segunda-feira, 14 de junho de 2010

[as melhores do serviço de urgência] memórias do hospital do rego

Se eu poderia ter nascido na Cova da Moura? Poder podia, mas provavelmente não teria sobrevivido... Esta foi a triste conclusão a que cheguei certa noite no Hospital do Rego (o primeiro hospital onde trabalhei e de que guardo memórias fantásticas). Foi no Curry que percebi que o Criador não me tinha dotado de inteligência prática suficiente para me desenrascar em situações potencialmente catastróficas para a minha integridade física, pelo que foi bem a tempo que nunca me ofereci para andar no INEM a ir buscar baleados à Musgueira ou à Cova da Moura...

No meu primeiro banco de cirurgia fiquei logo sozinha a tomar conta do balcão. Foi uma noite calmíssima à excepção de uma senhora com tromboflebite que mediquei adequadamente e, nada mais havendo a fazer, pedi ao jovem enfermeiro que estava com a senhora para me manter informada de qualquer alteração e voltei para o meu gabinete. O problema é que o jovem enfermeiro que estava com a senhora era mesmo jovem e levou a noite inteira a acordar-me de meia em meia hora para me dizer:
- Doutora, o estado da doente é sobreponível.

Só suportei aquela tortura sem lhe dar dois berros porque pensei que estava a ser "praxada" e não valia a pena rebelar-me... Mas não, era mesmo um verde excesso de zelo e de juventude, que foi devidamente cerceado no dia seguinte pelo enfermeiro-chefe...

Mas não era a história da minha primeira noite na Cirurgia do Curry que vinha aqui contar-vos. Hoje venho contar-vos a história da minha segunda noite de banco de Cirurgia:

Ora, estava eu muito calmamente, sem nada para fazer, no meu gabinete a passar pelas brasas, quando a médica da triagem me veio bater à porta dizendo que o CODU tinha ligado a informar que ia transportar um baleado para o nosso hospital. Tudo bem, respondi, ele que viesse. Que me avisasse quando ele chegasse, se fizesse o favor. E voltei descansadamente para a minha cadeira: "Se fosse grave levavam-no obviamente para o São José...", era a minha convicção.

De facto, vinte minutos depois chegou "o baleado", um homem na casa dos trinta, a coxear bastante mas ainda assim a andar pelo seu próprio pé. Ofereci-lhe uma cadeira de rodas para o levar para a sala de tratamentos, mas ele recusou liminarmente de forma bastante agressiva. Que podia andar perfeitamente, que não era nada a primeira vez que levava um tiro, que sabia muito bem desenrascar-se sozinho e que só tinha vindo para o hospital porque a polícia estava no local quando o INEM tinha chegado. E que assim que saísse dali ia "procurar o gajo que lhe tinha dado o tiro e desfazê-lo à pancada!"

Na ingenuidade dos meus vinte e tal anos interpretei esta afirmação como fanfarronice de alguém que acabou de sofrer uma situação de stress e não liguei nada. Respondi qualquer coisa paternalista como: "Não faça isso, então. A lei está do seu lado e a justiça existe para não termos de fazer esse tipo de coisas com as próprias mãos." Ao que ele respondeu simplesmente que não gostava da polícia, que deixasse a polícia fora disso, que já tinha estado preso oito anos porque tinha morto um gajo e que só por isso não lhe ia enfiar mais um tiro nos cornos (sic). Isto tudo dito com uma calma gélida.

E foi assim que, ainda a caminho da sala de tratamentos, fiquei a saber que estava prestes a ter de tratar sozinha um psicopata assassino. Pior, um psicopata assassino furioso por ter acabado de levar um tiro no tornozelo.

E então que faço eu, meus amigos? Vou chamar o segurança para ficar à porta da sala de tratamentos para me defender do que desse e viesse? Não, que o senhor tinha acabado de dizer que não gostava de polícias e eu não fazia a menor ideia de como é que ele poderia reagir. Vou chamar um enfermeiro alto e espadaúdo sob o pretexto de que precisava da ajuda dele para suturar a ferida? Não, que toda a equipa de enfermagem estava ocupadíssima com duas reanimações que tinham acabado de chegar. E imaginem só a vergonha de ir chamar um enfermeiro para me ajudar a dar um pontinho num tornozelo...

Então passei directamente ao plano D (desenrasca-te). Respirei fundo. Também não podia correr assim tão mal, que diabo. Se lá estava a polícia, de certeza que tinha sido revistado e portanto não podia estar armado. Lá fiz das tripas coração e disse-lhe:

- O Senhor vai despir-se da cintura para baixo, deitar-se e cobrir-se com este lençol que eu já venho.

E foi assim que tratei calmamente de um psicopata assassino, que não tugiu nem mugiu durante o procedimento. Qual foi o fundamento científico da minha atitude, perguntam vocês. É muito simples, meus amigos, se eu tivesse de fugir a qualquer momento, ele sem calças nunca viria atrás de mim! Ora aprendam que eu não duro sempre. Se não os podes vencer pela força podes sempre vencê-los pelo ridículo.

Nota: Não tentem fazer o mesmo, que se fosse hoje também não o teria feito, valha-me Santa Rita de Cássia, que de cada vez que penso nisto até me arrepio...

4 comentários:

  1. Muito bom!
    (essa e os pensos higiénicos ali em baixo...eu quando era adolescente também usei o período como desculpa algumas vezes face a professores homens...eles sentiam por mim a vergonha que achavam que eu sentia e nunca perguntavam nada) (ok, duas vezes)

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  2. Muito bom, Patrícia. Relembro as histórias da minha Mãe, médica nas urgências de S.José, sem polícia à vista - estávamos nos anos 80...-, a suturar 2 ciganos na mesma sala - agressor e agredido - enquanto estes lançavam ameaças sobre o que fariam assim que saíssem do hospital. Mas tal como no teu caso, a minha Mãe também diz que nunca teve problemas no momento. Até ganhou alguns guarda-costas por essa Lisboa, que eles nunca esqueciam a miúda-médica que os tratava...

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