Vistas do Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)
(continuando...)
Reconheceram-se ainda assim. O perfume dos
cabelos de Gigi era ainda o perfume delicado do céu e das flores do frangipani.
E a barba de Trovão guardava o cheiro a terra molhada e a raiz de
embondeiro. Reconheceram-se e amaram-se, como se tinham amado desde sempre. Mas
a criação divina estava ainda no seu início, e os métodos de gerar vida
eram ainda mais que imperfeitos. Os olhos de Gigi a cada dia transbordavam de
um mar maior, e os olhos quentes de Trovão iam arrefecendo o desejo de
criar filhos com olhos de céu e cabelos de embondeiro.
Procuraram em vão quem
lhes revelasse os segredos dos antepassados, mas gerar vida está só nas mãos de
Muluku, era a resposta invariável.
Foi então que decidiram aventurar-se a tornar a
subir o Monte Namúli. Mas o monte onde outrora corriam felizes
e despreocupados era agora o grande tabu da criação. Dizia-se que nenhum
adulto deveria subir ao monte de onde viera o primeiro homem, sob pena de
sucumbir ao mais pérfido desejo telúrico. Mas já só isso lhes fazia
sentido, para desfazer a tristeza e a maldição em que viviam. Não temiam nunca
mais encontrar o caminho de volta porque já só tinham um caminho. E era um caminho só de ida… Tinham
de ir devolver ao embondeiro as raízes que secavam o ventre de Gigi.
E, numa
madrugada, ainda cobertos de bruma e cinza, prostraram-se pedindo a Muluku
que os protegesse e perdoasse na subida. O peito pulava-lhes na ânsia do
interdito, num misto de medo e desejo, quando iniciaram a viagem... Mas a
montanha parecia chamá-los. Os espinhos encolhiam à sua passagem, as bagas
amadureciam, plenas de néctares açucarados e as folhas pareciam
cantar: "Não temam, pois tudo recomeça." Nunca o Namúli lhes parecera
tão convidativo, tão quente e húmido de vida.
Chegaram, por fim, ao cimo da montanha. Os olhos
de Gigi iluminaram-se de bons presságios quando viu que, da gruta revestida a
raiz de embondeiro, jorrava agora uma nascente de águas mornas. Os olhos de
Trovão prenderam-se num frangipani, cujas flores caíam,
delicadas sobre a nascente, perfumando o ar com o cheiro da sua doce mulher.
Sonhava por instantes, acordado, que Gigi estava em toda a parte, dissolvida e
pulverizada por todo o céu da montanha, quando um grito o fez despertar daquele
deslumbramento.
Gigi gritava, toda ela assombro e abismo, que aquela nascente
era de água salgada! Assistiram então, aturdidos, ao derradeiro jorro de água,
que secou a nascente, mar de súbito vazio, deixando em redor um manto de
sangue vivo. E depois de um momento, onde coube toda a dor, medo e desesperança
do mundo, ouviu-se, de dentro da gruta, um gemido. Seguido da gargalhada
inconfundível de uma criança. Precipitaram-se para dentro da gruta. Ao fundo,
ainda coberta de sangue e raízes, uma criança com olhos de céu, cabelos de
embondeiro e perfume de frangipani. Era uma menina. Uma menina linda e, espanto
dos espantos, já com dentes de leite. Os mesmos dentes de leite de seus pais. E
trazia dentro dela uma semente de embondeiro, sinal de que Muluku aperfeiçoara a criação e que não queria que os seus netos
tivessem de passar por todo aquele sofrimento para gerar vida. Felizes,
agradeceram a Muluku.
Mas Muluku avisou-os: Não vos esqueceis de que, a partir de hoje, toda a criação e futuro provirá desta criança, de cabelos perfumados e olhos de céu e de mar, mas lembrai-a sempre de honrar a seus pais, que tanto sofreram por terem filhos de sementes plantadas fora do corpo. Porque toda a criança é desejada e filha do coração.
Mas Muluku avisou-os: Não vos esqueceis de que, a partir de hoje, toda a criação e futuro provirá desta criança, de cabelos perfumados e olhos de céu e de mar, mas lembrai-a sempre de honrar a seus pais, que tanto sofreram por terem filhos de sementes plantadas fora do corpo. Porque toda a criança é desejada e filha do coração.
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