A flor beijo-de-mulata.
Por entre Brufenes e Ben-u-rons, dores de cabeça e no resto do corpo (descansem que não é malária!), mais os medicamentos dos meus sobrinhos, que estão iguais a mim (ou eu é que estou igual a eles, melhor dizendo), quase me esquecia de que hoje faz dois anos que me instalei, de armas e bagagens, aqui no mato, para tentar sanar um pouco as saudades de África!
Chamei beijo-de-mulata a este longe, em honra à história do Levítico, que gosto de recordar. Obrigada a todos os que não me deixam aqui sozinha, em especial aos que vêm também matar saudades e partilhar histórias comigo!
(um) beijo de mulata
Um Chá de Beijo-de-Mulata
"Há alguns anos, ainda quase recém-licenciada em
Medicina, quando estava em missão de voluntariado em Moçambique, vieram trazer-me
um adolescente de 15 anos. Estávamos em Naheche, uma aldeia perdida no meio da
savana, onde nos tínhamos deslocado para a campanha de vacinação. O jovem
impressionava pelos olhos tristes de quem não dormia há muitos dias e pela face
emagrecida, profundamente escavada pela ausência do apetite próprio de quem
está a crescer. Vinha acompanhado por uma senhora idosa e afável, de olhos
baços, que se movia com a desenvoltura dos que há muitos anos se habituaram à
escuridão permanente da cegueira. Alguma coisa de muito grave se passava com
ele, dizia-me aquela avó, num sorriso tão triste que quase parecia um pranto.
Estendeu a mão para a minha e guiou-me para a face do neto, percorrendo comigo
cada relevo, detendo-se, certeira, em cada uma das suas inquietações…
– Esta criança não está bem – sussurrava-me –, está a
ficar sem corpo e a pele já sobra em toda a parte… O problema está aqui.
Os gânglios do pescoço e por cima da clavícula estavam
muito aumentados, duros, aderentes às estruturas vizinhas… assustadoramente
malignos! Era possivelmente um cancro do sistema linfático, um linfoma daqueles
que se for tratado a tempo não tem mau prognóstico mas que, se não se tratar, o
desfecho é fatal em pouco tempo… Um linfoma de Hodgkin, se quiserem muito
saber-lhe o nome. Fiquei muito preocupada. A imagem do menino correu pelos
meios que tínhamos à disposição e uma onda de solidariedade na cidade natal de
um dos padres daquela missão conseguiu angariar o dinheiro suficiente para o
enviar para Maputo, a milhares de quilómetros dali, para ser tratado.
Duas semanas depois, ainda a tentar organizar a sua
transferência para o Hospital Central de Maputo, observei-o novamente e notei
que os gânglios se tinham praticamente reduzido a metade. Nos entretantos a
família tinha obviamente ido procurar um médico tradicional, que lhe dera a
beber chá de beijo-de-mulata. Evidentemente duvidei do curandeiro. Duvidei de
mim própria. Não confiei na prova que os meus olhos podiam testemunhar. Acreditei
só no prognóstico que vinha nos meus livros e, com o acordo da família, transferi
o menino para o Maputo.
Anos depois, inteiramente por acaso, vim a descobrir que
desta flor selvagem, que cresce quase como erva daninha por todo o país, se
extrai a vincristina, um agente de quimioterapia activo contra o linfoma...
A lição não veio a tempo de intervir em seu favor. De
qualquer modo hoje voltaria a fazer tudo da mesma forma. O chá de
beijo-de-mulata, isoladamente, nunca o poderia ter curado. São precisos vários
agentes de quimioterapia, num cocktail
injectado veias adentro para se conseguir modificar o curso terrível do linfoma
de Hodgkin. Mas foi nesse momento que percebi o quanto há ainda a aprender com
África."