprestam o carro para vir trabalhar. Se bem que aquilo não é bem um carro. É mais um comboio que outra coisa qualquer. O tamanho do bicho, aliado à minha parca habilidade de condução, tornam as minhas viagens memoráveis. Vai tudo a eito. Aliás... acho que a única parte do veículo que não tem um único risco é o tejadilho. Tenho de sair todos os dias dez minutos de casa mais cedo, já a contar com o tempo que vou demorar a estacioná-lo. Não consigo perceber onde acaba e onde começa. Chego-me para trás devagarinho... devagarinho... devagarinho... e quanto sinto que bati (docilmente, entenda-se) no pára-choques do carro de trás, considero o carro como estacionado.
Conduzir aquilo é como vestir um blusão de penas muito volumoso e perder a noção do espaço que ocupamos. (...)
Anouc in Não Percebi a Pergunta

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

[acordar em iapala] uma noite mal dormida...




Iapala de manhã...
(Iapala, Nampula)

É manhã novamente. Arrefeceu muito durante a noite e, na cama morna, minutos antes da hora de levantar, o já meu conhecido linguajar pluvial dos coqueiros recria uma ilusão outonal, calma e reconfortante, de chuva branda num Sábado de manhã. Recompensa justa por uma noite sobressaltada. Uma chamada urgente do hospital a meio da noite por causa de um menino de oito anos que chegou em crise convulsiva com malária cerebral, trazido pela família já em desespero.


Apesar de o hospital ser mesmo em frente à casa das Irmãs, o medo que as pessoas têm dos cães que guardam a Missão teria decididamente impedido que me fossem chamar durante a noite. Mas a Irmã Lurdes, sempre criativa para ultrapassar estas pequenas dificuldades, lá desencantou um sistema simplesmente hilariante para contornar o pânico que os africanos têm dos cães sem pôr em causa a nossa segurança: dois apitos de árbitro de futebol, adquiridos em Portugal no Estádio do Benfica pendiam no hospital pregados à parede, prontos para qualquer eventualidade.

E esta noite tinha sido acordada pelo silvo impaciente do "Glorioso" expulsando-me da cama com cartão vermelho. Vesti-me rapidamente, um pouco às apalpadelas e saí para a rua de lanterna em punho, que apesar do luar é preciso ver bem onde se pisa, não fosse aparecer alguma cobra perdida no jardim...

[Aqui de nada serve a valentia dos que dizem não ter medo de animais rastejantes: ingenuidade! Não temos soro antiveneno no hospital – não existe em toda a província – e nem quero imaginar como é que faria a mim própria o desbridamento de uma ferida sem qualquer anestesia. Mas, vá, vamos à história, que deixámos o menino a convulsivar à porta do hospital, com a família a dizer, como habitualmente, que o menino está possuído pelos antepassados. O que vale é que enquanto vos falava de cobras lhe administrei um medicamento e a convulsão lá cedeu...]

(continua)

[outras palavras] olhar para dentro...

Recordo-me de um jantar em Lisboa em que se armou uma enorme barafunda. Estávamos em casa de uma figura pública portuguesa que lamentou, com aparente sinceridade, aquilo que chamou de «corrupção endógena» dos africanos. Na mesa houve vozes que protestaram: porquê apenas dos africanos? A conversa azedou e rapidamente derrapou para contornos raciais. Um português, nervoso, tomou a defesa dos africanos e enfrentou a tal figura pública nos seguintes termos: Quer Vossa Excelência dizer que, por cá, não temos corrupção?

... Seguiram-se acusações graves que fizeram adiar o propósito do encontro que era provar aquilo que havia sido apresentado como uma refeição inesquecível. Coube-me atirar água sobre a fervura. Mas era bálsamo tardio. Já havia mágoas irreparáveis. Um jantar é sempre mais do que uma simples refeição.

