domingo, 20 de junho de 2010

[inspiração para uma despedida] double bind

Por alturas da Páscoa retirei este post do blog a pedido de uma amiga. Na altura as palavras dela tocaram-me: "O teu beijo-de-mulata fez-me lembrar um outro beijo, que faz agora 2010 anos..." Mas eu hoje estou azeda, com uma neura digna de Sexta-Feira Santa e, passados já vários meses, a relevância perdeu-se e já tudo se resolveu, fica apenas o exercício de estilo...

Meu querido,

Ambos sabemos que a nossa relação terminou, que não há mesmo volta a dar, mas gostava de te ajudar a cumprir o que me disseste na despedida - que provavelmente vais acabar sozinho! Assim, estive a estudar cuidadosamente o assunto e o que te sugiro é que arranjes uma perturbação de personalidade. Mais propriamente uma Personalidade Evitante, que é a única que te assegurará, sem qualquer limitação, uma carreira florescente de solteiro inve(r)te(b)rado.

Assim, tens de começar a evitar encontrar-te com outras pessoas. Nem é bem começar, é mais continuar, porque no fundo, no fundo, tu tens um enorme potencial para seres bem sucedido nesta carreira de evitante e já tens um CV de fazer crescer água na boca a qualquer Psiquiatra... É só continuar! Esquece todos os amigos que tiveste na infância, lembra-te só das angústias da adolescência, daqueles tempos de férias em que encontravas pessoas novas e ficavas bloqueado. Lembra-te que eras aquele com quem ninguém queria sair, com quem ninguém queria conversar (se calhar racionalizavas e dizias para ti próprio que não te interessava sair, nem te interessava socializar, mas eu sei que isso te angustiava). Foi aí que aprendeste a defender-te e a ficar cada vez mais inepto socialmente. Descobriste que se não aprendesses o nome das pessoas nem soubesses nada sobre elas te angustiavas menos. Não foi consciente, eu sei, mas mas esse hábito de esquecer nomes e informações sobre as pessoas acabou por ficar (isso é óptimo nesta carreira!). Como é que eu sei o que se passava nas férias? Elementar, meu caro. Eu não sei, mas adivinho... Afinal de contas "conheço-te como ninguém"!

Tu preocupas-te com pequenos acidentes, pequenos deslizes que podes cometer na presença de outros, o que merece toda a minha compreensão. Afinal de contas estar com outras pessoas é uma coisa muito complicada. Essa preocupação já é meio caminho andado, mas ainda não chega... Tens de te mentalizar que a relação com os outros nos dá os maiores prazeres, mas também as maiores dores! Aí se joga o domínio e a submissão. (Sim, domínio e submissão! Nada de veres as relações interpessoais como reguláveis, com decisões e papéis flexíveis ou negociáveis. Nas relações há um dominante e um dominado, não há outra maneira de funcionar, estamos entendidos? E tu não suportas ser dominado. Pelo menos por muito tempo. E também não tens interesse em ser dominante porque ser dominante é de uma irrelevância atroz. Entendido? Mesmo? Então adiante.)

E para evitar, de todo, a agruras do pânico e do embaraço, tens de seguir a carreira de fóbico social. Não contactes com outros, prepara-te para ter uma vida isolada, se possível dentro da tua família nuclear e contactos próximos. Podes dar-te com a filha que acidentalmente tiveste, mas só enquanto ela for pequena e gostar de ti incondicionalmente. Ela adora-te e admira-te (até porque está na idade do complexo de Édipo e de acreditar em Príncipes e Princesas), aproveita agora! Mas quando chegar à idade de colocar tudo em causa, dá de frosques o mais rápido possível: ela vai confrontar-te e tu não suportas isso! Mentaliza-te desde já.

Claro que não vais desaparecer da vida dela. Tu é bem formado e nunca farias isso, mas vais estar cada vez menos presente, cada vez menos disponível. Desde já algumas sugestões: vai buscá-la menos vezes, desculpando-te com trabalho e que não tens quem fique com ela e lhe dê apoio no estudo e nos trabalhos de casa. Quando tiveres mesmo de a levar de férias (só uma semana, ou assim, não te preocupes), leva também as amigas dela para que possam desaparecer para dentro dos quartos na brincadeira ou aos segredinhos (as meninas adoram segredinhos e tu não vais querer interferir e ser desmancha-prazeres, pois não?)... Acima de tudo não queiras saber mais nada sobre o que pensa ou sente. (Algo te dirá que está magoada contigo por teres desaparecido da vida dela, mas fizeste-o de forma tão subtil que nem ela própria vai conseguir verbalizar isso. E enquanto ela não to disser literalmente vais conseguir viver e acreditar que até és um pai razoável...)

Entretanto evita as palavras, pelo menos as faladas. Podes escrever poesia para a gaveta, isso seria o ideal. Mas como não tens muito jeito para essas coisas da poesia, das rimas e das sílabas métricas (e sabes bem como sou exigente com as sílabas métricas...) podes usar os telemóveis e a internet com uma gama muito maior de possibilidades. Em todo o caso fala o mínimo possível, escreve o mínimo possível. O silêncio pode perturbar as pessoas que gostam de ti e que haveriam de querer estabelecer uma relação mais profunda contigo, mas também cria uma aura de mistério que te pode favorecer à primeira vista. Isso permite-te evitar a exposição, pelo menos durante algum tempo. Quando perceberem que não vão nunca conseguir ir mais além na profundidade da relação vão ficar frustradas (ou, se não intuirem nada do que te atormenta, vão ficar zangadas), mas paciência. A relação já estava condenada à partida e tu sempre o soubeste...

