terça-feira, 29 de dezembro de 2015

[improbabilidades] uma vela a santa rita de cássia

Ontem na consulta do hospital, vi um menino pela primeira vez. Pareceu-me um menino um pouco tristonho, meio macambúzio, tímido, reservado, respondia com monossílabos, mas olhava-me com um olhar expressivo, intenso, como se quisesse compensar com o olhar o que não conseguia encontrar palavras para dizer. Educado, com vontade de agradar, coisa rara em pré-adolescentes (e, para mim, mau sinal, que um pré-adolescente a tentar agradar-me sem me conhecer de lado nenhum deixa-me sempre com a orelha levantada de que pode estar deprimido...).

- Então o que a traz a esta consulta? - pergunto à mãe.
- Doutora, eu vim aqui porque não sou de automedicar os meus filhos, eu tenho muito medo e só me automedico a mim e aos meus filhos com receita médica. Mas ele há uns tempos para cá que anda assim muito distraído, parece-me desmotivado. Lê uma coisa e no momento a seguir esquece-a, sabe uma coisa num dia, no outro dia já não sabe. Vai para os testes uma pilha de nervos... eu já pensei em acender uma vela a Santa Rita (piscadela de olho), mas tenho medo que não resulte ou que lhe faça reação...
- Uma vela a Santa Rita? Mas Santa Rita de Cássia, padroeira das causas impossíveis?
- Sim, doutora.
- Bem, mal não faz, miminhos e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Mas isto é uma consulta de Desenvolvimento, não veio aqui para lhe ensinar a rezar a Santa Rita, pois não?
- Ó doutora, eu já experimentei com a Santa Rita e não deu resultado, por isso pensei na outra Rita... (nova piscadela de olho)
(Eu já incomodada com tanta piscadela de olho desadequada...) - Na outra Rita? Qual outra Rita, a Ritalina?
- Sim, doutora, a Ritalina! É que o irmão toma. Eu experimentei-lhe a dar e ele deu-se muito bem, mas como não sabia se lhe podia continuar a dar resolvi pedir esta consulta.

(Custou a desembuchar! Só me fez lembrar aquela anedota do século passado do senhor muito bem posto que vai à farmácia e pergunta: "Tem camisas com colarinhos e botões de punho prateados?" "Não, senhor, isto é uma farmácia, não vendemos camisas dessas." "Então dê-me das outras." Quanto ao resto, não comento!)

domingo, 20 de dezembro de 2015

[vozes brancas] a carta ao pai natal


 
Há dias, antes da história de adormecer, lá nos resolvemos, eu e o baby-de-mulata, a escrever "a carta" ao Pai Natal, que dezembro já ia bem avançado e urgia ter ideias claras sobre os desejos do rapaz para na hora da verdade fazer os seus olhos brilhar. Ditou-me a carta como se tivesse escrito cartas toda a sua vida (acho que aprendeu com um vídeo do YouTube do que costuma ver com Mr. Shaka, o seu papá-maravilha... um vídeo do Monstro das Bolachas da Rua Sésamo que faz rir os dois à gargalhada ante o meu olhar atónito. Para mim não tem grande graça, mas os dois ficam horas perdidas deliciados a repetir o mesmo vídeo, procurem e depois digam-me o que acham, se sou só eu que sou sisuda e exigente ou o sketch tem mesmo piada...).

Depois de me ditar três ou quatro objetos do seu ímpeto consumista, perguntou-me:
- Mas, mãe, o Pai Natal verdadeiro também pode pedir presentes?!
- Penso que não, filho, só as crianças é que podem pedir - respondi, divertida - mas porquê? Se fosses tu a pedir para ele, o que é que tu gostavas de pedir?
- Um Pai Natal igual a ele, para poderem brincar! Ele deve sentir-se muito sozinho e viajar com companhia é mais giro...

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

[vozes brancas] o anjo-de-mulata ou a alegoria da autonomia

Há dias, no colégio do baby-de-mulata, tivemos mais um TPC dos tais que me assustam e me deixam sempre a tremer com a sensação de "mas agora como é que eu vou pegar nisto, valha-me-Nossa-Senhora-e-o-Menino-e-tudo-e-tudo-e-tudo, mas esta gente julga que eu consigo fazer alguma coisa das minhas mãozinhas que não seja palpar barrigas e passar receitas?"...