Anos mais tarde um dos mais animados participantes do malogrado jantar, de visita a Moçambique, mostrou-me um artigo de capa de uma revista lisboeta. O título era claro: uma certa excelência parecia não escapar das acusações de corrupção que sobre ele há muito pesavam. Reconhece quem é este?

Reconheci. Era a mesma pessoa que se lamentava da corrupção em África. O visitante português sacudiu a revista sobre a cabeça como prova de antiga razão. E eu sorri.

Na verdade, um dos maiores desafios dos africanos é fazerem-se respeitar como pessoas individuais e como entidades coletivas. Um passado (será que passou?) de preconceitos assumidos e declarados deu lugar a uma envergonhada arrogância («nós», dizem os europeus, não somos como «eles»). Ontem era a História que apenas tinha residência fora da África. Hoje, quem mora fora é a Ética.
Mia Couto in Revista África21

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

[uma história simples] ou curta, vá...

Ele casou-se duas vezes e foi infeliz em ambas. Da primeira vez a mulher fugiu de casa. Da segunda vez, não.

Millor Fernandes

[momentos] um dia hei-de mergulhar na foz do zambeze


Um dia... desta água beberei*!
(Foz do rio Zambeze, Moçambique)

* Fervida e filtrada, obviamente, por quem me tomam? Ou então, se for acometida de loucura (já estive mais longe), mergulho nestas águas e tomo praziquantel e albendazol a seguir! Ou acham que é melhor tomar antes? Aceitam-se sugestões...

Adenda (em atenção ao nosso sócio correspondente nº1): Meus caros amigos, não tentem fazer isto em casa. Não se deve mergulhar num rio infestado de crocodilos, cobras, bilharziose e cólera, mesmo que a paisagem seja avassaladora, as águas mornas e transparentes e a companhia convidar a loucuras... Melhor assim, Mr. 1B?

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

[sns we can] ou...

Há tempos ia escrever novamente este pequeno slogan panfletário: SNS we can! Oh yes, we can! E depois pensei: shit, this is sooo 2009! E portanto não escrevi nada...

[a riqueza de moçambique] crescer!


- Irmã, meu minino já está crescido!
Imagens da festa de "finalistas" da escolinha das Irmãs, frequentada pelos meninos mais pobres do bairro e que têm padrinhos em Portugal. (Os meus afilhados ainda não completaram a pré-primária...) O último dia na escolinha foi o dia em que vestiram, orgulhosos, pela primeira vez, o uniforme azul para a escola primária que começa agora. Um bom ano para todos!
(Bairro de Muahivire, Nampula)

[moçambique] been there, got the t-shirt



Moçambique no seu melhor!
Como diria Mr. umBhalane, o sócio correspondente nº 1 deste mato: este é um vídeo que se destina a todos os que já "beberam água do Zambeze" ou, pelo menos, a todos os que não dizem que dessa água não beberão...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

[as melhores do serviço de urgência] sem prescrição médica

Esta história também não é minha, é do meu colega R., médico de família...

Serviço de Urgência, num fim de tarde de Inverno, frio e cinzento. Um adolescente de 16 anos, com o ar de quem está a apanhar uma seca monumental elevada à quinta potência entra na consulta acompanhado pela mãe, que lhe vem, obviamente a pregar um sermão.

O rapaz repete, pela nonagésima vez, à porta da consulta que está tudo bem, que não era preciso terem vindo, enquanto funga, coça os olhos, pigarreia e masca a pastilha elástica de mentol para disfarçar o cheiro a tabaco. A mãe a achar que a ida ao médico se calhar tinha sido escusada, mas já que conseguiu trazer o filho a reboque, não vai perder uma oportunidade de perguntar a mais um médico se não o acha magro e pálido... É que às vezes parece tão enfiadinho...

- Mas isso é em casa porque me aborreço de não fazer nada!
- Está bem, mas andas doente vezes demais! Sabe, doutor, também ninguém lhe consegue vestir um casaco. Ele deve achar que t-shirts são agasalho de Inverno.
- Ihh, não é nada...
[Furiosa] - Sim, vá, se estiverem 5ºC vestes duas t-shirts.
[Triunfante e sorridente] - Pois!