Se quiseres conquistar alguém (não te aconselho, aliás, proibo-te!) habitua-te a não o fazer directamente, mas sim de forma indirecta: oferece presentes, cozinha, pinta, compõe música, o que conseguires e te dispuseres a fazer na altura. Ao menos uma boa notícia: podes continuar a pintar. Podes até não fazer mais nada e levar isso como profissão, desde que não sejas nenhum fura-vidas, nem te atrevas a tentar ser famoso e expôr em grandes galerias. Ser guia em museus e galerias de arte é a profissão ideal para ti e deves continuar. Assim não te expões e evitas a angústia que tanto te incapacita.

E também podes continuar a ser professor, mas só professor individual. Aulas de um contra um são certamente mais confortáveis e protegem-te de aprender o jogo de cintura necessário para funcionar como líder de grupo. Aliás, nunca funciones em grupo, quanto mais como líder. Quando muito podes pertencer a grupos restritos, com um tempo já longo de existência e relativamente estáveis em termos de elementos, de preferência com datas previamente marcadas para encontros ou que sejam marcadas assim como carneirada. Sim, porque marcar encontros dá muito trabalho e é muito angustiante. E assim como assim, se os outros te tivessem de convidar nunca se lembrariam de ti. Afinal de contas eles também percebem que os evitas...

Habitua-te a pensar que o mundo é impossível e que sobretudo as pessoas são perigosas (também tens o direito a ter as tuas paranóias). Nunca arrisques e desconfia das oportunidades que te aparecem. Vigia bem os outros e fica atento ao menor sinal de crítica, a fim de que possas cortar imediatamente com eles. Nunca aceites um relacionamento, mesmo profissional, sem que tenhas a certeza de ser aceite incondicionalmente. E desconfia, porque há sempre pessoas que gostam de apoiar a desgraça e tu não gostas de abébias. Nem queres abébias de ninguém, ora essa.

No dia a dia e na rua aproveita para contar as pedras do chão, não levantes a cabeça nem olhes as pessoas nos olhos, já que os óculos escuros não são o teu cup of tea. E veste-te como um maltrapilho. Não é para provocar ninguém, obviamente, nem mesmo o teu pai, que não aprova a forma como te vestes. É só para vestires a pele do desgraçado que te propões ser...

Assim podes perceber porque é que te proíbo de te envolveres com mais alguém. É que se estiveres realmente envolvido, quando surgirem críticas (por mais ténues que sejam, ainda que não sejam bem críticas, ainda que seja só uma desconfiança tua de que a pessoa não gostou de alguma coisa que fizeste) não vais conseguir lidar com isso: bem vês que assim não vais poder cortar facilmente com ela e vais ficar num beco sem saída. É que as críticas te angustiam e sabes bem como é quando ficas angustiado... Aliás, só tu sabes nessa altura que ficas angustiado e estás a fazer coisas que não queres, porque a outra pessoa só vê que gritas, dizes coisas terríveis e levas tudo à frente! Mas depois nunca peças desculpa, pelo menos com o coração. Afinal de contas foi ela que te provocou essa angústia de morte...

Se quiseres continuar tranquilo nesta carreira tens de seguir escrupulosamente estes conselhos e, sobretudo, nunca te arrisques a outros vôos. Verás que consegues ficar cada vez mais sozinho e cada vez com menos jeito para estar com os outros. Mas paciência, é como tu sempre dizes, antes só que mal acompanhado!

Até sempre (mas passa de longe).

Variações de Luís Pio de Abreu in Como Tornar-se Doente Mental

5 comentários:

  1. Esquecendo por um segundo o substrato, q já tive o privilégio de comentar em particular, e focando-me apenas na intro...
    "...neura digna de sexta-feira santa...": percebo *perfeitamente* a imagem, mas pergunto... n é isso uma heresia assim digna de atirar com uma moça cristã e amiga do seu amigo direitinha para o Inferno antes de ela poder sequer dizer "seiscentos e sessenta e seis"? ;) Soa-me ao tipo de coisa q eu diria, q sou um ateu convicto... Mas eu já vou *tão* parar ao Inferno anyway q nem ligo.

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  2. lol

    Mas Sexta-feira Santa deixa-me sempre com a neura. É inevitável. Não vejo a blasfémia. Uma ligeira enxaqueca, uma discreta náusea, a sensação de que algo de irreparável poderá ter acontecido, a perda de alguém importante (que por acaso reapareceu no Sábado de Aleluia, mas não tinha a certeza que isso iria acontecer...)

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  3. Não tinha a certeza? Como não tinha a certeza?! Mágico q é mágico tem a certeza dessas coisas, ora! Isso equivale a dizer q o David Copperfield n tinha a certeza de conseguir fazer reaparecer o Boeing 747 ou q o David Blaine n tinha a certeza de se aguentar 3 meses dentro do cubo de gelo...

    Enfim... é por causa de disparates destes q depois se vingam e me lixam a vida. Toma lá q é para n teres a mania q és engraçado! :p

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  4. Às vezes basta deixar que o Tempo Pascal se abata sobre nós para lermos as coisas de uma nova perspectiva! Pena que não seja sempre...
    Beijos beatos da disparatada que se lembrou de associar a mulata ao Judas.

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  5. Bem, em cada linha há uma verdade!
    Hmm... provavelmente várias verdades!

    É mesmo um post levado da breca!
    E não é que há mesmo coincidências?!

    Esperemos que o doente tome/cumpra o que a Dra. prescreveu.

    Importa-se que receite o mesmo a outro doente?

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