– Para a semana temos de ir a uma aldeia aqui perto. Nessa altura podemos fazer um desvio e vir também a esta. Vou só descer para os avisar que levamos um doente grave mas que voltamos para a semana, decidiu a Irmã.
Quando a Irmã Lurdes sobe novamente para o carro traz uma má notícia. O menino acabou de ter nova convulsão e desta vez ainda não recuperou a consciência. Só me apetece chorar... Subitamente vêm-me à memória as aulas de Infecciologia… Como pude ser tão auto-confiante e insistir para que o menino viesse? Aquela melhoria aparente pode não ter sido por termos tratado uma possível hipoglicémia, podem ter sido as típicas "melhoras da morte" da malária cerebral! Por que fui eu dar falsas esperanças e deslocar uma família tão pobre? Para os deixar com uma dor ainda maior? Olho novamente para trás. O menino acordou de novo. Parece que não aguento mais tanta angústia... Dão-lhe mais água com açúcar e mais uma vez parece melhorar... A Irmã parece ler os meus maus pensamentos:
– Estamos a fazer o que podemos, já não seria o primeiro doente a morrer-nos no caminho. Mas Nossa Senhora há-de nos ajudar, vamos rezar por ele.
A Martine também me tenta confortar:
– Não podemos fazer mais do que aquilo que estamos a fazer.
Parece que as palavras delas me acalmam um pouco... Não sei quantas vezes mais o menino convulsiva até chegarmos ao hospital, com ele completamente inconsciente há mais de 15 minutos. Já levo a medicação programada e as contas todas feitas. Enquanto os enfermeiros lhe colocam uma via de acesso venoso, ajudo os outros doentes a descer do carro. Um dos meninos está a tremer de frio... (Arrefeceu durante o fim da tarde). Tento abraçá-lo para o aquecer, mas tem medo de mim. Claramente nunca viu uma mulher branca. Entrego o meu casaco de malha à mãe para vestir o menino, mas tenho de correr para dentro para preparar a medicação, "Meu Deus, não me falhes, se conseguimos chegar até aqui com ele vivo, não é justo que ele nos morra agora, lutou tanto..." A febre volta a subir, mas desta vez foi mais fácil arrefecê-lo e, uma hora depois, já está novamente fresco.
– Vá lá, acorda, ainda tens tanto para viver!
O quinino vai correndo gota a gota, lentamente para dentro da veia. Ainda faltam três horas para terminar a primeira dose. Quase ao fim das quatro horas abre os olhos e, pela primeira vez, volta a falar. Pergunta onde está, que lugar é aquele. O exame neurológico não mostra alterações. Contra todas as expectativas, está vencida a batalha, felizmente! Ao menos valeu a pena tanto sofrimento… Nimutthapele Muluku!
Já me posso preocupar com os outros doentes. A grávida está bem, mas é o décimo filho e ainda não há qualquer sinal do trabalho de parto. Vão ser uns dias longos por aqui... A menina do abcesso dentário e celulite da face vai começar o antibiótico e o menino desnutrido está ao colo do cozinheiro do hospital, o Sr. Manuel, que já lhe começou a preparar as soluções de recuperação nutricional, feitas segundo os preceitos da Organização Mundial de Saúde, com um toque da alta cozinha Iapalense, “uns pozinhos do Sr. Manuel”, como o próprio faz questão de dizer.
Foi um dia rápido! Rápido demais, talvez, para digerir tudo quanto vi... Ontem não podia mesmo imaginar que viria a ter mesmo um curso relâmpago de inculturação no primeiro dia. Só espero terminar a minha estadia compreendendo um pouco melhor este povo. A Irmã Lurdes move-se no meio deles como peixe na água, tenho isso a meu favor, pelo menos...
Estou completamente arrepiada, através das tuas palavras imagino rostos e aflições...
ResponderEliminarQue bom que te têm aí para olhar por eles, para os socorrer, para de, alguma forma, os mimar e confortar.
Não preciso ler muitos mais posts para me aperceber que és uma mulher de grande (enorme) valor intríseco.
Um bem-haja para ti!
Bjinhosss