(continuando...)
Fomos jantar. Eu estava perturbadíssima, mal conseguia falar. Se tivéssemos a chave do armazém não teria sido preciso tomar aquelas medidas heróicas [heróicas ou ridículas?] e tínhamos começado a medicação mais cedo. Podia ser que assim o menino sobrevivesse. Da forma como ele estava agora, era quase certo que estava condenado!
– Tens razão, mas isto está sempre a acontecer. Antes de o Sr. Sousa ir para Nampula eu pedi-lhe a chave do armazém. Já sabia que isto ia suceder. Mas ele disse que não, que não era preciso, que tinha abastecido os armários com os medicamentos essenciais e que não dava a chave a ninguém!
– Os medicamentos essenciais? Nem adrenalina havia… nem havia manitol!
– Pois, mas o que é que queres? A ti perguntou-te alguma coisa? Se sugerias algum medicamento para ficar à disposição?
– Não, claro. Nem sequer me avisou que ia a Nampula.
– É por isso que a Irmã Sarala está exausta. Ela é indiana e pertence a uma família muito importante na Índia. São ministros, directores de grandes empresas, donos de hospitais… Antes de ir de férias até foi uns dias para a praia para ver se recuperava um pouco a disposição e eles não a verem naquele estado. Qualquer dia a família não a deixa regressar…
– Pois… não admira.
– Mas possivelmente não nos deixou a chave porque ele próprio deve ter roubado muitos medicamentos e foi vendê-los a Nampula.
– Credo! O Sr. Sousa?
– Sim, o Sr. Sousa! Ele até é boa pessoa, trabalhador, interessa-se pelos doentes e é muito nosso amigo. Tem-nos ajudado muito. Mas quando rouba, não rouba só um ou dois comprimidos, é logo aos milhares.
– Mas... E não há ninguém que o denuncie?
– Para quê? Ele é do Partido*, portanto está protegido. Quando muito é transferido para outro lado e metem aqui um pior do que ele. Este ao menos interessa-se pelos doentes e trabalha.
– Nem sei o que diga, Irmã! Mas como é que ele é capaz? Ele está a roubar os irmãos dele! Ele sabe que vai haver gente a morrer por falta de medicação! Pode até ser alguém da família dele.
– Pois, mas é mesmo verdade, para eu estar a dizer isto é porque tenho a certeza.
– Eu sei, Irmã. Mas como é que ele é capaz?
– Ah… e não lhe pesa nada na consciência. Para ele é simples: de onde aqueles medicamentos vêm, hão de vir mais. É uma fonte que não seca. Quando ele voltar de Nampula vai estar na altura da entrega da próxima remessa e ninguém vai dar conta de nada.
– Mas como é que a Irmã consegue dizer que ele é boa pessoa e depois dizer que não lhe pesa na consciência roubar medicamentos que fazem tanta falta?
– É uma questão cultural. Os princípios deste povo não são os mesmos que os nossos. Por muito que nos custe, para eles o que é errado não é apropriar-se de uma coisa que não lhes pertence. O que é errado é que outras pessoas se apercebam disso.
– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".
* "O Partido" refere-se, obviamente à Frelimo.
(continua...)
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