terça-feira, 24 de janeiro de 2012

[o erro médico] e como lidar com ele



Meus amigos, como já perceberam, tirando um ou outro aspecto prático sobre como saber se é seguro passar por debaixo de um cajueiro, neste mato não se aprende grande coisa. E também raramente se fala de coisas sérias. Mas há dias para tudo... E hoje venho aqui reflectir convosco em atenção a uma amiga que viveu uma situação que a deixou triste e desconfortável:

Há uma verdade terrível inerente ao facto de sermos médicos. Quer sejamos auto-indulgentes ou obsessivo-compulsivos, quer sejamos daqueles que vão sempre verificar tudo o que fizeram ou dos que preferem depois ficar a ruminar sobre isso, quer sejamos daqueles azarados que estão sempre a meter o pé na poça ou dos que tacteiam cada doente... quer sejamos ainda - que os há! - meio-termo, ponderados e sensatos, a verdade é que há uma questão incontornável: todos podemos errar. E já todos errámos. Sem apelo nem agravo. Tanto mais não seja porque os doentes não lêem os tratados de Medicina* e há doenças imprevisíveis.

E depois há o factor cansaço e o facto de trabalharmos mil horas seguidas em horários anti-fisiológicos. [Cada pessoa tem a sua "hora piloto-automático": há as "Cinderelas", que se transformam em abóbora à meia-noite, há "as aves da noite", que acordam depois de o sol se pôr. Há os que estão sempre com sono. Há os que nunca têm sono. Há os que não descansam e ficam "em coma" no dia seguinte. Há os que aproveitam cada minuto livre para se encostar e ao outro dia estão frescos e fofos e continuam a trabalhar. Há os que ficam inseguros e têm mil dúvidas quando estão mais cansados, confiam menos na intuição e no senso clínico e pedem mais exames a essas horas... Mas, enfim, não era de padrões de sono que estávamos a falar... Era do erro médico.]

A questão é que há maneiras diferentes e individuais de lidar com ele, uma vez acontecido. Há quem passe por um período de ansiedade e insegurança mais ou menos conturbado. Isto é frequente e parece-me normal, afinal de contas, quem nunca se sentiu assim? Há quem se tente qualificar posteriormente precisamente na área em que falhou, mas isto parece-me um pouco exagerado...

E também há quem se deprima, ou quem passe a evitar situações de stress no mesmo cenário. A isto é que já não acho graça nenhuma. Também  a considero uma reacção compreensível, mas entristece-me profundamente que aconteça. É terrível! Porque não devemos baixar os braços e porque continuamos a ter as mesmas responsabilidades! Temos de lutar para que a nossa própria maneira de lidar com a situação seja construtiva e edificante. De preferência para todos os envolvidos.

Mas ficar triste e passar a evitar situações de stress é também precisamente aquilo que tem tendência para me acontecer a mim. Tenho alguma dificuldade em confrontar-me, a verdade é essa. Mas também tenho vontade de crescer e tenho a convicção de que tudo se ultrapassa. E, por fim, há quem faça uma reflexão profunda e aprenda.

E há maneiras culturais de lidar com o erro. E práticas institucionais distintas. Há as instituições que aprendem, há as instituições que encobrem os erros e há as que punem os colaboradores.

Lembram-se, em 2009, do caso dramático daquela jovem grávida que faleceu com gripe A em Espanha, e cujo bebé nasceu prematuro por cesariana já depois de a mãe morrer?

Dias depois, com o bebé nos Intensivos Neonatais "a evoluir bem", houve uma enfermeira estagiária que lhe administrou por via endovenosa a alimentação que se pretendia administrar por sonda naso-gástrica. Este erro levou a uma situação gravíssima e o bebé acabou por falecer também, horas depois.

Ora, perante o sucedido, o que fez a instituição? Assumiu a responsabilidade do erro, despediu a enfermeira e pediu desculpas ao pai publicamente. Soube-se, tempos depois, que a enfermeira tinha sido internada num hospital psiquiátrico por tentativa de suicídio. 

Lembro-me que na altura isto foi muito discutido no meu serviço: havia aqui uma oportunidade de aprendizagem de todo o hospital. Uma correcção a fazer ao nível das práticas institucionais. Não era a primeira vez que tal coisa sucedia! Para acontecer um acidente não basta um erro, mas uma sucessão de factores concorrentes. O que deveria ter havido era uma investigação e reflexão sobre as causas do incidente e, por exemplo, adquirir um sistema que futuramente impedisse a adaptação de uma seringa infusora para sonda naso-gástrica a um catéter venoso. Meses depois, infelizmente, sucedeu precisamente o mesmo noutro sector do hospital. Como era de prever! Para mim este continua a ser o paradigma de como não se deve lidar com o erro.

A diferença é que há pessoas e instituições que aprendem e tentam criar esquemas para maior defesa contra os erros. Um erro pode ser uma oportunidade de aprendizagem de toda a organização e de mudança de práticas de risco. Uma oportunidade de crescer. Mesmo que afinal de contas não se tenha tido responsabilidade nenhuma, como foi o caso da minha amiga. Ou mesmo que se tenha sido apenas um mero espectador ou confidente...

Pronto, era só isto. Eu vou voltar para o mato. Se me quiserem acompanhar, são muito bem-vindos!

* Mas deviam, caramba!

2 comentários:

  1. E todos nós nos benzemos e arrepiamos.
    Nenhum de nós está livre...

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  2. Sim, ninguém está livre... Infelizmente...

    (um) beijo de mulata

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