E o meu colega:
- Então, Miguel, o que é que se passa contigo?
- Estou com dores de garganta e tive febre ontem.
- Estás a tomar alguma coisa?
- Sim, doutor - responde a mãe -, ontem fui à farmácia e o doutor receitou-lhe "cocaína forte*" para a garganta. Mas eu fico preocupada de lhe estar a dar uma coisa tão forte e ele ainda estar a piorar...



* Mebocaína Forte, como está bem de ver.

[outras palavras] o may be man e a corrupção

Mia Couto e a corrupção no poder em Moçambique. Impagável!
"Existe o Yes man. Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar. O May be man vive do “talvez”. Em português, dever-se-ia chamar de “talvezeiro”. Devia tomar decisões. Não toma. Sim­plesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um “talvez” não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniên­cia. (...) E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se “comissão”. Há quem lhe chame de “luvas”. Os mais pequenos chamam-lhe de “gasosa”. Vivemos uma na­ção muito gaseificada. Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be man, tomar conta dos negócios. De “business”, como convém hoje, dizer.

Curiosamente, o “talvezeiro” é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enqua­dra-se no combate contra a pobreza. Mas a corrupção, em Moçambique, tem uma dificuldade: o corrup­tor não sabe exactamente a quem subornar. Devia haver um manual, com organograma orientador. Ou como se diz em workshopês: os guidelines. Para evitar que o suborno seja improdutivo. Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opi­nião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

O May be man entendeu mal a máxima cristã de “amar o próximo”. Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao portu­guês, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o “próximo”. É por isso que, para a lógica do “talvezeiro” é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recen­te: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrup­to: em nome da lei, assalta o cidadão. (...)

Podem no­meá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. O May be man é utilíssimo no "país do talvez" e na "economia do faz-de-conta". Para um país a sério não serve!"
Mia Couto in O May be Man, citado daqui.

domingo, 15 de janeiro de 2012

[instantes] no hospital de iapala


O pátio do Hospital de Iapala
(Iapala, Nampula)

São poucos os doentes que permanecem nas camas depois de acordar – só ficam os que de todo não se conseguem pôr de pé – e, para os observar temos sempre de os ir procurar ao pátio. Sempre o mesmo alvoroço hilariante todas as manhãs. Nunca antes me tinha passado pela cabeça uma situação destas: ir para o hospital trabalhar e ter de ir à procura dos doentes para os observar...

E nunca estão todos no pátio! Uns foram ao rio lavar a roupa ou tomar banho, outros foram ao mercado, outros foram a casa se moravam perto, outros foram à missa das 07:00, enfim... estão presentes à hora da medicação e depois fazem uma vida o mais normal possível, porque muitas vezes não têm quem lhes dê banho, lave a roupa, providencie lençóis lavados ou cozinhe para eles. Mas, fiel ao meu lema de em Moçambique não sejas romano, lá íamos trabalhando com as condições que tínhamos... 

Só algum tempo depois de lá estar é que perdi a paciência e consegui instituir a regra de que, desse lá por onde desse, às 07:00 tinham de estar nas camas para serem observados. Depois podiam ir às suas vidas, que hospital não é prisão. Mas havia limites para a indisciplina, caramba!