Nestas alturas vêm-me sempre recordações dos suores frios das aulas de educação visual e de trabalhos manuais, em que achava que não ia conseguir fazer o que me era pedido e em que tudo era tudo muito penoso. Mas, enfim, lá acabava por achar uma solução: fazia composições com os pintores surrealistas, procurava inspiração em revistas e enciclopédias, copiava, imprimia, texturava... tão diferente de alguns colegas que faziam tudo de forma espontânea e criavam com as suas mãos em minutos o que me demorava horas a planear... No final dos períodos os professores acabavam sempre por me dar 5 "porque era muito esforçada e muito criativa, muito cumpridora e muito motivada". Nas informações finais apareciam todos os elogios mas jeito era mesmo o que eu não tinha de todo... E gosto então... zero! Quando cheguei ao 10º ano pensei que estava livre para sempre. Até o baby-de-mulata ter ingressado no jardim de infância...

Ora desta feita tínhamos um anjo para fazer a partir de... um rolo de papel de cozinha!

Com ar de pânico, desabafei com a auxiliar da sala, que foi a minha auxiliar também quando eu própria andei naquele colégio: "Ah, e agora? Será que vou ser capaz?" "Claro que és capaz!" (Ainda me trata por tu, aquela fofura...) E foi então que me enchi de brios e lá planeei a empreitada. O problema eram as asas. Mas como é que se faziam umas asas de anjo?! Foi então que me veio a solução: o meu anjinho seria um anjinho-engenhocas e em vez de asas teria...bem... outra coisa! O baby-de-mulata adorou a ideia e ajudou-me a inventar uma história, que fez vibrar os amiguinhos:


"Era uma vez um anjinho pequeno chamado anjo-de-mulata, que vivia com a mãe, a anja Rafaela, o pai, o anjo Gabriel e o irmão mais novo, o anjinho Miguel. [Aqui houve algum desentendimento inicial, dado que o baby-de-mulata queria que o irmão se chamasse Mr. B, e a mãe queria que se chamasse David, pelo que acabou por se chamar Miguel, como conforme as escrituras].

O anjo-de-mulata era um anjinho muito bem disposto e alegre, que adorava voar pelos céus, sobre o mar, atrás das gaivotas. Também adorava fazer coro com os pássaros da floresta, tocando trompete e, todos os dias, ao fim da tarde, ia jogar à bola, entre as nuvens, com as andorinhas que sobrevoavam o rio. Todas as manhãs, antes de sair de casa, os pais do anjinho recomendavam-lhe: “Não voes muito perto do sol, meu querido, voa baixinho porque as tuas asas ainda foram coladas há pouco tempo e a cola pode derreter com o calor do sol”. E, claro, o anjo-de-mulata tinha sempre cuidado quando o sol estava muito rijo, e só começava a voar mais alto ao fim da tarde, depois de o sol se pôr.

Até que um dia, distraído atrás de uma gaivota divertida, voou um pouco mais para cima e não reparou que o calor do sol lhe estava a derreter as asas… Quando deu conta que as asas estavam a cair já era tarde demais e… catrapum! As asas caíram e o anjinho, não tendo onde se segurar, caiu também, desamparado no chão. A sorte foi ter caído sobre um monte de roupa que as senhoras à beira do rio estavam a lavar e rebolou para a relva [aqui a história também difere da história de Ícaro porque o baby não concordou que o anjinho caísse no mar porque nada nos garante que os anjinhos saibam nadar, e a água do mar é muito fria. Por isso, preferiu rebolar para a relva porque é mais fofinha…]

A partir desse dia, o anjo-de-mulata deixou de conseguir voar. Mas o pai, Gabriel, fazia tudo para que ele não se sentisse sozinho: andava com ele às cavalitas pelo céu adentro, jogava com ele à bola todas as tardes depois da escola, com o pequeno anjo a guiar: “Pai, mais para a esquerda, pai, mais para a direita, olha ali atrás da nuvem, vem aí a andorinha avançada, ora bolas, golo!” Mas o pai às vezes atrapalhava-se e em vez de ir para a esquerda ia para a direita e os golos acabavam por entrar na sua baliza. E o pior era que o anjo-de-mulata estava a crescer e a ficar muito pesado. E o pai estava a ficar velho e cansado… O anjo-de-mulata só pensava: “Se eu pudesse voar sozinho não precisava de estar sempre à espera do meu pai, a cansá-lo, às cavalitas dele, podia voar como eu quisesse e brincar onde e quando me apetecesse…”

E foi então que o anjo-de-mulata começou a pensar. E pensou, pensou, pensou, até que teve uma ideia brilhante:

- Pai, eu não posso voar como um pássaro porque já não tenho asas… mas há mais coisas que voam, não há?
- Sim, meu filho, há mais coisas que voam: aviões, helicópteros, balões…
- Sim, pai! Tenho uma ideia, se eu não posso voar como um pássaro, talvez possa voar como um helicóptero. Basta pôr uma hélice no lugar das asas!

E foi então que o anjo-de-mulata se transformou num anjo-a-jacto, bem disposto, veloz e feliz!"

Feliz Natal a todos!