sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

[educação estética] e a "cabeça grande"

(continuando...)

– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".

– Exactamente! É isso mesmo. É verdade isto que te digo.

– Mas não é assim tão simples. Se ele é mesmo boa pessoa como a Irmã diz que é, não acredito que não lhe pese na consciência se depois vir que a medicação fez falta a alguém e houve gente a morrer por causa disso! Mesmo que ninguém descubra. Aí qualquer pessoa se apercebe de que fez mal.
– Pois… aí entra-se numa dissonância.

– E então, aí não percebe que agiu mal? Ou há mesmo um aniquilamento total da consciência nesta cultura?
– Não, não há. Eu acho até que é por isso que este povo tem tantas neuroses, tantas depressões, tantos problemas psicológicos.

– Como?
– Sim. Quando alguém se apercebe do mal que fez mas mais ninguém se deu conta, a pessoa sofre. E é um sofrimento igual ao de uma depressão ou de uma perda importante. Até há uma doença que se chama “muru tokotokho”, que quer dizer “cabeça grande”.

– Cabeça grande?
– Sim, é uma doença muito difícil de tratar. Muita gente nesta terra sofre disso. Não só por terem roubado, mas também por terem lançado feitiços a outra pessoa, ou terem prejudicado alguém, ou feito um aborto, ou quando morre alguém e se sentem culpados por isso, mesmo sem terem culpa nenhuma.

– Em Português isso chama-se remorsos. Ou escrúpulos!
– Pois, mas não é só isso. Eles não têm como reparar o erro. Não podem contar a ninguém e também não podem ir ter com a pessoa a quem fizeram mal e confessar e pedir desculpa. Ninguém pode saber, porque isso sim é que desonra a família e os antepassados! E portanto ficam num beco sem saída. É por isso que é tão difícil de tratar.

– Irmã, que disparate!
– É assim que o povo pensa.

– Pronto, está bem… Realmente assim não deve ser fácil. Quando não se pode falar fica-se muito sozinho, de facto. E se for alguma coisa importante não se consegue deixar de pensar nisso. Por acaso até é uma metáfora bem apanhada: “cabeça grande”!
– Pois, quando alguma das nossas meninas começa a andar cabisbaixa, triste, sem conseguir comer e a queixar-se de dores de cabeça eu já sei que é o “muru tokotokho”.

– E não tem cura?
– Tradicionalmente tem. É preciso ir ao curandeiro e fazer uma cerimónia muito complexa, que envolve a família toda. É preciso ir à caça de uma gazela, remover-lhe o fígado, prepará-lo e dá-lo a comer ao doente de uma forma especial.

– Mas isso não resolve nada!
– Às vezes ajuda, sobretudo quando a pessoa se sente culpada mas não teve culpa nenhuma. O pensamento mágico aqui também está muito enraizado. As pessoas pensam, por exemplo que, por desejarem mal a alguém, podem mesmo fazer-lhe mal.

– Sinceramente, não compreendo!
– Não compreendes o quê?

– Não compreendo então como é que comer as vísceras de uma gazela faz com que a pessoa se sinta melhor!
– Ora, no fundo, junta-se a família toda numa festa onde se come gazela e se dança e se canta. Aproveita-se e matam-se saudades, tem-se mimo, conversa-se com quem já não se via há muito tempo… As pessoas ficam confortadas…

– Mas isso não resolve o problema de fundo.
– Pois, por isso é que se diz que “quem não apanha sorte” não fica curado. É preciso “apanhar sorte”. Mesmo que a cerimónia seja bem feita e corra bem.

(continua...)

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