sábado, 14 de janeiro de 2012

[comentários que valem um post] mr. umbhalane cantou por aqui

O Sr. umBhalane, o xirico mais melodioso da blogosfera, deixou-me um comentário delicioso no post aqui abaixo. E sim, não bebi água do rio Zambeze (ainda) porque nunca lá estive, mas um dia dessa água beberei! [Fervida e filtrada, claro!]
"Que bom. Não conhecendo o Sr. Pompisk, mas sendo ele motivo para escritos destes, só pode ser boa gente, gente Zambeziana, não desmerecendo os de Inhambane, e outras terras. Só que a Zambézia tem aquele gostinho especial, e efeitos demolidores. Entranha-se!
Quem a viu, e quem a vê, caramba! Já bebeu "água do Zambeze", de certeza. Ah, e essa doença - pode ficar com o seu canudo - que, digo-lhe já, é incurável. Que Nossa Senhora de Mulevala, e a alma comerciante do Sr. Pompisk se coliguem e, já agora, que os camponeses possam dar uma ajudinha. Bom espírito. E que também a "Macangueira" não esqueça de mandar remédios, só para ajudar!"
A "Macangueira" era eu... Obrigada, Mr. 1B!

[boas novas] o diário da zambézia


Nossa Senhora de Mulevala
(Mulevala, Zambézia)

Alvíssaras, meus amigos, já temos novas do Gilé, directas para Portugal! São 06:00 em Moçambique, menos duas horas em Portugal continental e parece que o Sr. Pompisk amanheceu melhor, graças aos medicamentos que seguiram daqui na semana passada, a Deus Nosso Senhor e a Santa Maria de Mulevala, a Santa geograficamente mais próxima do Gilé, que por uma questão de comodidade - e de brio regionalista! - resolvemos adoptar como padroeira desta cura.

Já vos falei de Nossa Senhora de Mulevala (a propósito desta história), mas, para quem não conhece, é assim uma espécie de Nossa Senhora de Fátima, mas que apareceu em Mulevala, a cerca de 200 km do Gilé, a um grupo de camponeses e não a três pastorinhos. Convenhamos que na Zambézia não há assim muita pecuária e portanto, para aparecer a pastorinhos, Nossa Senhora teria de ir para Cabo Delgado, ou para a Tanzânia e lá ficávamos nós sem padroeira. Em vez de um manto azul vinha vestida com uma túnica branca e envolta num manto verde, não tinha segredos [pelo menos, se os tinha, das duas uma, ou não os contou, ou ainda ninguém se descaiu] e, tanto quanto sei, ainda não há meninas na região chamadas Maria de Mulevala. Mas temos pena...

O Sr. Pompisk costuma dizer que não é crente mas, nas suas próprias palavras, à cautela vai fazendo muitas obras de caridade aqui e ali, porque assim sempre ajuda os vivos e pode ser que Deus, se existir, se lembre dele quando chegar o dia e a hora! Felizmente parece que o dia e a hora não são hoje... É uma alma de comerciante, sem apelo nem agravo! E genuína e boa...

Aliás, esta alma de comerciante também está patente em canções populares no nosso país: quem não sabe cantar o Natal de Elvas, "Eu hei-de dar ao Menino/ uma fitinha para o chapéu/ e Ele também me há-de dar/ um lugarzinho no céu!" O Sr. Pompisk pelo menos faz coisas que se vejam, enfermarias para o hospital, por exemplo, que vieram substituir um telheiro vergonhoso, sob o qual ficavam internadas crianças com doenças gravíssimas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

[serviço público beijo-de-mulata] cozinha zambeziana

Meus queridos amigos, este é mais um post que merecia o título de "alhos-e-blogalhos-valha-nos-santo-antónio-do-google", mas uma vez que o assunto é pertinente, aproveitei para fazer serviço público. Isto para ver se continuam a dizer que por aqui no mato até se aprende alguma coisa, que foi um reparo que me deixou particularmente bem-disposta...

Ora então houve uma senhora (só podia ser uma senhora, vá, não vamos complicar) que aportou aqui, colocando a seguinte pergunta ao Dr. Google: "O leite de coco tem gordura?"

