quinta-feira, 24 de junho de 2010

[há festa em murralelo]




(continuando...)
Num instante chegámos a Murralelo e fomos muitíssimo bem recebidas pelo Padre Filomeno, um missionário mexicano divertidíssimo e por um casal italiano de meia-idade, benfeitores da Missão, que o acompanhavam no mato há três dias e não esperavam que conseguíssemos chegar até ali naquele dia.
– Não vos esperávamos... Mas eu já devia ter adivinhado... Como conseguiram vir?
– Alguma vez eu iria perder a Primeira Comunhão dos meus meninos?, a Irmã Lurdes fingindo-se ofendida... Tinha sido ela a principal impulsionadora desta celebração.

Durante a viagem de comboio tínhamos aproveitado para nos conhecermos e a Irmã tinha-me falado da importância desta festa, com um significado muito particular na História recente de Moçambique. Durante a guerra civil a instabilidade era tanta e as estradas tão perigosas, que não era possível os padres deslocarem-se para fazer qualquer celebração. Nem mesmo os funerais tradicionais ou os rituais de iniciação, tão importantes na cultura macua, eram cumpridos. Nos anos da guerra ninguém construiu casas, ninguém cultivou os campos, ninguém dormia uma semana seguida no mesmo local... Só depois de a guerra civil ter terminado é que foi possível reconstruir as estradas, e a paz recente foi terreno fértil para reavivar a fé, que ainda assim nunca tinha abandonado as pessoas. De facto, em todos os locais de Moçambique por que passei, os Missionários contavam o mesmo quadro: as pessoas durante a guerra, depois de anos seguidos sem alimentação regular, sem um tecto, sem um livro, sem uma bíblia, sem uma igreja, sem um padre, continuavam a juntar-se todos os dias para rezarem em conjunto pela paz. Em 1993, a conciliação entre os dois partidos, Frelimo e Renamo, tinha chegado finalmente. E agora era chegada a altura da Primeira Comunhão dos primeiros bebés que tinham sido baptizados depois da guerra!

A alegria das pessoas era evidente, expressa na forma como se vestiam, como tinham ornamentado a igreja com flores do campo, como tinham construído um enorme telheiro para celebrar a missa no exterior, uma vez que a afluência seria tal que a multidão não caberia na igreja, na forma como ainda ensaiavam uma última vez as várias danças e os cânticos, para que nada corresse mal. “Temos uma Paz que já deu frutos!”, era uma ideia que se ouvia um pouco por todo o lado. Tocante, sem dúvida e que privilégio, assistir a um acontecimento destes!

Os dois italianos, Martine e Roberto, estavam também muito felizes, mas visivelmente cansados, sobretudo ela, que me confessou que não tinha conseguido repousar quase nada durante a última noite. Tinham dormido numa palhota numa esteira colocada directamente no chão, ao contrário dos dias anteriores, em que tinham dormido também em palhotas, mas numa espécie de camas de campanha feitas com capim e bambu. Todos os ruídos que ouvira durante a noite lhe tinham feito lembrar ratos ou animais rastejantes. Talvez estivesse sugestionada pelo facto de ter sabido que um animador paroquial tinha sido mordido por um escorpião na noite anterior, admitiu, mas durante a noite é sempre mais difícil combater os fantasmas... e agora estava a morrer por um café...

Lembrei-me do café torrado que tinha comprado no comboio e perguntei à Irmã Lurdes se haveria maneira de fazer café. Talvez houvesse, sim... Depois das primeiras apresentações às pessoas mais importantes da comunidade, a Irmã Lurdes foi ter com uma mamã, que pilava milho à porta de casa e perguntou-lhe se podia pilar o nosso café e prepará-lo, ao que ela anuiu com um sorriso, agradada por poder satisfazer um pedido da Irmã, que lhe salvara o filho durante a epidemia de cólera do ano anterior. De uma penada despejou o milho de dentro do pilão para uma capulana, arrumou-a dentro de casa e começou a pilar os grãos de café, que exalavam um aroma delicioso àquela hora do início da tarde. Em poucos segundos juntou-se uma multidão de crianças curiosas à nossa volta, divertidas pelo nosso ar interessado numa cena tão banal do dia-a-dia.

Um riso geral quando eu e a Martine tentámos um pouco desajeitadamente pegar no pilão, imitando os gestos da mamã. Depois de moer o café colocou-o sobre a peneira e separou as impurezas, o grãos mais finos, que serviriam para utilizar agora na preparação do café, e os mais grossos, que seriam moídos mais tarde, para não perderem o aroma.

De súbito, o chamamento para a celebração interrompe o processo de preparação do café. Volto-me, incrédula, para a origem do som que me parece ser de um sino, para descobrir que se trata de uma jante de um pneu de um jeep, pendurada num tronco de árvore, que o animador paroquial toca solenemente como se fosse um gongo. Está na hora da missa!

(continua...)

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