Não sabendo a resposta com 100% de certeza, fui investigar! E, meus amigos, mais uma vez se confirma a razão de ser da minha paixão pela Zambézia... A Zambézia é uma província mágica, com tradições milenares, mitos e lendas de origens e alvoradas, montanhas envoltas em mistério, paisagens de cortar a respiração, mulheres lindas e crianças com o sorriso mais bonito do mundo, com dias intensos, anoiteceres em que o horizonte nos enche o peito de emoções que só aquela claridade consegue despertar, com praias, areais e palmares a perder de vista e, supreendentemente, com uma cozinha deliciosamente light! Com um pouco de paciência basta clicar ali na coluna da direita, onde se lê Zambézia, para confirmar tudo isto...

Na Zambézia, a comida tempera-se com coco fresco, o que lhe dá um paladar exótico, fresco e delicioso! O nosso cozinheiro subia ao coqueiro, se fosse necessário, para ir buscar os cocos mais frescos, porque não haver coco para cozinhar era assim, mal comparado, como não haver azeite ou sal na nossa cozinha...

Ora, então, calculem que o leite de coco, para além de delicioso, tem apenas 5% de gordura e, claro, gordura vegetal, garantidamente isenta de colesterol, esse diabo assassino (não é bem assim, mas também isto é apenas um blogue, não é um tratado de Medicina)...

O leite de coco é extremamente estável a altas temperaturas e portanto não origina as formas trans dos ácidos gordos, prejudiciais às nossas pequenas coronárias. Para vos dar um termo de comparação, as natas, tão utilizadas na cozinha do norte da Europa, têm 85% de matéria gorda e o leite de coco consegue muitas vezes substituí-las com vantagem!

Como diria a Rita Maria, "vá lá a gente não amar uma cozinha assim"... Amanhã vou preparar uma galinha à Zambeziana!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

[welcome to mozambique] flash mob iapala


Flash mob dos Black Eyed Peas
(Chicago, EUA, 2009)

Na primeira tarde em Iapala, uma das Irmãs veio chamar-me depois de almoço:
- Venha tomar café aqui na varanda, que as meninas querem conhecê-la.

Saí para a varanda que dava para o pátio, onde sessenta meninas já me esperavam, todas juntas e com um sorriso. Acenei-lhes, embora me sentisse ridícula no papel de Rainha de Inglaterra a acenar aos súbditos. Lutei contra o embaraço e cumprimentei-as, apresentei-me, disse quem era e ao que vinha. Elas continuavam em silêncio. Até que lhes perguntei: “E vocês, não se querem apresentar?”

Duas ou três começaram então, casualmente, a entoar uma música simples mas lindíssima, cantada em macua, que queria dizer apenas “Bem-vinda, você é linda, queremos conhecê-la.”, à segunda ou terceira repetição comecei a ouvir, algures, no meio delas, o som de tambores, que descobri depois que eram três enormes batuques que estavam estrategicamente escondidos onde eu não os podia ver. Do centro daquele aglomerado, uma menina deu dois passos à frente e começou a dançar, numa dança lenta e despretensiosa, quase sem sair do lugar… depois passaram a ser duas, depois cinco, numa dança mais rápida e mais elaborada.

De repente, sem que se percebesse qualquer sinal, as outras organizaram-se em filas e começaram a acompanhar a música com palmas e juntaram-se ao cântico, entoando a mesma música a várias vozes, nem sabia dizer quantas. Afinadíssimas, aquelas vozes quase brancas… Por fim, cada uma a seu tempo, todas entraram no espectáculo e cantavam e dançavam, entre alarido, palmas e gargalhadas, num crescendo vertiginoso, cheio de vida e entusiasmo. Elas queriam surpreender-me e mostrar-me do que eram capazes… Dançavam uma dança cada vez mais elaborada, sempre igual, mas reinventada até à exaustão que não me deixava despegar os olhos, sem querer perder cada pormenor, enquanto, duas a duas, subiam as escadas e me vinham cumprimentar pessoalmente.

Aquela encantadora dança de boas-vindas demorou quase meia hora e deixou-me completamente rendida… Estávamos em 2004. Nunca tinha visto um flash mob antes. Não conhecia o conceito. Nem elas, obviamente. Nunca tinha assistido a um espectáculo assim, tão simples, tão surpreendente e arrebatador… e de propósito para mim! Senti que iam ser dias extraordinários ali...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

[hoje há...] silêncio

Pela Guiné-Bissau... Rezemos/ pensemos/ façamos/ tentemos torcer pela paz.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

[alhos e blogalhos] valha-nos santo antónio do google

Meus queridos amigos, eu bem sei que vos disse aqui há atrasado que ia deixar de vos interromper com as pesquisas improváveis dos senhores que têm a bússola cibernética avariada* e vêm naufragar aqui ao mato. Às vezes, para cúmulo do azar, até se perdem por cá e nunca mais voltam a ser avistados noutros portos, o que é uma pena. Sobretudo para os outros portos, que nós aqui não discriminamos ninguém e estamos sempre satisfeitos com quem cá temos, graças a Deus...

Mas como eu ia dizendo, eu cheguei a prometer-vos que não voltava a falar de improbabilidades destas, mas pelo menos uma vez por ano tem de ser, minha gente. Por acaso não têm muita piada [senão claro que vos interrompia mais vezes], geralmente são os já enfadonhos "mulatas nuas" e "mulatas selvagens", mas enfim, quem dá o que tem...

- [Ler com o sotaque de quem tem um palito ao canto da boca] Histórias de gajas que deram à luz num autocarro - Enfim, propriamente num autocarro não temos, meu senhor, mas se não se importar que tenha sido na estação de serviço onde o autocarro foi abastecer, até se arranja qualquer coisa. E com alguma sorte ainda leva uma bifana e uma mine.

- Caricatura da cabeça de uma águia com uma frase bíblica por baixo - Não é aqui!!! Nós não temos cá disso, lagarto, lagarto, lagarto! Onde é que viu isso escrito?

- Pode-se baptizar uma criança com água quente? - [Resposta com fala afectada] Ora, minha amiga [não sei ao certo se era mulher, mas vá, é cá um feeling], ainda bem que pergunta isso! Eu por acaso até sei a resposta, a menina é que nunca tinha perguntado... A resposta é sim, a água quente também pode ser litúrgica. E asseguro-lhe que, quando o sol batia nas águas do rio Jordão no pino do meio-dia, aquelas correntes deviam ser um jacuzzi autêntico!

- Imagens do balneário de alvalade - Temos pena, mas isto é um blogue sério.

- Os banhos para atrair mulheres funcionam mesmo? - Bem, meus senhores... por acaso estudos científicos com grau de evidência A também não temos. Mas temos uma teoria sobre isso...

Gostaria, por fim, de atribuir uma menção honrosa ao cibernauta que cá veio aportar à procura de um "anão com prótese dentária e navalha de barba na mão".

A todos estes senhores, que conseguiram cá chegar com estas coordenadas, os meus parabéns!

* Ou então andam a ser vítimas do meu Santo Antoninho do google. Ele um bocado folgazão, como todos bem sabemos. É santo mas não é anjinho nenhum, se bem que me compreendem, e gosta de mangar com o povo.

[improbabilidades] que linda que é a língua portuguesa...

Não resisto a partilhar convosco esta pérola de sabedoria, inspirada no Ciberdúvidas, que ontem o nosso correspondente honoris causa na Dinamarca* partilhou com os seus amigos e que me deixou tão bem disposta...

Ora ficam os meus amigos também a saber, já que o saber não ocupa lugar e coisa-mai-linda-não-há-neste-mundo-e-no-outro-não-sei-se-há, que: "Segundo o Dicionário de Verbos Portugueses da Porto Editora, «o verbo ensimesmar-se deverá ser conjugado com dupla flexão pronominal reflexa» [conheciam isto da dupla flexão pronominal reflexa?]. O presente do indicativo: emmimmesmo-me, entimesmas-te, ensimesma-se, ennosmesmamo-nos, envosmesmais-vos, ensimesmam-se. O particípio passado: ensimesmado."

Como todos os particípios passados, este pode transformar-se em adjectivo: "Ele há gente muito ensimesmadinha, credo..." Agora, seguindo a mesma lógica da flexão verbal, não sei se este adjectivo não varia conforme quem qualifica: "Estavam elas a um canto muito ensimesmadas e nós a outro, também ennosmesmados, mas menos..." Gostaram?

* Sim, o mesmo senhor que certo dia me fez rir às gargalhadas porque conseguiu vir ter aqui ao mato através da seguinte busca no google: "Pode-se ir ter ao beijo-de-mulata sem ser pesquisando por mulatas nuas ou mulatas selvagens!" Não me lembro se tinha ponto de exclamação. Acho que não, mas pronto, esse fica por conta da casa, que eu hoje estou uma mãos largas!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

[maçonaria] ...e tráfico de sorrisos.

A propósito do post ali abaixo ocorre-me dizer que somos assim uma espécie de Maçonaria. Mas em bom.

[um abraço ao sr. pompisk] força!

Vá, Sr. Pompisk, muita força! Aguente-se que os seus medicamentos devem estar a chegar a qualquer momento... Partiram daqui na sexta-feira, na mala de um missionário [com a ajuda da minha amiga M., que sabe sempre quem vai e quem chega], que os entregou à chegada a Maputo às Irmãs da Apresentação, que o entregaram a uma voluntária, que partia para Nampula no dia seguinte, no voo da manhã. As Irmãs de São João Baptista, minhas amigas, foram a casa dela buscar os medicamentos e entregaram-nos ao Sr. Abdul, capataz da empresa que está a fazer as obras de reparação do reservatório municipal do Gilé, que foi a casa delas esta manhã. Partiu ainda hoje para o Gilé e comprometeu-se a levar-lhe os seus medicamentos assim que chegasse.

Não consigo deixar de sorrir com esta cadeia de transportes... Isto é uma autêntica máfia! Tráfico de influências e de sorrisos, comandado pela minha amiga M.... A quantidade de pessoas que eu já conheci por causa de medicamentos não tem conta, mesmo não fazendo a mais pálida ideia de quem era e onde vivia o destinatário. Quando há boa vontade, tudo funciona, não é verdade? Ainda há duas semanas conseguimos mais uma proeza em tempo record para um doente com diabetes.

É bom fazer parte disto... As melhoras, Sr. Pompisk! Um abraço.

[notícias de nampula] quando falta água num hospital...

(...) A rotina das famílias [de Nampula] conheceu nos últimos tempos uma mudança forçada, estando dependentes o início das suas actividades diárias da hora em que começa a jorrar água nos fontanários públicos, onde se tornou comum ver longas filas de pessoas, sobretudo mulheres e crianças, com vários tipos de recipientes às mãos, aguardando a sua vez que não se sabe quando chega para obter o precioso líquido.

Num contacto com o administrador do Hospital Central de Nampula, a maior unidade sanitária da região norte, soubemos que a restrição do abastecimento de água à urbe afecta fortemente a gestão do hospital.

Todo o hospital, com cerca de 400 camas, necessita de grandes quantidades de água para atender às suas necessidades e os sectores da maternidade, enfermarias e morgue consomem quantidades que não se podem estimar, até porque a procura depende do movimento e do nível de internamento e óbitos.

A limpeza duma casa que recebe diariamente cerca de dez mil utentes, sobretudo acompanhantes e doentes para consultas externas, afigura-se complexa, sendo a água o principal motor dessa actividade.

“Na lavandaria, colocámos um reservatório elevado para garantir que a lavagem de roupas não fique afectada e, na morgue, disponibilizámos baldes de reservas de água para responder à lavagem dos corpos. Não obstante, algumas famílias trazem consigo galões de água para o mesmo fim, o que achamos positivo porque revela sensibilidade em relação à crise que todos enfrentamos”, acrescentou Maurício Afai. (...)

O resto da notícia aqui.